Publicado originalmente no Jornal da Ciência
Mudanças de conjuntura exigem mudanças de estratégias. Eis uma máxima da arte política que não deve ser ignorada. Parece uma obviedade, mas não é. Seria ingenuidade política e um equívoco estratégico se os defensores de determinadas agendas dos movimentos sociais adotassem, durante a vigência do governo Bolsonaro, a mesma agência política que tiveram nos governos anteriores. No entanto, é isso que está se desenhando, ao menos no que diz respeito à questão indígena.
Durante os treze anos de governos petistas, entre 2003 e 2016, o movimento social que agenda a questão indígena adotou uma estratégia bem clara de atuação: a pressão permanente sobre as instituições do governo federal responsáveis pela regulação do setor, em particular a Fundação Nacional do Índio, Funai. Como é sabido, pelo Estatuto do Índio, a demarcação de terras no Brasil não é realizada por leis, mas sim por atos do governo federal, via Funai.
Durante todo esse período a grande tensão sempre foi entre um Legislativo – em particular a bancada ruralista – ávido por assumir para si a responsabilidade legal pela demarcação das terras indígenas e um Executivo que não abria mão dessa tarefa.
Em 2007, o ex-presidente da bancada ruralista na Câmara de Deputados, Homero Pereira, apresentou o Projeto de Lei nº 490/2007 que visava alterar o Estatuto do Índio para trazer para o Legislativo a demarcação de terras indígenas. Mas o PL nunca obteve maioria para ser aprovado.
Na medida em que os governos federais (Lula e Dilma) mantinham certos compromissos com a pauta indígena, os movimentos sociais se posicionavam contrários ao PL. Era mais seguro ter a regulação do setor nas mãos da Funai do que nas mãos de um Legislativo aberto para a contradição de interesses. Mas agora a conjuntura mudou.
Apesar de não haver nenhuma linha sobre demarcação de terras indígenas em seu programa de campanha, sabe-se que a agenda do novo presidente é refratária ao tema. Basta uma rápida olhada em suas recentes declarações sobre o assunto:
“A política ambiental é péssima em nosso país. Se quiser fazer uma hidrelétrica, em Roraima ou no Vale do Ribeira, por exemplo, é impossível, tendo em vista a quantidade de terra indígenas, quilombolas, estação ecológica, parques nacionais. Tem que colocar um fim nessa política xiita que está sufocando o Brasil”, afirmou o parlamentar em entrevista ao G1 em 2015.
“O índio não pode continuar dentro de uma área demarcada como se fosse animal preso dentro do zoológico”, declarou ao El Pais em 2018.
“Se eu assumir como presidente da República, não haverá um centímetro a mais para demarcação”, defendeu em palestra para produtores rurais na cidade de Dourados em 2018.
Na equipe de transição do novo governo parece haver certo consenso de que a Funai deixará de fazer parte do ministério da Justiça e passará para o guarda-chuva de algum outro ministério, provavelmente gerido por interesses da bancada ruralista. Tanto as declarações do presidente quanto a própria reorganização administrativa da Funai não deixam muitas dúvidas, portanto, sobre o que será feito da política de demarcação de terras.
Se o cenário de um futuro próximo é o de um Poder Executivo pouco sensível às demandas dos movimentos sociais e com uma forte agenda anti-demarcação, então faz sentido que a estratégia adotada até aqui seja alterada. Talvez seja preferível que, nesse momento de defensiva histórica, a política de demarcação de terras saia do Executivo e passe para o Legislativo.
O Congresso Nacional é conservador e pouco receptivo às demandas indígenas? Certamente, sim. Mas ainda assim, o Congresso Nacional está mais aberto para contradições internas e disputas políticas do que o governo federal sob a direção de Bolsonaro. Na Câmara, a bancada oposicionista, mais identificada com a questão indígena, poderá empreender ações típicas de bloqueio parlamentar. Além disso, a sociedade civil poderá pressionar os deputados em cada votação. Sob esse registro, a SBPC terá papel de protagonismo a cumprir na articulação da sociedade civil.
Novos tempos exigem novas estratégias. A única certeza é a de que, mais do que nunca, o movimento social precisará ser amplo, agregador e ativo na defesa de seus interesses.
Theófilo Codeço Machado Rodrigues é professor substituto no Departamento de Ciência Política da UFRJ.