Nossas contradições e incoerências em relação à Venezuela

Carlos Garcia Rawlins/Reuters

O assunto é sério demais, com implicações geopolíticas de grandes proporções, para se tornar apenas uma guerra de posição interpartidária, ou uma disputa centroacadêmica e chauvinista para se definir quem é “mais de esquerda” que o outro.

Antes de mais nada, reitero o meu lugar de fala: sou rigorosamente contra qualquer intervenção internacional na Venezuela. Sou contra boicotes, sanções, invasão, e reitero, como já fiz em post anterior, que estou consciente de que o país é vítima, há muitos anos, de uma cobertura midiática profundamente tendenciosa.

Estou consciente de que a Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do planeta e que isso a torna objeto de cobiça dos mais sinistros interesses imperialistas.

Dito isso, precisamos esclarecer muitos pontos confusos, que emergiram com a ida da presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, à posse de Maduro.

Na minha opinião, o PT cometeu um erro político crasso, embora hoje esteja tentando minimizá-lo atribuindo a uma “certa esquerda” (epíteto pejorativo para quem critica o “regime Maduro”) uma postura subserviente ou ingênua em relação ao imperialismo.

Digo isso porque vi, nos últimos dias, alguém – que respeito – se posicionar com um binarismo que me espantou: “Ou é Maduro ou é Trump! Não tem meio termo!” Ora, me desculpe, mas isso é uma bobagem!

O maniqueísmo não é, jamais, uma maneira inteligente de se analisar geopolítica. O fato de não aprovarmos o regime de Kim Jong-un, a ultrafechada e ortodoxa ditadura comunista da Coreia do Norte, não significa que aprovamos o imperialismo americano, que gostamos de Trump, ou que vamos apoiar uma guerra contra o país asiático.

Podemos ser contra o regime norte-coreano e ao mesmo tempo sermos radicalmente contra o imperialismo norte-americano.

Podemos ser de esquerda e sermos contra o regime nortecoreano.

Podemos ser de esquerda e sermos críticos do governo Maduro.

Como explicava Brizola, e acho que sua frase vale para toda a esquerda democrática brasileira, “nossos caminhos são pacíficos, nossos métodos democráticos, mas se nos intentam impedir só Deus sabe nossa obstinação”.

É absolutamente injusto, todavia, comparar a democracia venezuelana à ditadura nortecoreana. Na Venezuela, há eleições. Na Coreia do Norte, não.

Quando alguém, que se considera progressista, externa duras críticas ao governo Maduro é porque, evidentemente, teve acesso a informações e denúncias que o levaram a se posicionar desta maneira. Não é porque seja menos esquerda ou mais tolerante com o imperialismo.

As contradições do PT em relação a Venezuela são grandes, e o partido precisa responder a isso sem atacar essa grande “esquerda social”, que perambula sem partido, nas redes e nas ruas, porque isso não seria justo, decente, democrático. Não seria, sobretudo, estratégico neste momento, em que precisamos criar um mínimo de unidade na opinião pública progressista, para fazermos frente aos desmandos do governo Bolsonaro.

Todos vimos, durante as eleições de 2018, como o PT brandiu uma decisão de uma comissão de direitos humanos da ONU, assinada por dois integrantes, em favor de Lula, como uma poderosa arma política contra o Judiciário brasileiro, que estava notoriamente disposto a cassar a candidatura do ex-presidente, com base na Lei da Ficha Limpa – o que acabou acontecendo (conforme todo mundo sabia).

Pois bem, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, um órgão muito mais importante que a comissão usada pelo PT, divulgou, em agosto de 2017, um relatório contendo graves denúncias contra o governo e o Estado venezuelano.

Alguns leitores dirão que a ONU é imperialista, ao que responderei que sim, que tanto a ONU como a OEA são historicamente influenciadas por forças imperialistas. Mas essa hegemonia imperialista americana não é absoluta há bastante tempo. Há sempre um grau de tensão interna, de contradição, que tem permitido, por exemplo, que interesses anti-imperialistas, como os de Cuba, alcancem eventualmente expressivas vitórias lá dentro.

(Essas contradições explicam as acusações, vindas de elementos delirantes da extrema-direita, como Olavo de Carvalho, de que ONU ou OEA seriam “esquerdistas”, ou globalistas; não são; são instituições conservadoras e imperialistas, mas que carregam contradições que, às vezes, fazem eclodir decisões democráticas e humanistas. Aliás, essa não é a história do mundo?)

A comissão de direitos humanos da OEA, que é dirigida por um brasileiro identificado com a esquerda, Paulo Abrão, ex-funcionário no alto escalão no Ministério da Justiça dos governos petistas, também divulgou um relatório, em 9 de janeiro deste ano, com denúncias graves contra violações a direitos políticos e democráticos na Venezuela.

Trecho deste último:

El debilitamiento de la institucionalidad democrática ocurre en un contexto estructural de represión y persecución a la disidencia, en el marco de la militarización de la seguridad pública, que agrava el deterioro de los derechos políticos y a la participación en la vida pública, en estrecha relación con la afectación a la libertad de expresión.

Estas notícias significam que o campo progressista, em especial aquele que se identifica com a luta anti-imperialista, não deve apoiar a Venezuela?

Não.

Elas significam que o campo progressista identificado com valores democráticos, especialmente após um processo eleitoral em que esses valores foram usados como prova de fogo para escolhermos entre um candidato e outro, deveria, no mínimo, adotar uma posição respeitosa em relação a essas denúncias de violações democráticas, contra o regime chavista, por organizações internacionais cujos tratados de direitos humanos o próprio PT, nas eleições, atribuiu o poder de estarem acima das nossas leis.

Ignorá-las é uma perigosa incoerência, e não ajuda em nada o regime venezuelano a respondê-las.

Ou seja, o PT, enquanto partido que governou o país por 13-14 anos, e que participou do segundo turno das eleições presidenciais, deveria ter tido o cuidado de deixar claro, à toda essa opinião pública consternada com denúncias contra a Venezuela, que está consciente de todas essas coisas, e que está disposto, ao mesmo tempo, a ajudar o povo venezuelano a encontrar uma solução pacífica e democrática para seus impasses, assim como nos ajudar, a nós, brasileiros, a nos posicionarmos da melhor maneira possível.

Um militante de esquerda com sólida formação democrática procura se manter independente em relação a qualquer governo, inclusive governos de esquerda, inclusive diante de seu próprio governo, quanto mais em relação a governos de outros países acossados por denúncias tão graves.

Entretanto, a maior de todas as contradições cometidas pelo PT, que é o maior partido da esquerda brasileira e que, por isso mesmo, é sempre o alvo de tantas atenções e críticas (ninguém critica o PCO ou o PSTU por nada, por exemplo), é ter ido na posse de um presidente eleito na Venezuela, semanas após ter se recusado a ir na posse do presidente eleito no Brasil.

O que o PT deveria ter feito, então? “Abandonado” Maduro?

Não.

O PT deveria, em primeiro lugar, ter ido à posse de Jair Bolsonaro, porque ele foi eleito. Faltar à posse de um presidente eleito no Brasil, alegando que ele “ameaçou” opositores, e ir na posse de Nicolás Maduro, que não é exatamente um cordeirinho na relação com sua própria oposição, foi uma contradição feia, uma incoerência absoluta.

Em segundo lugar, o PT deveria ter adotado, em relação à Venezuela, uma posição política equilibrada, assim como agiu o próprio governo Lula durante os anos em que lidou com a crise naquele país, a saber, demonstrando preocupação com as denúncias, dispondo-se a conversar também com elementos da oposição, e, sobretudo, demonstrando independência política e intelectual em relação ao governo chavista. Essa seria a melhor maneira de ajudar a Venezuela, porque, a partir do momento em que o PT demonstrasse independência de julgamento, ele poderia influenciar mais efetivamente a opinião pública brasileira.

Criticar a incoerência do PT, por sua vez, não nos torna cúmplices dos ataques imperialistas à Venezuela. Esse tipo de raciocínio binário vale para agremiações políticas ultrarradicais, como o PSTU, ou PCO, mas não para legendas conhecidas (até pouco tempo, ao menos) por seu apreço pelo contraditório e por valores democráticos.

O campo progressista brasileiro precisará, mais que nunca, do apoio de organizações internacionais, em especial suas comissões de direitos humanos, para nos defendermos de ataques vindos do governo Bolsonaro. Como poderemos dar densidade política às denúncias contra Bolsonaro que emplacarmos, eventualmente, nessas comissões, se desmerecermos (ou ignorarmos) as denúncias que estas mesmas  entidades fazem contra o governo bolivariano?

Em todos esses anos, o chavismo conseguiu sobreviver à guerra híbrida investindo em democracia. Ultimamente, o governo venezuelano parece não estar mais conseguindo fazer isso à altura de seus desafios.

Cabe aos brasileiros que lutam contra o imperialismo ter sempre em mente que a guerra híbrida – o maior desafio jamais enfrentado pelas forças democráticas, em toda a sua história – apenas será vencida com informação, debate e coerência.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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