Alguns leitores pediram que eu repetisse a fórmula adotada com Jaques Wagner, e acrescentasse comentários à entrevista de Fernando Haddad ao Valor. É uma oportunidade para fazer análise de conjuntura abrangente, usando um método quase dialético, de contraponto às respostas do entrevistado.
Meus comentários seguem em negrito, entre colchetes.
Valor: O que o senhor descobriu no eleitor que desconhecia?
Haddad: Conheci um eleitorado novo, muitas vezes pobre, ou remediado, ou empreendedor, mas que está no horizonte hoje da política com o qual a esquerda vai ter que aprender a lidar. É uma população que, a princípio, deveria estar sensível ao discurso contra a desigualdade, a intolerância, mas está vulnerável a um outro tipo de diálogo. Essa agenda dos costumes, em grande parte, foi artificialmente construída por partidos conservadores que decidiram pautar temas que não estavam na agenda. Foi artificialmente introduzida para criar clivagens não postas até 2010. Quem começa isso tudo é o PSDB do [José] Serra, introduzindo a religião na vida política, enorme irresponsabilidade.
[A resposta de Haddad inicia com uma autocrítica, que é uma virtude rara no PT, ao admitir que a esquerda precisa “aprender a lidar” com um eleitorado novo. Mas a autocrítica logo degenera em condescendência, ao afirmar que a população “deveria estar sensível ao discurso contra a desigualdade, a intolerância”. Não está comprovado que a população não esteja mais sensível, e sim que ela passou a olhar com desconfiança para quem profere discursos contra a desigualdade, o que é bem diferente. Temos aqui uma crise de credibilidade da esquerda, sobretudo em virtude das sucessivas crises de imagem em que os governos trabalhistas submergiram desde o escândalo do mensalão, e que não souberam ser resolvidas com inteligência. A esquerda ganhou as eleições de 2006, 2010 e 2014, mas o seu capital ético, o grau de confiança de que gozava junto à sociedade, sofreu muitos abalos nesse tempo todo, e mesmo que a situação pareça sob controle em 2010, quando Lula encerra seu mandato com grande aprovação popular, estava apenas superficialmente acobertada pela bonança econômica. A crise de confiança voltaria a emergir com muita força em 2013 e nos anos seguintes, alimentada pelos escândalos midiático-judiciais e pela falta de capacidade política do governo e do PT para gerenciar as crises. Quanto à agenda dos costumes, Haddad faz uma análise incrivelmente superficial, e até mesmo oportunista, atribuindo ao PSDB uma culpa que deveria antes atribuir às políticas de comunicação adotadas pelo governo de seu partido. Ao nunca pôr em discussão, seriamente, uma reforma da mídia, o governo Lula (e o conjunto de partidos que o apoiavam, incluindo PDT, PSB e PCdoB, também tem culpa no cartório) deixou o Brasil cada mais refém de programas sensacionalistas, onde o discurso religioso e a intolerância foram sendo inoculado mais e mais nos lares brasileiros. O PSDB apenas tentou explorar o que já estava no ar, mas não foi o PSDB quem introduziu o conservadorismo no país. ]
Valor: Mano Brown tinha razão ao dizer que o PT via parte do eleitorado do Bolsonaro como monstros?
Haddad: Ele não foi tão categórico. Estava no palanque e dei razão a ele no dia que falou. Eu não atentava a essa dimensão da vida nas periferias das metrópoles. Precisamos compreender e dar resposta.
[A observação de Mano Brown foi a mais poderosa denúncia já feita até agora contra a cultura da “lacração”, cujo maior defeito é se colocar num pedestal moral muito acima do resto dos mortais. Haddad admite que não “atentava” para o que ocorria nas periferias. Ocorre que não se trata apenas das periferias e sim do interior, dos centros urbanos, de toda a parte. Brown falou em “cegueira”, que atingiria ambos os lados do espectro político. O famoso rapper não se sentiu bem com a atmosfera triunfalista a seu redor, assentada numa mistificação deliberada da conjuntura, somada a uma demonização caricatural dos adversários. Brown é bem informado. Ele discursava na Lapa, Rio de Janeiro, onde Bolsonaro ganhara no primeiro turno com 58% dos votos, seguido de Ciro, com 19%, e Haddad, com 12%. Não havia nenhum indício real de “virada”; a eleição já estava perdida, e cabia ao PT assumir uma postura de autocrítica e humildade, se quisesse reduzir sua rejeição e conquistar parcelas maiores do eleitorado não-petista ou até mesmo antipetista. Um partido que vai às periferias exigindo gratidão, e batendo no peito que fez isso e aquilo, sem admitir seus erros, não tem condições de ouvir as bases e entender as novas demandas populares.]
Valor: O presidente da CUT, Vagner Freitas, disse, recentemente, que a eleição do Bolsonaro não foi legítima. Tinha ao seu lado a presidente do PT, Gleisi Hoffmann que disse ter sido uma fraude a eleição sem Lula. O senhor assina embaixo?
Haddad: Essa eleição vai ser analisada pela história sob vários aspectos. A ausência de Lula é um deles. As investigações sobre o WhatsApp e a maneira como o caixa dois foi utilizado para disparar calúnias contra nossa chapa, é outra. Assim como a ditadura militar foi saudada pelos meios de comunicação como uma coisa benfazeja e 50 anos depois vieram a público se retratar, a história às vezes exige tempo de maturação para que as coisas sejam colocadas no lugar.
[Eu assisti ao vídeo de Vagner Freitas, feito diante da Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, onde Lula está preso. Foi uma fala irresponsável. A eleição não foi uma fraude, pelo simples motivo de que dela participou o candidato do PT. Se o PT tivesse ganhado a eleição, seria fraude? A bancada federal que o PT conquistou foi eleita com fraude? Os governadores petistas foram eleitos com fraude? Nenhuma eleição, em parte alguma do mundo, é perfeita, porque não existem democracias puras. Em outras eleições, alguns candidatos, inclusive do PT, obtiveram milhões e milhões de reais de empreiteiras, inclusive confessadamente de caixa 2, e nem assim podemos considerar que houve fraude. Haddad deveria ter contestado duramente as falas de Vagner e Gleisi. Quanto à participação dos whatsapp na campanha, houve pesquisas sobre isso no decorrer da eleição, que afirmaram que ambos os lados foram prejudicados, e que a influência sobre a decisão do voto foi ínfima. Uma pesquisa Datafolha feita nos dias 24 e 25 de outubro de 2018, com 9 mil pessoas, afirmava, por exemplo, que um percentual de 44% dos entrevistados haviam recebido whatsapps com notícias negativas contra Bolsonaro, ao passo que 47% tinham recebido contra Haddad. Apesar da maioria dos entrevistados crer que a maior parte dos brasileiros acreditavam em notícias de whatsapp, os próprios entrevistados eram bem mais céticos: 53% disseram que não acreditavam em notícias de whatsapp. As pessoas enviam e recebem notícias negativas ou falsas, sem acreditar necessariamente nelas, apenas porque acreditam na sua utilidade na batalha política e eleitoral.
A mesma pesquisa informa que o whatsapp se tornou, de fato, a mais poderosa rede social do país: 65% dos brasileiros detêm conta na rede; destes, porém, apenas 24% compartilhavam notícias sobre eleições; mas 78% participam de grupos de whatsapp, de maneira que muita gente não compartilhava notícias eleitorais, mas lia, sem necessariamente acreditar.
Falar mal do adversário, por whatsapp ou não, faz parte do jogo. Agora, quando você tem um candidato de um partido muito rejeitado, visto pela maioria da população como um mero títere de uma outra liderança, que está presa, acusado (injustamente para muitos de nós, do campo progressista, mas não para boa parte da população, em especial no sul/sudeste) de corrupção, é claro que isso deixará o candidato muito mais vulnerável a campanhas de difamação.
Diríamos que o whatsapp foi, obviamente, determinante nessas eleições, mas ele era uma ferramenta à disposição de todos os candidatos. O PT optou por uma comunicação tradicional, engessada, analógica, infinitamente mais custosa financeiramente. E perdeu.
Culpar o adversário por ter feito um uso mais inteligente das redes sociais, em especial do whatsapp, ao invés de uma autocrítica por não ter pensado nisso, não vai nos fazer aprender com nossos erros e nos preparar melhor para as próximas batalhas eleitorais. A esquerda, então, perderá ainda mais em 2020 e 2022.
A referência à ditadura é um pouco estranha, porque não tem nada a ver com o processo eleitoral de 2018. Mas seria útil lembrar que, em relação à ditadura, Brizola fez uma dura autocrítica diante de jornalistas de esquerda – incluindo o grande Samuel Wainer – que o entrevistaram no Canal Livre, em 1980. Os jornalistas insistiam que Brizola apontasse alguns erros que ele mesmo, Brizola, e a esquerda em geral, haviam cometido. Hoje, parte da esquerda brasileira, contaminada de sectarismo e cretinismo, veria essa insistência por uma autocrítica como uma “traição”… Brizola enfim responde que o maior erro da esquerda foi ter esquecido a função determinante da classe média na mediação política entre as elites e os interesses populares. A esquerda, se tinha responsabilidade com o povo, jamais poderia tirar a classe média de seus cálculos políticos. Brizola conclui dizendo que, a partir dali, não se deixaria jamais radicalizar, e que trataria de se distanciar tanto dos setores subalternos ao imperialismo, como da pequena-burguesia radicalizada. ]
Valor: A diferença é que agora foi pelo voto…
Haddad: Foi pelo voto, mas com ausência do favorito em todas as pesquisas de opinião.
[Verdade. Lula estava ausente. E estava ausente por que estava preso, condenado em segunda instância por corrupção. Injustamente? Sim, mas é uma injustiça da qual o próprio Lula, e o PT, também tem responsabilidade, visto que levaram adiante uma política jurídica profundamente reacionária e fisiológica, entupindo tribunais superiores de juízes conservadores, em troca de um dúbio apoio no congresso, além de aprovar leis de exceção, como a da delação premiada e a própria ficha limpa, numa concessão perigosamente demagógica aos setores mais autoritários da sociedade.]
Valor: O senhor teve 31 milhões de votos no primeiro turno e 47 milhões no segundo. Esse salto, no segundo turno, seria reflexo do antibolsonarismo ou é o reflexo ainda da transferência de votos de Lula?
Haddad: É muito difícil estimar sentimentos. Quando as pessoas falam que foi o sentimento antipetista que elegeu o Bolsonaro, isso é meia verdade. Havia outros 10 candidatos que podiam ter ganhado apoio, que não apoiavam o PT. Mas as pessoas queriam votar no Bolsonaro. E no PT também. Essas duas forças sociais se impuseram. O discurso ultraconservador do Bolsonaro não é algo que possa ser desconsiderado. Representa uma união de propósitos inédita no Brasil, que venho chamando, inspirado na filósofa americana Nancy Fraser, de neoliberalismo regressivo com aliança conservadora nos costumes, na cultura, na ciência e nos direitos civis, que está expressa no ministério.
[O PT governou o país por 13 anos, ou seja, tinha um poderoso recall popular, tinha um grande tempo de televisão e recursos públicos eleitorais da ordem de centenas de milhões de reais; no campo da centro-esquerda ou esquerda, nenhum outro candidato tinha o armamento pesado do PT. Mas o problema é que o PT tinha, ao mesmo tempo, uma rejeição monstruosa na sociedade, e não era associado aos desejos de mudança do eleitorado.
O PT era visto, de certa maneira, como uma continuidade do processo de crise política que vinha assolando o Brasil, com muita força, desde 2013. Os votos do PT no primeiro turno foram extremamente concentrados no eleitorado iletrado, blindado contra as campanhas midiáticas e jurídicas de que o partido vinha sendo vítima desde muito tempo, sobretudo desde o início da Lava Jato. Mas entre o eleitorado minimamente letrado, residente em grandes cidades, o PT tomou uma vergonhosa surra eleitoral tanto no primeiro como no segundo turno.
Um partido de esquerda jamais pode perder apoio do eleitorado culto, que tem ferramentas intelectuais para criar uma postura crítica e independente da mídia corporativa. Aqui no Brasil, no entanto, isso se inverteu. Como os governos petistas foram incrivelmente incompetentes em matéria de comunicação, e não ajudaram a construir um sistema de informação que permitisse, ao menos, que as classes letradas tivessem um porto seguro para se defender dos ataques vindos do rentismo internacional (MBL, etc, todos esses movimentos foram financiados pelo rentismo, embora talvez nem eles mesmos tenham consciência disso), vivemos um processo intenso de degradação ideológica da classe média. Em muitas capitais importantes, como Rio, São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Florianópolis, Curitiba, Fortaleza, o candidato do PT ficou em terceiro lugar no primeiro turno. Um post publicado aqui no Cafezinho, por exemplo, mostra que Haddad, além de perder nas capitais citadas, ficou num distante terceiro lugar entre eleitores com ensino superior, igualmente em terceiro em segmentos importantes da classe média, e empatado com o terceiro colocado entre a juventude. Seria de bom tom, portanto, que Haddad não fosse tão arrogante ao falar que apenas “duas forças se impuseram”, tentando forçar a tese de que, no Brasil, só existem Bolsonaro e PT. Não é verdade, nem é saudável que assim interpretemos a realidade brasileira.]
Valor: O senhor corrobora com a tese de que a normalidade democrática nos EUA vai funcionar como barreira natural às ameaças do “trumpismo” e no Brasil, ao contrário, como não se tem instituições tão enraizadas, há chance de danos maiores?
Haddad: Temos uma sociedade civil mais frágil e um quadro institucional também mais frágil. Os EUA têm 200 anos de democracia. Nós temos 30. Nem que quiséssemos conseguiríamos construir em 30 o que eles fizeram em 200. Até pelo tempo de amadurecimento das instituições.
[Não sei se o quadro institucional no Brasil é tão frágil assim. O sistema é duro, injusto, mas não necessariamente fraco. Temos um dos judiciários e ministérios públicos mais fortes do mundo. Infelizmente, é às vezes também um dos mais canalhas. Mas, repito, isso é diferente de ser frágil.
De qualquer forma, o fortalecimento das instituições apenas se dá no confronto duro com as dificuldades. Vamos ver como as instituições se comportarão diante de Bolsonaro. ]
Valor: Mas a institucionalidade americana também se amolda a excepcionalidades que acabam se normalizando, como a legislação antiterrorista que foi aprovada no 11 de setembro e vale até hoje…
Haddad: Se mesmo lá há condições de manipular a opinião pública, dar drible nas instituições, imagine aqui. No Brasil há três núcleos diferentes no governo eleito, um que chamo de fundamentalista, cujo foco são os direitos civis, que une vários ministros de forma coerente. Depois tem o núcleo da economia, que é escancaradamente neoliberal e não está nem aí para direitos civis. Não vai aumentar imposto, então tem duas formas de acomodar: vendendo patrimônios, a agenda de privatizações radical, e cortando na carne. E tem um terceiro núcleo, que é o político, dado basicamente pelo Ministério da Justiça e pelos ministros militares. O destino do governo Bolsonaro vai depender do núcleo político que tem duas possíveis tarefas: a tutela e a intimidação.
[Não concordo com essa divisão. Acho que há cinco núcleos no governo: o núcleo neoliberal, liderado por Paulo Guedes, o núcleo militar, a ser liderado pela tendência que ganhar hegemonia nas Forças Armadas (isso ainda não está claro, e é aí que tenho um fiapinho de esperança), o núcleo fisiológico, liderado por Onyx Lorenzoni, o núcleo jurídico, liderado por Sergio Moro, e o núcleo ideológico, liderado pela família Bolsonaro. Todos esses núcleos são muito poderosos, cada um à sua maneira. Todos tem poder de derrubar ou sustentar o governo. A tutela e a intimidação não virão necessariamente do governo Bolsonaro, mas sim do mesmo consórcio que vem atazanando a democracia há tempos: a aliança entre mídia e justiça. É daí que nasceu o buraco negro que vem sugando as forças políticas e econômicas. ]
Valor: Como vê o papel do PT, não como um cientista social, mas como liderança do principal partido de oposição?
Haddad: Em meu diálogo junto às bancadas, em Brasília, disse que é muito difícil termos um bloco monolítico de oposição. Precisaremos ter que a agilidade necessária para angariar apoio e evitar retrocessos drásticos. Talvez sejamos minoritários no Congresso sobre temas como a venda da Embraer, mas em relação a direitos civis, talvez sejamos majoritários.
[Haddad tem razão. Haverá temas em que a esquerda será massacrada impiedosamente. Mas há outros nos quais ela pode costurar maiorias. Essa é a razão pela qual é preciso uma oposição inteligente, aberta ao diálogo, à conversa, e que procure reconstruir pontes do campo progressista com o centro político da sociedade, e mesmo com eventuais segmentos da centro-direita democrática e com o liberalismo “esclarecido”.
É importante, todavia, que a esquerda não caia na armadilha fácil de consumir todas as suas energias gritando contra os espantalhos montados por essa extrema-direita colonizada, que se diz “liberal” em economia e “conservadora” nos costumes. A defesa dos direitos civis, sociais e democráticos é, evidentemente, a mais importante de todas, porque é a defesa da própria existência do regime democrático, mas essa é uma luta que será conduzida também, de maneira mais ou menos orgânica e natural, por todo o conjunto da sociedade, incluindo aí a imprensa corporativa e pelos autênticos liberais, estes ainda escondidos, desconfiados, sob a barra da saia da família Bolsonaro. ]
Valor: O senhor disse na campanha que a idade mínima da Previdência não podia ser tratada como tabu. A resolução do PT nem menciona isso. O senhor não teme que o partido acabe reforçando sectarismos?
Haddad: Advoguei na campanha que deveríamos fazer reforma dos regimes próprios e sentar à mesa como fizemos em 2003 e 2012, para mostrar aos servidores que é insustentável. Ah, não quer mexer na idade mínima? Então vai mexer em que? Qual a sugestão? Ouvi-los, até para que eles se convencessem também de que o melhor é mexer aqui e não ali.
[Um debate maduro e audacioso sobre a previdência seria muito bem vindo à esquerda. Uma das razões do declínio da esquerda democrática, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro, é que ela acabou por se tornar conservadora quando se trata de discutir atualização das leis trabalhistas e previdenciárias. Isso ocorre porque o núcleo político e ideológico das esquerda envelheceu, inclusive fisicamente. Alguns partidos e sindicatos acabaram controlados por conselhos de anciãos, desconectados das revoluções profundas que as novas tecnologias proporcionaram ao mercado de trabalho e até mesmo à longevidade humana. Não se trata de demolir direitos históricos do mundo do trabalho, mas de adaptá-los aos novos tempos. As novas gerações não querem ser exploradas no trabalho e tem tanto apreço pelos direitos trabalhistas e previdenciários como as anteriores. Talvez até mais. Mas ao mesmo tempo é uma geração mais empreendedora, vivendo num ambiente profundamente polarizado entre monopólios monstruosos, de um lado, e um universo de micro-empresas cada vez mais denso e pulverizado, de outro. Ou seja, há mais “patrões” no mundo do trabalho, repleta de pequenos empreendimentos cuja existência é proporcionada pelo advento de novas tecnologias. Essa nova burguesia passou a dominar o pensamento da classe média em muitos países, inclusive no Brasil, desenvolvendo uma filosofia própria, que o campo progressista, muitas vezes dominado por corporações de sindicatos estatais, ainda não entendeu. É uma burguesia liberal em economia e, geralmente, também nos costumes, altamente porosa a ideias sociais avançadas, mas que, pela maneira como se insere na economia, desorganizada e pulverizadamente, competindo ferozmente entre si, tende a um perigoso individualismo. Cabe aos estrategistas do campo progressista desenvolver teorias para trazer esses setores, que também integram o mundo do trabalho, e que precisam de um Estado democrático e forte que os protejam dos monopólios, para junto dos movimentos de vanguarda política. ]
Valor: Mas não é o que o PT fala. Acredita que sem oxigenar a máquina do partido, esse tipo de resolução vai deixar de ser editada? Por que não disputa a presidência do PT?
Haddad: Tudo tem seu tempo. Meu posicionamento na campanha tinha o aval do PT.
Valor: Se o PT só discutir essas questões nas eleições como vai mudar sua relação com a sociedade?
Haddad: De quando é?
Valor: Da última reunião do diretório, de dez dias atrás.
Haddad: Nem li a resolução
Valor: Não dá para acreditar.
Haddad: Juro por Deus. Estava no exterior. Tô cheio de trabalho preparando o ano letivo que vem. Fiquei três meses de licença. Tô lendo tese acadêmica, não de partido.
Valor: Mas é uma resolução de balanço do desempenho do partido na eleição em que o senhor foi o principal candidato.
Haddad: Nem no Brasil estava.
Valor: Não dava para acessar pela internet?
Haddad: A resolução foi refeita…
Valor: Só alguns temas polêmicos e sem consenso foram retirados, mas o cerne foi mantido.
Haddad: Vocês cobram do PT o que não cobram de nenhum partido. Nem o governo eleito tem programa. Mal acompanho a imprensa. Sou professor universitário. Tô fazendo meu trabalho, tentando organizar minha vida. Pedi 30 dias para me organizar. Pagar minhas contas. Ver o boleto que foi pago.
[Haddad adota aí um discurso bipolar. Uma hora ele põe o PT acima de tudo e todos, enfatizando o tamanho do partido, inclusive ignorando a mera existência de outras forças dentro da esquerda; em outra hora, ele reclama porque a imprensa não “cobra” isso de nenhum partido. A cobrança de um posicionamento claro do PT sobre os mais diversos assuntos não é nenhum demérito: é um elogio que a sociedade faz à legenda. Quando as mais diversas vozes, à direita e à esquerda, cobram autocrítica, posicionamento, posturas, ao PT, isso deve ser considerado como o maior elogio que se faz à legenda. É profundamente lamentável, por isso mesmo, que o partido reaja com hostilidade a essas cobranças, ou então que procure fugir pela tangente como fez Haddad. Uma entrevista é para responder às perguntas sobre seu partido. É um tanto surpreendente que o petista simule desconhecer as resoluções de sua própria legenda. Ora, que espécie de liderança ele pretende ser? Mesmo que alegue não ter lido a resolução, o que é um absurdo, Haddad sabe que o seu conteúdo é resultado de um debate que antecedeu sua materialização, e como candidato à presidente da república, além de um intelectual refinado, é lógico que ele está à par de tudo. Tomar posição sobre os temas políticos mais importantes é obrigação das lideranças partidárias, ainda mais daquelas que aspiram a liderança sobre o conjunto da sociedade. Isso implica, naturalmente, em risco. Quem toma posição, também vira alvo. Mas esse é o papel da liderança, assumir esse tipo de risco. Em caso contrário, nos contentaríamos apenas com lideranças medíocres, sem posição definida sobre nada, que apenas repetem platitudes, que fingem desconhecer até mesmo as resoluções de seu próprio partido, e que tentam, com isso, agradar a todo mundo.]
Valor: Se ressente da falta de autonomia naquelas duas primeiras semanas do segundo turno?
Haddad: Ao contrário do que parece, o constrangimento maior foi no primeiro turno.
Valor: Por que?
Haddad: Pelo fato de termos muitos candidatos, um programa recém-lançado. Já no segundo turno, na primeira reunião, praticamente já recebi carta branca.
Valor: Mas nos primeiros dias do segundo turno o senhor parecia procurar um rumo…
Haddad: O que nos tirou o foco no começo do segundo turno foram as fake news do WhatsApp. A gente demorou a entender o que havia acontecido. Até a matéria da “Folha de S.Paulo” não tínhamos ideia do que havia acontecido.
[É impressionante como o PT unificou seu discurso em torno dessa história dos whatsapps. Uma matéria na Folha, que não apresenta uma mísera prova, um documento, nada, se tornou a informação em que o PT passou a fundamentar toda a sua análise de conjuntura sobre a derrota eleitoral. Aliás, durante a própria campanha, o PT parecia dar mais atenção aos whatsapps vindos do campo adversário do que em oferecer propostas convincentes à sociedade. Fake news ridículas mereciam uma atenção enorme da campanha, de maneria que os adversários, notando essa fragilidade, passaram a fazer troça. Bolsominions chamavam Haddad de “pai do kit gay” não mais porque acreditavam nisso, mas porque entenderam que isso havia se tornado um ponto-fraco da campanha adversária. Ao invés de assumir o discurso em favor da comunidade gay, ao invés de optar pela ousadia, pela audácia, pela afirmação, a campanha petista optou pelo recuo, pelo medo, pela negação. Nunca fizemos kit gay, repetiam os petistas, enquanto Bolsonaro, notando a brecha discursiva deixada pelo PT, tratou de fazer vídeos ao lado de eleitores gays. Ou seja, Haddad perdeu votos dos anti-gays e também… dos gays! ]
Valor: Vítima que que foi das notícias falsas, se arrepende de ter repassado a acusação do Geraldo Azevedo contra o general Mourão?
Haddad: Você está comparando coisas diferentes. Dei visibilidade a uma pessoa que respeito e sei que foi torturada pela ditadura. E que no dia em que fez isso, teve oportunidade de se retratar. Se isso tivesse acontecido comigo talvez hoje fosse presidente da República. Se Bolsonaro fizesse acusações a mim face a face, como eu fiz, as coisas iriam se elucidar. O que ele fez foi oposto. Dei voz a um torturado, que reconheceu o equívoco no dia. Não houve prejuízo à imagem de Mourão. Com o WhatsApp não se consegue fazer essa reparação.
[O erro de Geraldo Azevedo e do próprio Haddad foi uma coisa muito infeliz, que acabou por desmoralizar um bocado a gritaria petista contra fake news. Seria mais digno se Haddad simplesmente pedisse desculpas a Mourão, apesar de ter apenas vocalizado uma informação que tinha saído na mídia. ]
Valor: Voltando ao PT, ao abdicar de disputar os rumos do partido o senhor não está abdicando também a interlocução com a sociedade? A crise do Macron não mostrou a crise da desintermediação?
Haddad: O Alckmin vai assumir a Presidência do PSDB? [ o tucano na realidade já é presidente da sigla] O Ciro vai assumir a Presidência do PDT?
Valor: Eles não saíram da eleição com a força eleitoral como a sua.
Haddad: Lula não é presidente do PT há quanto tempo? Não é verdade que seja necessário estar na presidência do partido para contribuir como militante, professor. Pelo contrário, muitas vezes a estrutura burocrática te sufoca. O dia a dia é exigente. Teria que parar de lecionar. Quero contribuir da maneira como acho que faço melhor.
[Bem, aí Haddad e PT terão que se decidir se há pretensões de fazer de Haddad, como tem dito Gleisi Hoffmann, a “principal liderança de oposição”. Será difícil que Haddad assuma esse papel se continuar dando entrevistas dizendo que não conhece a resolução de seu próprio partido, que precisa “pagar boletos”, que pode contribuir como “militante, professor”, ou lamentando que tenha de “parar de lecionar”. Com certeza, sua contribuição à sociedade como professor no Insper, faculdade ultraliberal de São Paulo, frequentada apenas pela elite endinheirada, tem sua importância, mas o momento do Brasil pedirá lideranças que se dediquem em tempo integral à causa democrática. O PT é o partido mais bem sólido, em termos financeiros, da esquerda, apesar dos recentes percalços, além de possuir uma enorme militância, disposta a ajudar sempre que necessário. Não creio que a questão econômica fosse um problema relevante para Haddad.]
Valor: Em suas viagens deve ter constatado que a desintermediação de partidos não levou ao maravilhoso mundo da democracia. Há saída fora de estruturas partidárias?
Haddad: Estou de acordo. Mas nós não apenas reforçamos antigos laços de mediação nessa campanha, sobretudo no segundo turno, como estamos totalmente conscientes de que esta é uma tarefa do próximo período.
Valor: Se sente representado na mediação que o PT oferece hoje?
Haddad: Qual é o partido que hoje oferece essa mediação? O PSL? É a segunda maior bancada. Dá para chamar de partido? Partido mesmo na acepção da palavra que sobreviveu a esse cataclisma do sistema político foi o PT. Quem governou o país depois da ditadura foram o MDB, o PSDB e o PT. O MDB e o PSDB caíram pela metade. Soçobraram na crise. E emergiu uma coisa que a gente não sabe o que é. É uma coisa muito nova ter 30% dos ministérios na mão dos militares. Eu já imaginava há dois anos que a extrema direita ia ter um papel muito grande na disputa presidencial. Mas da maneira como se configurou é uma novidade: fundamentalismo religioso, neoliberalismo e caserna.
[Aí Haddad menospreza outros partidos aliados, como PCdoB, PSB, PDT, PSOL e Rede. Reparem nessa frase: “Partido mesmo, na acepção da palavra, que sobreviveu a esse cataclisma político, foi o PT.” Que isso, Haddad? Quer dizer então que é assim que você paga o apoio recebido pelo Psol no segundo turno? Assim que paga o acordo infame de “neutralidade” fechado com o PSB? Assim que você paga o suporte que o PDT deu aos governos petistas ao longo de tantos anos? Será que o PT não se dá conta que esse menosprezo é muito pior que xingar? Se Haddad fizesse críticas duras a outros partidos, vá lá. Mas ignorar sua existência? Alguns desses partidos, como PSB e PDT, governam centenas de municípios, possuem milhares de parlamentares municipais, estaduais, federais, tem senadores, governadores. Se enfrentaram, nos últimos anos, uma grave crise de representatividade, isso se deveu também ao hegemonismo petista, que tem um lado natural, quase selvagem, que não se pode culpá-lo, que se compreende e perdoa, mas também tem um lado menos altruísta, em que o partido preferia dar espaço à direita fisiológica a deixar que seus parceiros se fortalecessem. Vide o caso do PSB, com o qual o PT tinha um acordo informal de ceder a vaga a presidência da república em 2010. Hoje sabemos que, a Eduardo Campos, foi oferecida a condição humilhante de vice da Dilma. Isso ajuda a explicar os movimentos de Campos em 2014… O PT empurrou muita gente boa para a direita, ou melhor, para uma falsa imagem de direita. Em que Eduardo Campos, do PSB, por exemplo, ou mesmo Marina Silva, seria presidentes mais conservadores do que Dilma? As acusações que fazíamos a Marina, de que ela faria um governo conservador, aliado ao sistema financeiro, ficaram desmoralizadas quando Dilma nomeia Joaquim Levy, homem forte do Bradesco, para o cargo de ministro de Fazenda.
Além do mais, Haddad parece esquecer que essa sobrevivência do PT enquanto partido é concomitante ao fato de ser uma legenda que tem boa parte de suas lideranças na cadeia, prestes a serem presas ou sob acusações gravíssimas (justas ou não) de corrupção. Esse fato, que não é singelo, continuará cobrando um preço político alto ao partido durante as próximas eleições. Mais uma razão para ser humilde e tratar os outros partidos de igual para igual.]
Valor: Há viabilidade para um novo partido de centro no Brasil?
Haddad: Estive com o Bernie Sanders, o [Yanis] Varoufakis lançando a internacional progressista. A preocupação de todos é que mesmo governos liberais, no sentido clássico, estão envelhecendo precocemente. O centro está se esvaziando. Tanto [Emmanuel] Macron quanto a [Angela] Merkel começam a perceber o esvaziamento do centro político da Europa, com tensões que jogam na direção do retrocesso da União Europeia. E, do outro lado, uma esquerda confusa entre o nacionalismo e a radicalização do federalismo. No Brasil não temos centro. O Bolsonaro criou um centro entre ele e o PT, que não está articulado. É o que foi derrotado nas eleições. Essa centro-direita pode se organizar num partido. Haverá movimentos nesse sentido. Não é ruim para o país. Fica mais fácil colocar uma barreira à regressão de direitos civis.
[Essa “internacional progressista” ainda é apenas uma intenção. Os eventos de que participou Haddad nos EUA, recentemente, não foram o lançamento oficial de nada. Houve um debate em que Haddad participou ao lado de Varoufakis, e no qual Bernie Sanders esteve presente, como ouvinte. Além do mais, se o PT se pretende democrático, e se leva a sério essa frente, precisará discutir abertamente com a sociedade a participação brasileira nesse processo. Quais seus objetivos? Qual o papel dos EUA nela? A história já nos ensinou, há muito tempo, que a esquerda do império não costuma ser tão progressista na relação com a esquerda da periferia. Tratar a presença numa frente como mais um “aparelho” partidário, no atual contexto da política brasileira, será um erro pueril. Isso seria cobrado, naturalmente, de qualquer partido ou liderança que viesse a compor uma frente similar. Recentemente, a presidente do PT foi convidada para um congresso na Africa do Sul, organizado pelos partidos no poder (ou próximos do poder) dos governos que compõem o Brics. Como o PT divulgou o fato? “O PT foi o único partido do Brasil convidado a tal evento; iremos lá para defender Lula livre”, essa foi a comunicação oficial do partido. Ora, é assim que o PT pretende liderar a esquerda no país? O mais adulto seria ter marcado uma reunião com lideranças dos principais partidos de esquerda, incluído aí também alguns representantes da sociedade não-partidária, e conversar sobre uma pauta unificada, até mesmo para valorizar o evento. A postura do PT simplesmente tirou qualquer importância desse encontro. Se agisse com um pouco mais de maturidade, o próprio PT sairia fortalecido. Não é possível que todo o discurso no segundo turno das eleições, sobre uma aliança democrática, seja esquecido tão rapidamente.
Sobre o “centro político” entre PT e Bolsonaro, de fato, ele existe. Era este centro que poderia ter feito a balança pender para o lado progressista, e essa foi, justamente, a razão pela qual se insistiu tanto num candidatura não-petista, para conquistar este centro, importante não apenas para a vitória eleitoral como para garantir a governabilidade. ]
Valor: Que partidos o senhor coloca nesse espectro?
Haddad: Não sei se são partidos inteiros, tem gente do PSDB que não é da linha do Doria, PV, PPS, setores do MDB. Tem uma chance embora haja uma heterogeneidade grande.
Valor: Como o senhor vê a equação política do futuro governo Bolsonaro no Congresso?
Haddad: Aposta arriscada demais essa ideia de compor por bancadas temáticas. Talvez seja um primeiro movimento para dar satisfação à sociedade de que não haverá toma lá dá cá, e depois não seja possível evitá-lo.
Valor: O fato de ele estar exposto nessa vidraça dos depósitos dos assessores parlamentares a duas semanas da posse afetará a formação de sua maioria no Congresso?
Haddad: O núcleo político é de tutela e de intimidação. Ele teve acesso ao relatório do Coaf, no mais tardar, no dia 15 de outubro. Data em que demitiu o motorista e a filha. Por que teve acesso ao relatório e a sociedade não? São questões que precisam ser respondidas. Por que o Coaf liberou para Bolsonaro e não para a sociedade questões que são de interesse público? Esse expediente, que ao que parece é de peculato, o de usar seu gabinete para fazer vaquinha para si mesmo, é um expediente muito comum no baixo clero. Inexplicável é que só tenhamos sabido agora. Como esse núcleo vai operar é importante saber. Desde o tuíte do Villas Boas, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo, essa interferência, definitivamente, veio à mesa. Qual é o significado disso? Tutela ou intimidação. Você tem um jogador do banco de reserva que está no aquecimento antes de começar o jogo.
[A observação acerca do “peculato”, e “fazer vaquinha para si mesmo”, é uma acusação sem prova, e, portanto, irresponsável. É natural que um militante de internet faça isso. Não uma liderança. Se o assessor de Flavio Bolsonaro movimentou 1,2 milhão de reais no espaço de um ano, quatro assessores de Andre Ceciliano, deputado petista na mesma Assembleia Legislativa, movimentaram quase 50 milhões de reais no mesmo intervalo de tempo. Assessores de Paulo Ramos, do PDT, movimentaram 30 milhões. Nenhum deputado pode ser culpado por eventuais crimes ou irregularidades fiscais cometidas por assessores. Outros assessores, de deputados de vários partidos, também movimentaram enormes quantias. Até um assessor do ético Carlos Minc, do PSB, registrou movimentos “irregulares”. Todos eles estão se explicando, e não se deve condenar ninguém antecipadamente.
Quanto ao tuíte de Villas Boas, é uma situação delicada; o general admitiu as terríveis tensões dentro das Forças Armadas, oriundas das acusações de corrupção contra o PT. O partido dos trabalhadores precisa entender que generais não são juristas democráticos, e a atmosfera criada pela Lava Jato produziu uma polarização ainda mais terrível e negativa que a polarização ideológica. Criou-se uma polarização moral, ou supostamente moral, entre investigados, acusados e citados pela Lava Jato, e aqueles que não foram tocados pela operação.
O PT poderia ajudar a desintoxicar o judiciário de sua embriaguez política e moral, mas para isso tinha que adotar uma estratégia totalmente diferente: ao invés de enfrentar quase que fisicamente o judiciário, realizando manifestações hostis diante de tribunais e prisões, poderia ter organizado (e sempre é tempo de fazê-lo) seminários científicos, despartidarizados, produzido revistas jurídicas em que os articulistas fossem decentemente pagos, ou seja, investindo recursos em inteligência, ao invés de gastar em passeios de ônibus, piqueniques, saraus e comícios em Curitiba. Ao não fazer nada disso, o PT apostou na radicalização de uma disputa que não tinha como ganhar. É neste sentido que muitos analistas falavam em opostos radicais no segundo turno. Não era porque PT e PSL tivessem qualquer semelhança. O PT é um partido democrático, moderado, mas a sua reação desorganizada, pouco estratégica, à prisão de Lula fez com que ele parecesse, à classe média, profundamente radical. Entre os mais destacados locutores no lançamento da candidatura Lula estavam lideranças do ultrarradical PCO (essas lideranças, aliás, usaram o tempo e espaço ofertado pelo PT nesses palanques para falar mal de… Ciro. Como é que o mesmo PT, que, segundo Haddad, convidava Ciro para vice – e logo para assumir, mais à frente a cabeça de chapa – deixava que o PCO assumisse o microfone nos dois eventos de lançamento da candidatura Lula? Ou seja, o convite a Ciro foi uma farsa.)
O PT foi tímido demais quando precisava ter sido assertivo, por ocasião dos julgamentos da AP 470 no Supremo Tribunal Federal e, mais tarde, durante o governo Dilma. Nesse momento, o PT tinha instrumentos. Governava o país. Tinha uma grande bancada no senado e na Câmara. Era o momento de ter levado adiante, com destemor, o debate jurídico. Não o fez. E aí, quando o partido, já imensamente fragilizado por uma sucessão de denúncias de corrupção, precisava adotar uma postura moderada, estratégica, apostando na inteligência e no debate intelectual, ele prefere apelar para demonstrações de força – e sem ao menos ter força! Tudo isso empurrou setores inteiros para a direita, porque o PT era identificado como toda a “esquerda”.]
Valor: O General Mourão?
Haddad: Sim. Está no aquecimento antes da partida. Para o bem da democracia temos que prestar atenção.
Valor: Essa condição dificultará sua agenda de reformas?
Haddad: Daqui a alguns dias toda investigação por atos praticados antes de sua posse estará suspensa. A Constituição estabelece isso. Depois só por atos praticados a partir da posse e por consentimento do Congresso. O presidente empossado é uma figura muito forte no Brasil.
Valor: O senhor disse que Ciro não soube fazer a coalizão com o PT. Segundo ele, essa coalizão foi interditada pela disposição de Lula de se manter aliado a Eunício Oliveira e Renan Calheiros. É fake news dele?
Haddad: Ciro é um amigo de quem gosto e respeito, mas o PDT apoiou o MDB no Ceará e fez coalizão com Renan Filho em Alagoas. Não vale a pena esse tipo de especulação. Não corresponde ao que estava em jogo. Os três candidatos do PDT a governador que foram ao segundo turno apoiaram o Bolsonaro. São fatos. Não juízo de valor. O PT e Lula tomaram a decisão de levar sua candidatura às últimas consequências. Decisão unânime. Aguardávamos o posicionamento da ONU sobre o tema. E a ONU só se pronunciou porque Lula não desistiu. Ciro tinha que ter aceitado ser vice de Lula para representar a todos na possibilidade de indeferimento da candidatura, mas seria muito difícil pra ele aceitar.
[O PDT apoiou Eunício Oliveira porque assim foi decidido por… Lula. A costura que Cid e Ciro tentaram fazer era dar a vaga a Dilma Rousseff para o senado do Ceará. Lula vetou. O PDT se submeteu à imposição de Lula no Ceará. Quanto a Renan, a critica de Ciro, a meu ver, é mais política do que partidária. O caso é o mesmo: a frente “lulista”, incluindo o PDT, decidiu apoiar Renan Calheiros ao Senado e Renan Filho ao governo do estado. O que causou constrangimento geral, no entanto, foi a exposição excessiva, incluindo fotos emblemáticas de Haddad e Renan fazendo coraçõezinhos.As imagens chocam.
Renan havia coordenado a votação do impeachment no Senado, e apesar de uma atuação realmente muito mais democrática do que a de Eduardo Cunha, ele tinha votado para derrubar a presidenta eleita, e nunca se pronunciou contra isso. Por que os petistas, depois de tanta luta contra o golpe, estavam tão dispostos a perdoar golpistas como Paulo Câmara, governador de Pernambuco, que havia mobilizado seus deputados para votar pelo impeachment, e Renan Calheiros e filho, que igualmente votaram ou se mobilizaram em favor do impeachment, e agredir, aberta ou sorrateiramente, Ciro Gomes, que largou o emprego assim que viu o golpe sendo armado, e ajudou a mobilizar a política e a opinião pública cearense contra o golpe?
Haddad fala que Ciro “tinha que ter aceitado ser vice de Lula”. Ora, isso corresponderia a um papel humilhante, para qualquer um. Lula e o PT sabiam que a candidatura de Lula não seria aceita pelo TSE. A história da ONU é balela, me desculpem, a ONU não apita, nem pode apitar nada no Brasil, o que seria violar a nossa soberania. Se Lula e PT sabiam disso, então o oferecimento do vice a Ciro significava que estavam dispostos a entregar a cabeça de chapa ao PDT. Se tinham essa disposição, então que entregassem-na de uma vez, permitindo a união das esquerdas, e possibilitando a Ciro fazer uma campanha digna, sem necessidade de visitas a presídio em busca de orientação, e gozando da liberdade de participar de debates, sabatinas e eventos como candidato a presidente, e não como um poste de Lula. Se Ciro fosse vice de Lula, teríamos uma chapa inteira aprisionada: Lula, por estar efetivamente atrás das grades, e Ciro, por não poder de participar de nenhum evento público orientado para candidatos a presidente, por ser um mero candidato a vice…
Na verdade, temos aqui um cinismo sem limite. Lula e o PT quiseram apenas humilhar Ciro. Eles sabiam que Ciro não iria aceitar, mas ao menos criariam um constrangimento político (uma “narrativa”) que permitiria, ao PT, repetir exatamente o discurso que Haddad faz agora. Esse tipo de cinismo lembra muito a oferta que o PT fez, aqui no Rio de Janeiro, de apoiar o Psol como cabeça de chapa ao governo do Rio de Janeiro, com a condição de que o candidato fosse Marcelo Freixo. Ora, se o PT tinha intenção real de apoiar o PSOL, não tinha que impor condição nenhuma. Tinha simplesmente que oferecer apoio ao candidato indicado pelo PSOL, que já tinha sido definido, e que era Tarcísio Motta, um excelente quadro, bom de discurso e bom de voto, e que, se tivesse vindo dentro de uma coalização mais ampla, que incluísse PT, PDT, PSB e PCdoB, teria muito mais chances, evidentemente, de chegar ao segundo turno e até mesmo de ganhar as eleições. O PT tentou apenas constranger politicamente o PSOL, para que fosse visto como uma legenda inflexível, sem disposição para o diálogo.
Quanto às críticas que Haddad faz ao PDT, e a seus candidatos a governo do estado que apoiaram Bolsonaro, ele tem razão. Mas é também a triste sina do PDT, desde algum tempo, de estar sempre expulsando deputados, senadores, candidatos a governo, que não apoiam o PT. O mesmo antipetismo que assumiu uma hegemonia esmagadora na classe média brasileira, também atingiu em cheio o PDT, que é um partido tradicionalmente de classe média. O PT, depois que ganhou o governo em 2002, e pode levar políticas públicas aos rincões esquecidos do Nordeste e regiões muito pobres do país, pode prescindir do voto da classe média. Outros partidos não podem se dar esse luxo: precisam da classe média para sobreviver politicamente. A rejeição ao PT na classe média, inclusive em seus extratos mais humildes, de eleitores com renda familiar de 2 a 5 salários, atingiu níveis estratosféricos logo no início dos processo eleitoral deste ano.
Ainda mais importante que isso, o PDT sofre um processo de esvaziamento político que vem desde o final dos anos 90, depois que Brizola, por uma margem ínfima, perde para Lula no primeiro turno das eleições presidenciais de 1989. A partir dali, o PT assume a hegemonia da esquerda. Muitos quadros do PDT irão migrar, ao longo dos anos, para o PT, incluindo Dilma Rousseff. O PDT sobreviverá, mas para isso terá que reduzir suas exigências ideológicas, meio que absorvendo as sobras do petismo. A eleição deste ano, por isso mesmo, representa um marco importante para a legenda, com a chegada de legiões de jovens idealistas que, desiludidos com o PT (visto como um partido da ordem, de governo, cheio de problemas complicados demais com a justiça) , viram no partido a oportunidade de participar da vida política nacional. Cabe ao PT, e à esquerda em geral, compreender esse processo com generosidade. É melhor que esses jovens venham ao PDT do que se deixem seduzir pelas ilusões neoliberais que o grande capital continua a vender, muitas vezes acompanhadas de bolsas de estudo, estágios bem remunerados e todo o tipo de oportunidade financeira. Nos últimos anos, montar um canal de youtube para falar mal do PT, por exemplo, se tornou a maneira mais fácil do mundo de ganhar dinheiro fácil. ]
Valor: Essa proposta foi feita ao Ciro claramente?
Haddad: As sondagens aconteceram desde janeiro no sentido de construir a unidade. Eu mesmo sentei nesta casa com Mangabeira Unger, levando minha consideração. Ponderei que a única chance disso dar certo era com a aliança montada dessa forma, pelo fato de o PT estar inteiramente fechado com a candidatura Lula.
[A candidatura de Lula, não canso de repetir, foi um delírio lisérgico. Até hoje não consigo acreditar que um partido tão experiente como PT, e um homem (até então) tão moderado e sensato como Lula, tenha cometido uma irresponsabilidade tão grande. ]
Valor: O senhor continua se encontrando com Lula?
Haddad: Com menos frequência porque os temas que me levavam até lá, como advogado eleitoral, cessaram. Continuo interessado em contribuir como advogado nos fóruns internacionais, sobretudo na ONU, quando temos a expectativa de haja julgamento no mérito, do plenário, porque, até agora, apenas dois conselheiros se manifestaram.
[Temos que ser muito generosos com o PT. Haddad precisa dizer que suas visitas a Lula se davam na condição de “advogado eleitoral”, porque é assim que obteve autorização da justiça. Essas pequenas fraudes são perdoadas pelo campo progressista, que vem marchando ao lado do PT durante todos esses anos, e que sente solidariedade por Lula, mas certamente não são recebidas com o mesmo sentimento por quem não tem essa história. ]
Valor: Terá reflexo para o processo judicial no Brasil?
Haddad: A decisão jurídica já está tomada no Brasil, mas para a história terá reflexo. A manifestação do pleno da ONU dizendo que Lula teve seus direitos desrespeitados e a soberania popular foi comprometida é muito importante. Uma figura como ele está pensando na história. Não no conforto da prisão. Tem 73 anos.
[A postura do PT nestas eleições, e do próprio Lula, de usar o sentimento de solidariedade contra uma prisão vista como injusta, como instrumento de chantagem para coagir o campo progressista a apoiar a sua postulação a presidência da república, sinalizando à militância que qualquer crítica à estratégia petista e ao próprio Lula eram desvios de ordem moral, o que acabou por produzir uma inacreditável hostilidade contra Ciro assim que este se apresentou como candidato, essa postura egoísta prejudicou muito o sentimento de solidariedade em relação a Lula. A partir de certo momento, os petistas começaram a agredir, intensamente, até mesmo quem defendia Lula, porque a defesa de Lula era vista como “oportunismo”, ou estratégia para “ganhar votos petistas”. Sem pensar em quanto eles prejudicavam a imagem do próprio Lula, petistas preferiam reproduzir críticas que Ciro fez a Lula do que suas inúmeras defesas. Quando se chegou nesse ponto, ficou claro que, para muitos, não se tratava mais de solidariedade a Lula e sim de uma disputa ávida por poder, convertida por fim num joguinho quase infantil de derrotados em busca de um segundo lugar. Essa postura perdura até hoje. A defesa de Lula só é admitida se vier acompanhada de submissão total ao PT. Ao adotar uma postura tão abertamente sectária, com a chancela da cúpula do partido, o PT transformou a defesa de Lula num monopólio do PT. Os defensores de Lula não-petistas agora pensam: peraí, para que defender Lula? Para ser humilhado e achincalhado pelos próprios petistas?]
Valor: O que o senhor vai fazer, disputar prefeitura, governo? Rodar o país, promover seminários?
Haddad: Não passa por minha cabeça disputar. Tenho convites para rodar não apenas o país, mas também de dezenas universidades da Europa e dos EUA. Falei com [Cuauhtémoc] Cárdenas várias vezes. Estive com o [Massimo] Dalema, [Dominique] Villepin, o Varoufakis, o Sanders, estou indo visitar o [Pepe] Mujica no sítio dele. Quero manter interlocução com essas lideranças.
[Diante da realidade sofrida vivida pelos brasileiros, seria de bom tom que Haddad pudesse incluir também, entre suas viagens, algumas universidades por aqui mesmo. A articulação internacional é fundamental, porém ainda mais importante é voltar a conversar, olho no olho, com os brasileiros. Como entrou na campanha presidencial apenas aos 40 minutos do segundo tempo, Haddad não teve tempo de fazer essas conversas. Agora tem. É mais barato e dá mais resultado. ]
Valor: E com a sociedade, como pediu o Mano Brown?
Haddad: Vou manter contato também, fui muito para a periferia, mas acho importante trocar experiências com o resto do mundo. Há uma preocupação sobre como enfrentar questões comuns.
[Mais uma vez, a resposta mostra um Haddad mais preocupado em fazer turismo político internacional do que visitar e ouvir, de fato, essa periferia que é a grande fiadora das eleições no país. Dizer que “fui muito para a periferia” é quase um escárnio. Deve ter ido algumas vezes fazer campanha. Mas é não desse tipo de visita que fala Mano Brown, quando menciona “voltar às bases” e “aprender a linguagem do povo”. Era o momento de Haddad, até mesmo pensando na disputa para a prefeitura de São Paulo em 2020, que será estratégica para todo campo progressista (não apenas para o PT), organizar uma série de ações para ouvir a periferia da maior cidade do país. ]