A Direita no Brasil e o Governo Bolsonaro
Por Wilson Ramos Filho (*)
Depois de 13 anos de um governo de centro-esquerda o Brasil sofreu um Golpe de Estado. Em pouco mais de dois anos os golpistas desconstruíram as políticas públicas do período anterior e pelo voto popular foi eleito um governo de Direita nas eleições de 2018.
O país não sabe o que esperar. Ou melhor, cada grupo espera algo, não necessariamente o mesmo. Na campanha eleitoral os eleitos não se comprometeram com um programa de governo detalhado. De toda sorte, pesquisas de opinião demonstram que três em cada quatro brasileiros têm uma expectativa positiva, consideram que suas vidas irão melhorar.1
Nos círculos intelectuais estabeleceu-se o debate sobre eventual caráter fascista do próximo governo. No presente artigo será discutida esta questão, com o alerta prévio de que as ideias aqui lançadas foram redigidas ainda antes do início do governo, ou seja, com base apenas nas informações disponíveis na imprensa, considerando-se a composição do futuro ministério.
Estrutura-se em quatro partes. Na primeira procurar-se-á esclarecer o conceito de fascismo adotado. A seguir, serão analisados os componentes da correlação de forças hegemônica na constituição do governo. Os elementos para uma resposta coerente à questão colocada serão apresentados na sequência, como subsídio para as considerações finais.
1. Fascismo.
Não devem ser desconsiderados os alertas para certa banalização do termo “fascismo” frequentes na imprensa ou mesmo nas discussões acadêmicas. De fato, nem todos os governos de Direita cabem no conceito majoritariamente aceito como identificador do fascismo. Por outro lado, à exceção do fascismo italiano, os demais Partidos e movimentos políticos, e mesmo regimes autoritários de Direita, raramente se reivindicam como fascistas.
É vasta a produção teórica sobre o tema. Correndo os riscos da simplificação, contudo, podem ser listadas algumas características do que sintetizaria a ideologia fascista, tendo em vista suas manifestações históricas ao longo do último século, principalmente tomando-se as experiências históricas havidas na Itália, ao final da Grande Guerra, e na Alemanha, uma década mais tarde. Dentre as principais características figuram:
a) O antimarxismo;
b) A crítica ao status quo;
c) A mobilização das massas, principalmente da juventude;
d) A identificação com um líder carismático, com um caudilho;
e) A formação de falanges ou milícias ligadas ao Partido;
f) A crítica ao liberalismo, com a defesa do capitalismo;
g) Coincidência da doutrina fascista com a do cristianismo;
h) O objetivo do totalitarismo;
i) A ideia de nação, como princípio unificador.
Como se observa, antes que propositivas, quase todas as ideias em torno das quais se articulam os fascismos se fazem pela negação. Além disso, registre-se que em cada país, e em cada momento histórico, nem todos os fascismos apresentaram todas as características acima, e, em muitos deles, a elas foram adicionadas outras, diga-se, reivindicações mobilizadoras. Por fim, observe-se que nas experiências concretas o fascismo passou por distintas fases. Ou seja, dependendo do período histórico tomado como paradigma as conclusões podem ser diferentes.
Em todos os casos o fascismo não aparece desde logo como uma ideologia totalizadora pronta e acabada. Os regimes e as sociedades se fazem fascistas, constituem-se em processo. Cada fascismo se vai constituindo socialmente, ora em aliança com outros movimentos de Direita, ora deles se diferenciando, para disputar suas bases. Cada fascismo, assim, é a resultante de uma correlação de forças entre partidários do ideário da Direita em cada momento histórico. Considere-se, a respeito, que os fascismos que chegaram ao poder pelas urnas, na Itália e na Alemanha, vieram no bojo de alianças políticas pluripartidárias, ainda que sempre à direita. Somente depois de instalados no poder é que lograram estabelecer o unipartidarismo, característica não exclusiva da fascistização.
Inclusive no campo econômico nunca ficou muito claro quais seriam os objetivos concretos dos governos fascistas. Assim como não construíram uma “teoria do Estado”, ao contrário dos comunistas, seus principais adversários, também não dispunham de uma “teoria econômica” detalhada. Se é certo que todos os fascismos nunca esconderam sua vinculação ao capitalismo, o tipo de organização econômica e social que o embasaria nunca restou suficientemente esclarecido. Não é certo também que todos os fascismos tenham sido corporativistas, como no italiano – e mesmo neste com matizações -, e em certa medida no Salazarismo e no Franquismo. O nazismo não era corporativista. Bem ao contrário, dele desconfiava.
As bases filosóficas dos fascismos também raramente restaram claras. Todos foram conservadores nos costumes, sofrendo forte influência do cristianismo, e por isso, tinham as ideias de Nietzsche como adversárias. Eram todos antimaterialistas e fascinados pelo idealismo e pelo voluntarismo, contra toda preeminência do elemento econômico. Nas suas várias vertentes havia sempre a crítica à “desestruturação social” e defesas de uma nova organização política sem os defeitos que identificavam nas sociedades de seu tempo.
Todos se baseavam em uma nova estética, preponderantemente masculina, viril, fortemente simbólica e hierarquizada. O culto ao corpo masculino e à superação de limites físicos (não por acaso um tipo de educação física prosperou e se desenvolveu sob o fascismo) estavam presentes na construção do novo homem, base da nova sociedade que pretendiam, mística, ritual, determinantemente influenciada por fatores religiosos. Nada incomodava mais ao chauvinismo fascista que alusões, ainda que periféricas, à homossexualidade. O afeminado, sinônimo da fraqueza inerente à condição feminina, haveria de ser estigmatizado e proscrito.
A própria militância fascista, esteticamente militarizada, utilizando-se de insígnias, e uniformizada adquiria centralidade por oposição ao caos, à baderna, à flexibilização dos costumes e da tradição que caracterizavam os movimentos de esquerda. Em decorrência desta estética particular, diferente de tudo o que havia antes, o culto à violência e o fascínio pelas armas figura como característica comum a todos os fascismos.
Verifica-se, pois, que não se constitui em tarefa fácil conceituar o que seja o fascismo. Melhor seria falar-se em fascismos, no plural, movimentos que compartilham algumas características essenciais. Reitere-se que nem todos os governos de Direita que se estabeleceram a partir da grande crise capitalista de 1929 foram propriamente fascistas durante todo o tempo. Embora comportassem políticas fascistas em certos aspectos. Tais governos, como qualquer governo no Estado capitalista, comportavam interesses de classe e de frações de classe, e movimentos políticos que articulavam estratégias e ideologias que se movimentavam da direita tradicional à “direita modernizante”, passando pelas doutrinas militares e cristãs, que tinham no antimarxismo um ponto de confluência.
2. As articulações da Direita no Brasil contemporâneo.
A experiência de governos de centro-esquerda no Brasil, a partir de 2003, desagradou amplos setores sociais. As políticas de distribuição de renda e de acesso a bens e a serviços, públicos e privados, reestruturaram as relações entre as classes sociais em moldes distintos. Pessoas às quais até então eram negados direitos elementares à cidadania passaram a ocupar espaços sociais antes reservados às elites oligárquicas e às classes médias tradicionais, formadas pela pequena-burguesia urbana e rural.
O ponto de inflexão deu-se em meados de 2013, quando milhares de pessoas foram instigadas pelas igrejas e pelos meios de comunicação a manifestarem-se nas ruas, com pautas difusas e heterogêneas que confundiam reivindicações tipicamente fascistas e disputas por mais direitos. Em um primeiro momento parte da esquerda aderiu às “heroicas jornadas de junho de 2013” entendendo que o mal-estar social sintetizado na consigna “não é só pelos R$ 0,20” a mais no valor das passagens de ônibus urbanos nas principais cidades brasileiras poderia levar a uma ampliação nas tímidas políticas públicas governamentais, que também apareciam nas manifestações, e estavam em processo de implantação pelo governo. O resultado é conhecido. As ruas foram tomadas por diversos segmentos sociais que se identificavam com os valores da Direita política, que deram a tônica aos protestos. A partir de então as ruas foram sendo tomadas por militantes direitistas, abrindo-se a possibilidade histórica para um golpe de Estado, em 2016. O desenvolvimento do antipartidarismo já com claro domínio da direita se estendeu para “meu partido é o Brasil”, “nossa bandeira jamais será vermelha”, “contra a ideologia de gênero”, “escola sem partido”, entre outras) e reivindicações conservadoras e moralistas (contra o inventado “kit gay” nas escolas, contra a corrupção, contra a flexibilização dos costumes, contra a criminalidade, apenas para citar algumas).
Podem ser identificadas pelo menos cinco facções de Direita que confluíram no movimento social que, por um golpe parlamentar, destituiu o governo eleito, empossou um ilegítimo que implantou o projeto eleitoral derrotado nas eleições de 2014, perseguiu líderes da esquerda, encarcerou seu principal candidato, líder nas pesquisas de intenção de votos2, impediu sua candidatura e criou as condições para a eleição de um militar reformado, sem base parlamentar prévia, sem programa de governo, para a Presidência da República, de muitos governadores e senadores com ele identificados e de quase duas centenas de parlamentares vinculados ao ideário da Direita política. Correndo-se novamente o risco da simplificação, com finalidade meramente classificatória e sem hierarquizá-los por predominância, figurariam entre essas facções: a Direita Concursada, a Classe Média Ressentida, as Igrejas, os Militares e o Empresariado.
Por Direita Concursada entende-se o vasto contingente de funcionários públicos, recrutados por intermédio de concorridos concursos, que acederam à burocracia estatal a partir da Constituição de 1988. Pessoas oriundas da pequena-burguesia, majoritariamente urbana, passaram a ocupar relevantes funções no aparelho de Estado, em distintos graus de hierarquia. Admitidos por certames públicos, com milhares de candidatos por vaga, parte desses funcionários passaram a considerar a si próprios como mais importantes, mais competentes, mais merecedores de privilégios que o restante da população, compondo a categoria teórica da Direita Concursada. Nem todos os funcionários públicos, por óbvio, a integram, apenas aquela parcela que, por injustificável soberba, passa a valorizar a “meritocracia” como preponderante em face da “democracia” que conduziria incompetentes aos postos de maior destaque na composição governamental. Dentro delas, dois setores merecem destaque. O dos médicos e dos funcionários do aparato repressivo estatal.
No primeiro grupo, composto historicamente por integrantes das classes altas que podiam facultar aos seus filhos ensino de qualidade nas melhores escolas privadas, foi considerada herética e descabida a contratação de médicos estrangeiros, majoritariamente cubanos, para atuar nas pequenas cidades onde os médicos brasileiros negavam-se a trabalhar, e a ampliação do número de vagas nas faculdades de medicina, com a autorização de diversos novos cursos (programa “Mais Médicos”), a reserva de vagas nas faculdades de medicina, públicas e privadas, para jovens oriundos das classes populares (programas como REUNI, PROUNI e FIES) e a instituição de cotas sociais ou raciais, em prejuízo dos vestibulares tradicionais que asseguravam o acesso às faculdades de medicina apenas aos jovens das classes sociais mais abastadas. No segundo grupo, destacam-se os agentes públicos nas polícias, no Ministério Público e na Magistratura, seja nos Estados, seja no plano Federal, como funcionários ou como juízes, promotores ou procuradores. A partir da possibilidade de dizer o que o Direito diz, interpretando as normas constitucionais e legais às suas imagens e semelhança, essa parcela da burguesia passou a ocupar, depois de admitida em rigorosos concursos públicos, de modo crescente e sob o beneplácito e a leniência da cúpula do Judiciário, o monopólio da dicção do Direito segundo critérios classistas e subjetivos. Assumindo-se como “justiceiros” ou como “predestinados a consertar o mundo” esses integrantes da Direita Concursada tiveram um papel preponderante no Golpe de 2016, na desestruturação dos Direitos Sociais (de que são exemplos a limitação dos gastos públicos por vinte anos e a mal denominada “reforma trabalhista”) e na eleição de Bolsonaro. Sem a militância e sem a participação da Direita Concursada, e não apenas nas carreiras médicas e jurídicas, mas em diversos outros setores da burocracia estatal, o Golpe não teria sido possível, e, consequentemente, a se crer no que indicavam as pesquisas de opinião, o ex-presidente Lula teria sido eleito. A maioria dos integrantes da Direita Concursada não se vê como fascista, sequer como “direitista”, embora o seja, tenha-se tornado fascista em muitos aspectos. Com espaços de fala em lugares comuns (“me decepcionei com o PT”, “o PT não dá mais”) os integrantes da Direita Concursada passaram a constituir e a fomentar uma peculiar experiência de “fascismo social” que se retroalimenta reciprocamente do anti-esquerdismo e que considera que o Estado existe para lhes assegurar privilégios.
Agrupados no conceito Classe Média Ressentida figuram amplos setores da pequena-burguesia inconformados com a “invasão” de espaços sociais por “aquela gente diferenciada”, de ascendentes sociais, e com a diminuição de seus privilégios de classe. De fato, as políticas públicas de distribuição de renda (bolsa-família, recuperação no valor do salário-mínimo, políticas de pleno-emprego, como ícones) permitiram o acesso de milhões de pessoas “diferentes” aos shopping centers, aos aeroportos, aos cinemas, à residência digna (programa “Minha Casa, Minha Vida” e “Luz Para Todos” merecem destaque), ao automóvel ou motocicletas particulares, às férias nas praias, aos hotéis. A pequena-burguesia tradicional (e não apenas aquela que integra a Direita Concursada aludida no parágrafo anterior) viu invadidos os “seus” espaços de distinção (BOURDIEU, 2013). E não gostou. Os jovens da classe média passaram a ter que disputar espaço nas faculdades e no mercado de trabalho com milhares de pobres, negros e pardos por maioria, ampliando o mal-estar nas classes médias tradicionais (o que explica a preferência destes por concursos públicos, aproveitando-se da vantagem competitiva que lhes vinha desde o berço, podiam se dedicar a “estudar para concurso”, sem a necessidade de ganhar a vida trabalhando, como os demais competidores, filhos da “nova classe média”, melhor conceituada como “classe popular melhor remunerada”).
Semelhante efeito nesses setores de classe teve a promulgação da “Lei dos Empregados Domésticos”. Historicamente, as casas de classe média comportavam empregados domésticos mal remunerados e sem direitos trabalhistas. Com a nova lei, as famílias passaram a ter que registrar tais empregados, embora ainda não equiparados aos demais trabalhadores, mas assegurando-lhes direito à jornada de oito horas e consequentemente às horas excedentes como extraordinárias, às férias, ao décimo-terceiro salário, à previdência social custeada majoritariamente pelos empregadores. Muitas famílias de classes média consideraram essa “inovação” como um disparate (“onde já se viu?”, “passaram a existir”). Muitas mulheres pequeno-burguesas enxergaram ali uma ameaça à sua “liberdade feminina”, temiam ter que parar de trabalhar fora para se dedicar aos afazeres domésticos. Além disso, com as políticas de pleno-emprego o desemprego chegou a míseros 5% em 2014 e 2015,3 ou seja, quase que reduzido ao chamado “desemprego de transição” entre um e outro emprego, melhor remunerado ou localizado) muitas antigas empregadas domésticas passaram a preferir outras ocupações, tornando “difícil encontrar domésticas” que se submetessem a ganhar o salário-mínimo. A velha ordem pequeno-burguesa estava sob ameaça. E causava ressentimento.
No mercado de trabalho, como um todo, aconteceu o mesmo. Passou a ser assunto nas rodas sociais de classe-média a “dificuldade em encontrar bons empregados”, os trabalhadores haviam ficado “muito folgados”, cheio de vontades. Com a diminuição do exército industrial de reserva, a massa salarial aumentou, atingindo as margens de lucro dos pequenos empregadores, já que os lucros se constroem como inversamente proporcionais aos salários (MARX, 2014). O impacto nas famílias de funcionários públicos foi ainda maior. Aos novos gastos não correspondem aumentos nos vencimentos ou nos soldos. Não foram poucos, assim, os ressentidos com as políticas públicas que se implantavam e que pareciam não ter mais fim. Esse ressentimento se expressou de forma difusa em muxoxos (“onde vamos chegar desse jeito?”) e em nostálgicas reivindicações (“quero meu país de volta”). A implantação de cotas sociais nas faculdades públicas só fez aumentar o ressentimento. A pequena-burguesia que, com muito esforço e significativas privações, havia “investido” na formação de seus filhos para garantir-lhes acesso às universidades públicas sentiram-se prejudicadas pela reserva de vagas para jovens das classes populares que “roubavam as vagas” que, sem as cotas, haveriam de ser ocupadas majoritariamente pelos filhos da classe média (“de que adiantaram os cursos de línguas”, as “caras escolas particulares”, os “intercâmbios no exterior” se agora diminuíram as vagas para “quem fez por merecer” para outorgá-las aos pobres?). Do ressentimento moderado ao fascismo crescente não tardou muito. O ódio difuso verificado nas conversas nos clubes, nas academias de ginástica, nas praças de alimentação nos shopping centers, paulatinamente se transmudou em raivas concretas para um certo “nojo de classe” que se materializou no “antipetismo”. Esse (res)sentimento foi percebido pelos grupos fascistas que o potencializaram na defesa das “pessoas de bem” contra “tudo isso que está aí”.
As Igrejas prosperaram nos governos de centro-esquerda. Na católica, os papados conservadores de João Paulo II e de Bento XVI praticamente aniquilaram a “teologia da libertação”, a hierarquia eclesiástica passou a ser dominada pelos setores mais conservadores. No campo evangélico, assistiu-se à proliferação das igrejas pentecostais e neopentecostais, fundadas na “teologia da prosperidade”, ampliando-se sua base social nos setores populares. Se nos fascismos europeus foi fundamental a militância católica e evangélica tradicional, no Brasil do século XXI esse papel foi ocupado pela cruzada moralizadora dos católicos conservadores e pentecostais. As políticas públicas destinadas a coletivos marginalizados, aos pobres, aos homossexuais e às mulheres passaram a incomodar as Igrejas. Notícias falsas a respeito da “ideologia de gênero” foram disseminadas, aludiam às políticas da esquerda para “criar uma sociedade andrógina”, a homossexualidade estaria sendo ensinada nas escolas pela utilização da metodologia de Paulo Freire, pedagogo de prestigio internacional e um fundadores do PT ainda em 1979. As discussões governamentais a respeito da descriminalização do aborto e da legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo só fizeram ampliar a militância dos conservadores. Com a imunidade tributária das Igrejas, e com a ampliação no número de templos e de fiéis pagadores de dízimos, estas passaram a controlar boa parte dos meios de comunicação, inclusive com canais próprios (ou arrendando horários) de televisão e de milhares de rádios em todo o país. Centenas de escolas confessionais passaram a disseminar a “visão cristã” e a estigmatizar as “partidarizadas” escolas laicas, a maioria pública. O movimento “Escola Sem Partido” cresceu e se espraiou em diversos setores sociais. O conservadorismo cristão se viu instigado a resistir às “políticas de esquerda” que “atentavam contra as famílias”. Muito embora tenha havido diminutas resistências, em certos setores do catolicismo e do evangelismo, majoritariamente as igrejas se somaram ao “antipetismo” convalidando o Golpe de 2016 e, consequentemente, contribuindo para a eleição de Bolsonaro. As igrejas assumiram o exato papel de aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1970) na disseminação da ideologia burguesa contra os pobres aos próprios trabalhadores que ascenderam socialmente pelas políticas garantistas. Algumas igrejas neopentecostais passaram a desenvolver uma ritualística militarizada e seus “obreiros” se constituíram em importante militância das candidaturas vitoriosas, ampliando a chamada “bancada evangélica” que, somada aos católicos conservadores, compõem a maioria do Congresso Nacional a partir de 2019. O culto à personalidade, ao “Mito”, esteve presente também nas campanhas majoritárias aos governos estaduais e ao senado, com a decisiva participação dos militantes cristãos nas campanhas que se identificavam nos Estados com a campanha nacional de Bolsonaro. As hierarquias católica e evangélica, das distintas denominações, aderiram inequivocamente ao novo governo e exercerão enorme influência nas políticas públicas do próximo período, seja na desconstrução do “legado petista”, seja na reconfiguração do papel das igrejas na “nova sociedade” que já está em curso, fundadas em valores da Direita.
Os Militares haviam saído muito mal da ditadura iniciada em 1964. Desde a “redemocratização” o Ministério da Defesa foi ocupado por civis. Se conseguiram evitar a condenação de militares assassinos e torturadores, com a Lei da Anistia recíproca, não conseguiram evitar a memorização das atrocidades cometidas nos livros escolares. As “comissões da verdade” instituídas pelos governos progressistas causaram desconforto nos que iniciaram suas carreiras militares durante a Ditadura. As indenizações aos perseguidos e aos seus familiares nunca foram bem aceitas nas casernas. A contenção nos orçamentos, também não. Muito embora essa casta de funcionários públicos seja aquela que preservou os maiores privilégios, entre os quais a pensão vitalícia para filhas mulheres de militares, não tiveram mais o mesmo prestígio político de outrora, inaugurado com a proclamação da República e que marcou a política nacional durante todo o século XX. Rigidamente hierarquizada, quando os militares da Direita mais ideológica chegaram ao Generalato, ao Almirantado ou à cúpula da Aeronáutica, reivindicações de revisão da memória histórica passaram a ser cada vez mais vocalizadas, para o público interno, e para a sociedade em geral. A candidatura de um ex-militar à presidência da república, com um general como vice, abriu a oportunidade para que saíssem à arena pública, principalmente depois do Golpe de 2016. Do apoio velado ao Golpe chegaram à tutela do Judiciário, na sua cúpula, com a nomeação de um de seus líderes ideológicos como “assessor especial” da presidência do Supremo Tribunal Federal. O anticomunismo ganha força, verdadeiro anacronismo fascista injustificado, se for analisado de forma desapaixonada o período dos governos de centro-esquerda. Apesar dos apelos à “intervenção militar constitucional” (seja lá o que isso signifique), depois do golpe de 2016, esta não foi necessária. Os militares de Direita voltaram ao governo pela vontade dos eleitores, com a legitimidade das urnas. Curiosamente, se nas outras manifestações históricas do fascismo o estamento militar era profunda e sinceramente nacionalista, aparentemente não causa desconfortos nas casernas o alinhamento político do bolsonarismo aos interesses estadunidenses, nem as “continências” subservientemente prestadas à bandeira dos EUA. Seja como for, a Direita militar voltará ao governo federal e comandará a segurança pública em vários Estados governados por aliados de Bolsonaro. Assim como ocorreu nas igrejas, os “setores nacionalistas e democráticos das forças armadas” são numericamente irrelevantes. A hierarquia militar, com seus valores de direita, constitui, conforma e informa o governo Bolsonaro.
O Empresariado integra a quinta facção da direita dentre os que participaram do Golpe, do governo Temer e da eleição de Bolsonaro, mas não se configura na menos importante. Sem desconsiderar a existência de diferenciações entre os diversos setores do patronato, obviamente, há uma cumplicidade do empresariado com o ideário da Direita. No Brasil, talvez mais do que nos demais países, onde jamais foi constituída uma elite empresarial com um projeto próprio, confluíram para a candidatura vitoriosa em 2018 os mais diversos setores empresariais. Mesmo os pequenos e médios empresários que haviam sido beneficiados pela melhoria da distribuição de renda nos governos hegemonizados pelo PT se inclinaram, em grande parte, para a candidatura da extrema-direita. Foram beneficiados pelo aumento na clientela para seus produtos e serviços em decorrência das políticas públicas dos governos de centro-esquerda, mas desde o primeiro turno das eleições presidenciais já se inclinavam pela candidatura de Bolsonaro. E não estavam sozinhos. O empresariado que votava no PSDB, acreditando na viabilidade das políticas neoliberais e nas urgências na “diminuição da carga tributária”, sua principal bandeira, em 2018 se apresentou dividido. Parte permaneceu fiel ao PSDB, parte migrou para o Partido Novo, mas a maioria foi aderindo gradativamente à candidatura que venceu as eleições. De uma maneira aparentemente contraditória aos seus próprios interesses de classe, por razões ideológicas, o empresariado aderiu aos valores da candidatura da extrema-direita e às suas promessas de aprofundamento das políticas neoliberais. Sabiam e sabem que a concentração de renda lhes será prejudicial, pela diminuição do consumo em face a baixos salários, mas imaginam “compensar” a diminuição de seus lucros, pelo encolhimento das vendas, com a “reforma tributária” e com o aprofundamento da “reforma trabalhista” que aproximará as tutelas trabalhistas do que hoje já existe na informalidade das relações de trabalho. O pleno-emprego, se lhes trazia consumidores para seus bens e serviços, também lhes trazia o constrangimento de ter que remunerar melhor seus próprios empregados. Se as vendas aumentam quando os clientes recebem os décimo-terceiros salários, também eles têm que pagá-lo aos seus “colaboradores”. Imaginam que um governo que combata a corrupção, que acabe com a previdência social e seus “déficits históricos”, que cobre menos impostos, que ataque a criminalidade com leis mais duras, que se alinhe ao capitalismo estadunidense, poderá manter e até ampliar suas margens de lucro. Os valores de Direita, individualistas, não-solidaristas, acabaram prevalecendo. Exemplo disso é o crescimento do Movimento Brasil Livre – MBL, que se ocupou nos últimos quatro anos da disseminação do ideário neoliberal em diversos setores sociais e que se consagrou nas eleições parlamentares, elegendo vários de seus líderes mais midiáticos. Os meios de comunicação oligopolizados e as igrejas promotoras da “teologia da prosperidade” se encarregaram de disseminar socialmente o neoliberalismo como algo desejável, embora todas as experiências históricas demonstrem que a qualidade de vida das populações piorou onde foram implantadas as “políticas de austeridade”. As promessas de privatizações, compromisso do governo eleito, empolgam esta parcela da direita brasileira que entende que a “diminuição da presença do Estado” terá como consequência a “redução da carga tributária”, mantra do empresariado brasileiro. Nos fascismos históricos caberia ao Estado, como instância representativa da totalidade do “corpo social”, a organização “totalitária” dos interesses nacionais. No Brasil, pelo menos para esta facção da direita, essa função caberia ao Mercado autorregulado, sem constrangimentos externos.
Não se está, por evidente, limitando apenas a essas cinco (Direita Concursada, Classe Média Ressentida, Igrejas, Militares e Empresários) as facções da Direita que se articularam para consolidar o Golpe de 2016 e para a eleição de Bolsonaro. Há inúmeros outros grupos de direita com algum nível de organização interna, na Maçonaria, nas milícias, no crime organizado, nos executivos dos grupos que se beneficiarão das privatizações (bonificados pelo atingimento de metas) e nos operadores do capital financeiro que se adornará dos mercados de previdência e dos planos de saúde privados, nos núcleos reticulares que defendem os interesses geopolíticos e geoestratégicos de potências estrangeiras, nos grupos de militantes de Direita que congregam policiais civis e militares, frequentadores de academias de ginástica e de artes marciais, entre outros. Também não se está a desconsiderar o papel fundamental que os meios de comunicação tradicionais (jornais, revistas, televisões e rádios) e pós-modernos (redes sociais) tiveram nesse processo. Considera-se, todavia, que cada um desses integra, ou participa em alguma medida, em cada um dos cinco grandes núcleos da Direita brasileira.
3. Teremos um governo fascista?
Deixou-se assentado, no início deste artigo, que o fascismo se constitui historicamente. E, como processo, comporta fases, avanços, recuos. Na Itália, nascido de uma coalisão, tornou-se propriamente violento, totalitário, ao longo da década de vinte, mercê das campanhas militares na África (fiascos bélicos) e na Europa. Na Alemanha, o nazismo só atingiu sua plenitude quando Hitler logrou impor sua política no interior do Exército.
A fase iniciada com a “Marcha sobre Roma”, em 1925, ainda respeitava a constituição e as coalisões direitistas anteriores. Depois, implantou-se a ditadura protocorporativista com pretensões unipartidistas, mitigada no contexto da crise capitalista de 1929 (quando na Alemanha os nazistas estavam em ascensão). Depois de 1936, o fascismo italiano que havia inspirado a direita alemã mais radical, passa por um processo de nazistização crescente até a queda de Mussolini, em 1943, e mesmo sob o regime de Saló, até a democratização. O fascismo italiano inicial sofreu, assim, metamorfoses durante esses vinte anos de trevas, com graus distintos de violência e de adesão, seja nas práticas de governo, seja nas relações sociais. Mussolini, reconheça-se, chegou ao poder sem um plano de governo e sem um projeto claro para a economia. Suas políticas foram sendo construídas ao longo do tempo como resultado coalisões e dissensões internas no campo do pensamento da Direita.
O mesmo se deu em todas as demais tentativas de implantação de regimes autoritários de direita na saída da Primeira Guerra (como reação ao ideário socialista vitorioso na Rússia e no México, derrotado na Alemanha). Pense-se em Pimenta de Castro, em Portugal (1915), em Primo Rivera, na Espanha (1923-1930) e em Pangalos na Grécia (1926). Em cada uma dessas experiências históricas, setores da Direita se debateram e se combateram mutuamente na tentativa de implantar governos conservadores nos costumes para preservar as “instituições burguesas” e o capitalismo. Na década seguinte, com a eleição de Hitler na Alemanha, surgia concretamente um “concorrente” para Mussolini no pensamento da Direita europeia. Inicia-se a fase do “fascismo universal” pelo qual a Itália passaria a tentar ampliar sua influência em Portugal (sob Salazar), e na Espanha em socorro aos golpistas de Franco, durante a guerra civil e mesmo depois dela. Data desta época a proliferação dos cursos Dante Alighieri em vários países latino-americanos, como no Brasil, que, sob o pretexto de ensino do idioma, faziam proselitismo do ideário mussoliniano.
O nazismo, forma mais violenta do fascismo, também se construiu historicamente. Hitler, também não tinha um plano econômico pronto ao chegar ao poder e sempre desconfiou do corporativismo à italiana por considerá-lo muito “pluralista”. Suas políticas foram se fascistizando ao longo da década de trinta em decorrência das metamorfoses internas do NSDAP, o partido nazista, e da influência deste no governo. O fascismo alemão, nesse sentido, sempre foi muito mais ideológico e mais eficiente na homogeneização social.
Não cabe aqui esmiuçar as tensas relações entre Hitler e Mussolini, durante a guerra. Basta para o argumento observar que, mesmo na Itália ou na Alemanha, não houve um mesmo conjunto de ideias e de práticas ou políticas econômicas ou sociais que pudessem ser agrupadas, sem grandes concessões à flexibilidade, no significante geral de “o” fascismo. Houve sim, fases distintas em governos autoritários de direita, com pretensões totalitárias, de maior ou menor fascismo explícito, sempre como decorrência das relações entre os distintos movimentos direitistas, no Governo e nas sociedades europeias, segundo aquelas características gerais apresentadas no início deste artigo. Os fascismos, mais que pontos de partida (apesar da ideologia de base e dos valores que compartilham), constituem-se em pontos de chegada, em articulações que se expressam historicamente nas sociedades e se materializam na ossatura material dos Estados capitalistas e em suas políticas.
A resultante da correlação de forças entre os vários grupos de Direita pode levar a governos abertamente fascistas, a governos de Direita com muitas práticas fascistas ou mesmo a episódios de fascismo explicito em governos totalitários ou autoritários. Nas correlações de forças internas à Direita interfere também a capacidade de resistência das forças democráticas que lhes são externas e da repercussão internacional das políticas adotadas pelo governo.
Estabelecidas estas premissas e analisando-se a composição do ministério do novo governo percebe-se que os principais núcleos da Direita brasileira se encontram contemplados.
A Direita Concursada se reconhece no novo governo pela escolha do ex-juiz da “operação Lava-Jato” à frente de uma verdadeira Gestapo, com os poderes próprios da pasta adensados para agregar o controle da COAF (movimentações financeiras), de todas as polícias federais e do registro sindical (antiga atribuição do extinto Ministério do Trabalho), permitindo-se antever seus próximos alvos. Vê-se contemplada também no Ministro da Educação, comprometido com o “Escola Sem Partido” e com a limitação do acesso dos pobres aos cursos superiores.
A Classe Média Ressentida, e o Empresariado se comprazem com a extinção do Direito do Trabalho, tal como historicamente conhecido, e com as prometidas privatizações, a entrega da previdência a fundos privados nos moldes dos chigacoboys no Chile, com combate à corrupção e à criminalidade, como as medidas anunciadas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes.
As Igrejas comemoram a indicação da pastora que viu Jesus na goiabeira, na pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o perfil conservador dos demais ministros, entre os quais os da Educação e das Relações Exteriores.
Os militares, desde o auge da ditadura de 64, nunca tiveram tanto espaço político de poder. Os próceres da direita fardada, estão em vários Ministérios, inclusive aquele que tutelava o STF até há pouco. As polícias, fardadas ou não, nos Estados e municípios, assim como todos os que, em récua, defendiam a “intervenção militar constitucional” sentem-se no poder, e legitimados a serem menos estritos no cumprimento de manuais de procedimento elaborados pelos “esquerdistas” dos governos anteriores.
O agronegócio festeja a nomeação de um réu em processo ambiental para a pasta do Meio-Ambiente. Um dos seus estará no comando. E com a pasta da Agricultura, comprometida com a indústria dos agrotóxicos. Os “produtores rurais” que enriqueceram nos governos da esquerda e que desfilaram em massivas carreatas por Bolsonaro em 2018, têm a certeza de que seus interesses estão bem representados no governo.
O ministro da Ciência e Tecnologia, um astronauta inculto, vendedor de travesseiros, e o constrangedor ministro das Relações Exteriores atendem às expectativas de todos as facções da Direita. Com eles sentem que terão “seu país de volta”. Quanto a isto não paira dúvida. O governo Bolsonaro, aprofundando o que já havia sido iniciado por Temer, devolve o país ao passado, não necessariamente de modo harmônico.
Obviamente alguns interesses de integrantes de cada grupo serão contrariados pelas políticas que serão adotadas pelos Ministérios que representam outras facções da direita. A reforma da previdência prejudicará parcela significativa dos militantes e apoiadores da Direita, seja no setor público, seja no setor privado. O “combate ao déficit público” contingenciará os vencimentos de boa parte da Direita Concursada. Grupos econômicos laicos resistirão a eventuais privilégios a conglomerados educacionais confessionais. O Judiciário, ainda que militarmente tutelado em sua cúpula, valorizado durante o Golpe, pode vir a criar alguns entraves a algumas das políticas reivindicadas pelos outros grupos de Direita. A previsível preferência do governo pelos meios de comunicação ligados às igrejas evangélicas pode vir a desagradar boa parte da mídia hegemônica, e assim por diante. Desta correlação de forças, dentro do bloco dominante, em contraposição às forças democráticas resultará a materialização das políticas públicas e o caráter mais ou menos fascista do governo que se iniciará dentro em breve.
Inegável, porém, que estão presentes diversos insumos que, dependendo das mencionadas correlações de forças políticas, podem se configurar em fascismo desabrido ou contido. Disputando protagonismo, cada facção procurará “mostrar serviço”, empoderando-se internamente segundo seus próprios interesses.
A Direita Concursada, depositária das expectativas da direita punitivista, com características de transversalidade em todas as classes sociais procurará, desde logo, ampliar a repressão aos movimentos sociais, políticos adversários e a perseguição aos seus líderes. Será fundamental para a manutenção dos índices de aprovação do novo governo alimentar a mídia golpista com informações diárias de “operações” conjuntas do Ministério Público e da Polícia Federal. Como sempre, essa atuação será seletiva, contra a esquerda, mas também poderá atuar contra setores da direita que, de uma maneira ou de outra, representam “a velha política”. O aparato repressivo do Estado tentará se consolidar como principal esteio do novo regime, ampliando-se a repressão, ainda que à custa de violações dos Direitos Humanos. Muitos de seus integrantes, abertamente fascistas, por leniência ou por estímulos impudicos, tentarão se destacar impondo suas peculiares maneiras de compreender a realidade. Obviamente esse excessivo protagonismo poderá incomodar os próceres das demais facções, causando fricções e tensões entre elas.
O Empresariado, por intermédio do superministro da Economia e dos Ministérios do Meio-ambiente e da Agricultura, tentará aproveitar a alta popularidade inicial do novo governo para acelerar implantação das medidas neoliberais mais austericidas. Se contará com o apoio da Classe Média Ressentida, da Direita Concursada e das Igrejas quando essas medidas atingirem apenas os pobres (contratos de trabalho ainda mais precários com a “carteira de trabalho verde e amarela”; privatização das estatais; terceirização ampliada a maior número de atividades à iniciativa privada, apenas para citar algumas). Certamente parte delas ficará “decepcionada” quanto ao conteúdo de algumas “reformas” (aumento da contribuição dos funcionários públicos, aumento da idade mínima para as aposentadorias, cobrança de serviços médicos ou educacionais na rede pública, como exemplos) ou quando se derem conta das consequências concretas das demais políticas de austeridade inerentes ao neoliberalismo extremado reclamado pelo Empresariado. Não haverá como contemplar ao mesmo tempo todos os interesses contraditórios e antagônicos das distintas facções da direita. Para atender uns, necessariamente desagradará outros. A reprimarização da economia brasileira pelo avanço do agronegócio somado a superexploração do trabalho enfraquece e desindustrializa outro setor da burguesia. As políticas de Menos Estado e Mais Mercado, mantras da direita neoliberal, não são compatíveis com os interesses corporativos do funcionalismo público, assim como o combate ao déficit público implica alteração nos direitos à aposentadoria digna. Também aqui serão verificadas tensões.
As Igrejas tentarão também, desde o início do novo governo, por intermédio do Ministérios da Educação, da Ciência e Tecnologia e das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, impor seu protagonismo. Propostas moralistas, contra a cultura e contra a liberdade de cátedra nas escolas (e não apenas no ensino superior), contra as políticas públicas para pobres (repasse da outorga das bolsas-famílias às igrejas, fomento ao ensino religioso nas escolas, privilégios nas verbas públicas para os meios de comunicação confessionais, etc), tendem a desagradar setores do Empresariado e setores laicos da Direita Concursada e da Classe Média Ressentida. Novas fricções internas às diversas facções da Direita podem ser esperadas.
Ainda que os Militares mantenham seus privilégios e até os ampliem, suas demandas por crescentes investimentos bélicos podem vir a se apresentar como contraditórios às demais políticas de austeridade. Demais disso, a patente do vice-presidente sendo hierarquicamente superior à do presidente eleito certamente causará algum nível de desgaste nas relações com as outras facções. A presença de muitos fardados nos ministérios e no comando de diversas estatais, se em um primeiro momento contempla a caserna, pela própria característica do estamento militar, pouco permeável às negociações políticas, em algum momento ampliará as tensões internas à direita no governo. Em todas as outras experiências concretas de fascismo, a invenção de um “inimigo externo” se fez necessária. Aparentemente escolherão a Venezuela. Não se descarta a mobilização de tropas para a fronteira norte, com o apoio estadunidense. Essa beligerância, se tem o condão de atender às expectativas de muitos setores fascistas, pode desagradar segmentos também pacifistas nas Igrejas, nas Classes Médias Ressentidas e mesmo na Direita Concursada.
Impossível fazer-se um inventário completo das potencialidades dos conflitos internos às facções direitistas que compõem o bolsonarismo. Todavia, o que consta dos parágrafos anteriores basta para demonstrar a possibilidade de contradições no bloco de poder e a certeza de que cada segmento da Direita terá pressa em se apresentar como hegemônica. Obviamente haverá resistências, dentro do próprio governo, e também externas, de setores democráticos, dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda. A resultante desta correlação de forças ainda é uma incógnita. Todavia, consistiria em tolice descartar uma fascistização do regime, para impor a ordem, um sentido e uma direção com pretensões totalitárias.
4. Considerações finais.
Na composição de forças que resultou na eleição de Bolsonaro estão presentes várias, se não todas, daquelas características identificadoras do fascismo.
O anti-esquerdismo foi utilizado desde o início da campanha eleitoral, além de ter singularizado as quase três décadas de atuação parlamentar prévia do presidente eleito. Os elogios ao coronel torturador, o desprezo pelos direitos humanos, os insultos à esquerda são constitutivos das personas públicas de todos os integrantes do clã Bolsonaro. A pose símbolo da campanha fazendo arminhas com as mãos não é fortuita, assim como não o são as bravatas de “acabar com os petistas”. Está presente nas cinco facções que compõe o governo e nos demais setores sociais, alguns abertamente fascistas, que se articularam em torno do “antipetismo”.
O presidente eleito se apresentou como o candidato “antissistema” (“contra tudo isso que tá aí, talquei?”), conseguindo personificar a negação “dos políticos”, dos que sempre estiveram no poder. Como na Itália, como na Alemanha, onde os fascistas combateram “a velha política”, Bolsonaro empolgou grande parte da população se apresentando como outsider, mesmo diante das evidências em contrário.
Sua campanha, desde o início, mobilizou fazendeiros e pequenos empresários e, mais importante, mobilizou os jovens urbanos que nele identificavam “o mito” voluntarioso e intimorato. Seu carisma foi sendo urdido e desenvolvido ao longo do tempo e terminou por mobilizar, via redes sociais, milhares de militantes voluntários (muito além da mera, fraudulenta, utilização de robôs e perfis falsos) no cotidiano dos bairros populares. Muitos destes militantes se organizaram em gangues armadas, que deram tiros na caravana do presidente Lula no sul do país, que intimidaram militantes da esquerda no extremo norte, ou que espancaram estudantes e sindicalistas em várias cidades brasileiras durante a campanha eleitoral, e mesmo após, com atentados contra sem-terra e contra negros, índios e homossexuais. Não há nenhuma indicação no sentido de que tais práticas sejam moderadas a partir do novo governo.
A trajetória do eleito sempre foi em defesa do capitalismo. Orgulha-se de ter votado contra projetos que criavam direitos aos trabalhadores domésticos, sempre defendeu menor participação do Estado na economia. Se nos anos trinta os fascismos se articularam defendendo publicamente (na prática, não necessariamente) um maior papel do Estado na economia (como instância totalizadora, que integraria os interesses da nação), na contemporaneidade os fascismos são ainda mais capitalistas, ultraliberais.
Por outro lado, mesmo sendo católico de origem, se fez batizar por um conhecido líder evangélico em Israel, casou-se com uma evangélica, e contou com milhões de militantes cristãos voluntários, nos bairros, dentro dos transportes coletivos, em todos os lugares, que, com a bíblia na mão defenderam sua candidatura. Foi apoiado oficialmente por várias igrejas evangélicas e por dignatários do clero católico desde o início, com a decisiva adesão das televisões e rádios cristãs, de todas as denominações.
Envergando o figurino de “salvadores da pátria”, contra os malvados esquerdistas que “destruíram o país”, os militantes do Bolsonarismo reivindicaram o verde e o amarelo da bandeira nacional “que jamais será vermelha”. De uma maneira algo contraditória, para os dotados de razão, conseguiu encarnar o nacionalismo mesmo batendo continência à bandeira estadunidense e ao estafeta que lhe visitou em nome dos interesses estrangeiros. Ele e seu vice são percebidos como nacionalistas e patriotas. A estética militarizada dos eleitos e a composição do ministério não deixam dúvidas quanto a isso.
Poder-se-ia objetar que faltam ao governo Bolsonaro alguns elementos que estiveram presentes nos fascismos históricos europeus. Os fascistas europeus eram antiliberais, creditavam a crise econômica ao capitalismo predador e financeirizado. Mas todos haverão de concordar que a crítica ao liberalismo se constituía na crítica à crise capitalista, principalmente depois de 1929. A crítica bolsonarista é aos efeitos de outra crise capitalista, a de 2008, que os governos esquerdistas, com suas “políticas desastrosas”, não souberam debelar. Bolsonaro é neoliberal, quer menos Estado. Os fascismos históricos eram estatalistas, para privilegiar as indústrias nacionais obtendo com isso o apoio do empresariado. Na contemporaneidade esse apoio no patronato depende do oposto, o compromisso exigido pelo capital vincula-se à fé no Mercado. Mas, em ambos os casos, há a identificação de um inimigo a ser combatido. Lá, o capital financeiro, majoritariamente judeu, que sugava o dinamismo das empresas nacionais com juros usurários. Aqui, o inimigo é a política multipolar dos governos bolivarianos da esquerda. Diferentemente da Direita europeia, nacionalista, “antiglobalista”, Bolsonaro propõe um alinhamento aos EUA, valorizando um nacionalismo de novo tipo (no melhor estilo America First), igualmente “antiglobalização” em algumas oportunidades, aberto a todos os capitais internacionais, em outras. Em verdade, ninguém sabe que política externa adotará (e a indicação de um ridículo baixo-escalão para Ministro das Relações Internacionais não ajuda). Aparentemente, também isso está em disputa no campo da Direita.
Poderia ser objetado também que os fascismos históricos sempre escolheram um grupo a ser exterminado. No caso do fascismo alemão o estigma recaiu sobre os judeus, os ciganos e os homossexuais. Quem seria o “judeu da vez” sob Bolsonaro? Algumas pistas talvez já estejam disponíveis nos pronunciamentos do clã, mas seria açodado vaticinar a respeito. Seja como for, como nos demais fascismos históricos se antevê um acirramento na xenofobia e em propostas de proscrição de transexuais e de aculturação de todos os povos indígenas.
E quanto ao inimigo externo? Em todos os fascismos sempre os houve. Para o nazismo, os polacos, esta “sub-raça”, no início; todos os não-arianos, mais tarde. As mobilizações defensivas por parte da Venezuela, com acordos militares com a Rússia e o Irã, podem fornecer instigantes chaves interpretativas de alguns dos pronunciamentos dos filhos do presidente eleito, do futuro chanceler e do guru astrólogo radicado nos EUA.
Faltaria, também, algo que não sendo essencial para a caracterização do fascismo esteve presente em algumas experiências históricas: uma militância partidária violenta e militarizada. De modo formal, o bolsonarismo careceria até mesmo de um partido político forte. É verdade, ainda não o tem. As correlações de forças internas à direita no governo, todavia, podem levar a uma reorganização partidária, por fusão ou por outros expedientes, “para dar sustentação” às pretensões totalizantes e totalitárias de reformas institucionais e de imposição da “nova cultura” pretendida pelos fascistas, com militarização estética ou não.
De toda sorte, se ainda é cedo para se afirmar que viveremos um governo fascista no Brasil, seria estultice desconsiderar essa possibilidade. Sua configuração, ou não, dependerá, repita-se, das correlações de força entre as várias facções da Direita que o constituem, do maior ou menor êxito no cooptação de setores sociais que estiveram na campanha do candidato derrotado no segundo turno das eleições e da capacidade de resistência, interna e internacional, por parte dos democratas.
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(*) Wilson Ramos Filho, Xixo, é doutor em direito, professor universitário (UFPR/UFRJ) e presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.