Por Ana de Hollanda
Em meio a tantos desmontes anunciados pelo presidente eleito e sua equipe, o que menos me surpreende é a extinção do Ministério da Cultura, e a absorção de suas atribuições – se é que pretendem manter todas as atribuições – por outros setores.
Mas o revelador para mim, sintoma preocupante de que a ganância neoliberal já ganhou seguidores mesmo antes do governo retrógrado tomar posse, foi a falta de mobilização de cabeças pensantes nos meios cultural, acadêmico e até jornalístico. Setores que, juntos, poderiam estimular reflexões e discussões desapegadas e consequentes sobre a função estratégica da cultura no país, e de seu valor simbólico como expressão mais livre e espontânea que um povo pode ter.
Cultura, em seu conceito amplo, pode ser reconhecida na língua, nos costumes, nas tradições herdadas de outras culturas ancestrais e daquelas com as quais se relacionou ou, simplesmente, é o que define a identidade de um povo. Na composição Língua, Caetano Veloso fez uma alusão a Fenando Pessoa com a frase Minha pátria é minha língua e, por aí, podemos compreender a extensão de seu sentido para um país.
No entanto, sintomaticamente, o pouco que tem sido publicado pela mídia reflete quase que só preocupações do mundo mainstream e de influentes produtores, institutos e fundações culturais que utilizam regularmente a Lei Rouanet. É preciso que se reconheça que muitos desses centros culturais oferecem, de fato, programações de qualidade, a preços acessíveis ou mesmo gratuitos, convertendo o incentivo fiscal em benefício para cidadãos. Com isso e, em função do poder de lobby desses setores, assim como o do cinema, não há porque temer que o Congresso aceite a simples extinção das leis Rouanet e do Audiovisual.
Porém, se certa parcela das manifestações artísticas produzidas no país chega ao público das metrópoles, é importante ressaltar que existe um mundo de criadores espalhados por todos os rincões do país que resiste, como sempre resistiram, produzindo e retratando culturas locais com boa repercussão, embora ignorados por governos e meios de comunicação dominantes. Podem ser apreciados nas rodas de samba, de choro, de capoeira, em grupos de teatro das periferias que escrevem e encenam suas realidades, como também o fazem o rap, o hip-hop, o funk, a literatura de cordel e repentistas. Da mesma forma estão presentes nas festas populares com musicas e danças regionais como carimbó, bumba-meu-boi, maracatu, coco, frevo, baião, cateretê, cururu e fandango, entre tantas.
Também não podemos minimizar as culturas dos povos indígenas, cujas línguas e tradições são estudadas e registradas pelo Inventário Nacional de Referencias Culturais do IPHAN, dos povos quilombolas registrados pela Fundação Palmares no Cadastro Geral das Comunidades Remanescentes de Quilombos e dos povos ribeirinhos com seus hábitos e necessidades completamente distintos dos povos das cidades e de zonas rurais. São brasileiros de culturas riquíssimas, preservadas dentro do possível com o apoio MinC, e quase sem representação no Congresso.
Embora se tratando de atividades culturais silenciosas, patrimônio e memória têm uma significância imensurável. Nunca é demais relembrar os tesouros perdidos no recente incêndio do Museu Nacional. Não há quem ignore que é dever do Estado preservar seu patrimônio, garantindo orçamento compatível para sua manutenção, isto é, recuperação, restauro, catalogação, condicionamento climático, reformas e segurança. Não é com patrocínios via Lei Rouanet que vai se suprir essas necessidades permanentes. O exemplo serve para todos os nossos museus, da mesma forma que para preciosos acervos, como os da Biblioteca Nacional, da Cinemateca Brasileira e do Cedoc da Funarte, entre outros. Nesse sentido o IBRAN criou o programa Política Nacional de Museus, que estabelece diretrizes e orientações para os mais de três mil museus brasileiros Mas é bom lembrar que desde 1937, a partir de uma iniciativa de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mario de Andrade, o Brasil conta com um organismo – SPHAN, posteriormente IPHAN – responsável pela preservação de seu patrimônio cultural e artístico, preservação esta prevista na Constituição Brasileira. Os bens tombados compreendem cidades, monumentos históricos, sítios arqueológicos e paisagísticos, mas há, da mesma forma, o registro de bens imateriais, como o dos saberes, ofícios e formas de expressões artísticas.
Atividades intensas, mas também sem voz ativa, se dão nas áreas do livro, leitura, literatura e bibliotecas. Alguns programas de grande impacto atuam em regiões com pouco acesso aos livros, como o dos agentes de leitura, o Circuito Nacional de Feiras de Livro e Festivais Literários e a atualização e aquisição de acervo para bibliotecas públicas. No exterior, o Brasil e sua literatura receberam homenagens especiais nas feiras de Frankfurt, de Bogotá, de Bolonha e outras, muito em função do programa de bolsas para traduções da literatura brasileira. Intercâmbios culturais, fomento a pesquisas de linguagens e residências artísticas também se dão regularmente no âmbito da Funarte.
Em 2011, quando Ministra da Cultura do governo da Presidenta Dilma Rousseff, buscando sustentabilidade, assim como independência da produção cultural dos vícios de clientelismos e dos restritos editais, criamos a Secretaria da Economia Criativa no âmbito do MinC. Essa secretaria, ao estimular, fomentar, regular, desburocratizar e estabelecer elos nacionais para toda cadeia produtiva, preparou um estudo com um mapeamento de todos os setores a serem envolvidos no Plano Brasil Criativo, que recebeu apoio imediato da Presidência. Dilma rapidamente se deu conta da necessidade premente de se mensurar e organizar essas ramificações que trabalham frequentemente na informalidade e, para tal, envolveu a Casa Civil e mais dez ministérios na missão. Caberia ao MinC desenvolver um portal onde todos os criadores e demais agentes envolvidos estariam acessíveis para que as relações pudessem se estabelecer diretamente. Um estudo realizado pela Firjan em 2015 calculou a participação do setor criativo como 2,64% do PIB nacional.
Mas esse estudo ainda é insuficiente, uma vez que ignorou setores bastante ativos, que carecem de um acompanhamento mais aplicado a fim de que se organizem formalmente para alcançar certa autonomia. Trata-se de festas populares como as juninas, carnaval, o Festival de Parintins e, principalmente, do artesanato pouco conhecido em toda sua diversidade, mas praticado largamente nas distintas regiões com características próprias. São as esculturas e objetos em madeira como os da Ilha do Ferro por exemplo, em barro como os encontrados em Tracunhaém, no Vale de Jequitinhonha e no Espírito Santo entre outros, em cestaria praticamente no país todo, além das rendas e bordados com características diferenciadas, também em quase todos os estados federativos. Além das funções diretamente ligadas à criação artística, ela também agrega valores que influem diretamente em grande parte dos produtos industriais através do design, assim como da moda. Todas essas atividades geram um sem número de empregos e postos de trabalho.
No entanto, mesmo com todo potencial econômico, além de reconhecimento da cultura brasileira aqui e no exterior, o projeto de economia criativa ligado ao Governo Federal foi negligenciado e praticamente dissolvido por meus sucessores. Só que a cultura, ainda que desorganizadamente, sobrevive sempre porque, além de alimento lúdico para lazer e criatividade, ela segue expressando o espírito de um ou vários povos.
Ana de Hollanda, compositora, ex-ministra da Cultura