Foi a primeira vez que pudemos ver Lula desde sua prisão. Desde então, tantas coisas se passaram… Alianças partidárias foram articuladas, desfeitas, teve início a campanha de primeiro turno, as urnas falaram uma vez, duas vezes, Bolsonaro é o presidente eleito. Em todo esse tempo, Lula foi uma das figuras centrais do processo. Mas não o víamos. Apenas sabíamos de suas opiniões através de terceiros, em geral lideranças do PT, que o visitavam em Curitiba.
Esse depoimento nos deu oportunidade de ouvir Lula diretamente, e, com isso, entender um pouco o que se passou na cabeça daquele que, para o mal e para o bem, fez valer sua vontade política nas eleições presidenciais deste ano, especialmente no primeiro turno.
Juridicamente, o depoimento de Lula não valeu grande coisa, porque me parece óbvio que a juíza Gabriela Hardt está decidida a condená-lo. Em todos os depoimentos deste processo, via-se a magistrada agindo muito afinada com o ministério público, evidenciando um dos mais graves problemas da justiça brasileira: a fusão entre acusação e juízo.
Em sistemas judiciais mais avançados, há um juiz de instrução, responsável por conduzir os processos de investigação, junto com o ministério público, e um outro juiz, afastado do processo, para julgar os réus. A importância dessa separação fica muito clara na Lava Jato e o processo de Atibaia é apenas o último exemplo marcante.
Do ponto-de-vista político, todavia, Lula conseguiu neutralizar ou debilitar eixos narrativos importantes da acusação, reforçados nos depoimentos dos réus-colaboradores.
Por exemplo, Emílio Odebrecht disse que teve um encontro com Lula no Palácio do Planalto, no fim de dezembro de 2010, para apresentar seu filho, Marcelo Odebrecht, à então presidenta eleita Dilma Rousseff, que iria tomar posse dali a alguns dias. Lula confirmou esse encontro, que teria sido muito breve.
Segundo Emílio, ao final do encontro, enquanto se encaminhavam para saída, ele comunicou baixinho ao ex-presidente que o sítio estaria pronto na data prevista. O ex-presidente não teria reagido, o que Emílio, segundo disse à juíza, teria interpretado como um sinal de que ele sabia que a Odebrecht estava providenciando as obras. Houve uma pressão grande sobre Emílio, neste momento do interrogatório, para que ele desse detalhes sobre a reação de Lula, e ele insistiu que o ex-presidente não esboçou nenhuma.
Lula, por sua vez, ironizou esse ponto, dizendo que assistiu ao depoimento de Emílio pela televisão, e achou curioso que o empresário tivesse interpretado o seu silêncio como de alguém que sabia sobre o sítio, e não o contrário, o que seria mais lógico. Segundo o ex-presidente, que diz não se lembrar desse momento, ele não tinha conhecimento do sítio.
Lula consegue ainda debilitar um outro ponto importante da acusação.
Alexandrino Alencar, diretor de relações institucionais da Odebrecht, havia dito em seu depoimento que a própria dona Marisa Letícia o abordara, no início de dezembro de 2010, para pedir que a Odebrecht a ajudasse a reformar o sítio, porque ela queria fazer uma surpresa ao ex-presidente. Esse é um ponto chave do processo, porque indicaria que alguém da família Lula, a própria esposa do ex-presidente, pediu a reforma do sítio – e enquanto Lula ainda era presidente, embora nos últimos dias do mandato.
Marisa Letícia faleceu, e a única prova desse pedido é a palavra de Alexandrino Alencar – e de Emílio Odebrecht, que teria sido comunicado por Alexandrino sobre o pedido no mesmo dia, quando os dois voltaram no mesmo jatinho para casa.
Lula lança dúvidas sobre esse pedido, ao dizer que achava estranho que Marisa Letícia o tivesse feito, porque ela não teria nenhuma intimidade com ninguém da Odebrecht.
Este é um ponto, contudo, que Lula apenas consegue debilitar, não neutralizar, porque temos dois depoimentos combinados, o de Alexandrino e Emílio.
Lula também procurou combater o pilar central da narrativa acusatória. Como não é possível estabelecer nenhum vínculo entre ações do ex-presidente e os supostos desvios na Petrobras, a acusação terá de repetir o que já fez no processo do triplex, a saber, acusá-lo por “atos indeterminados”. A narrativa se baseia no relato, tanto de Leo Pinheiro como de Marcelo Odebrecht, de que haveria uma espécie de “fundo de propinas”. Tanto as obras do triplex como a reforma no sítio seriam descontadas desse fundo, ou seja, seriam lançados como mais uma despesa, assim como eram as contribuições de campanha, tanto legais como ilegais. Essa é a tese que o juízo deve usar para suprir a falta de nexo entre Lula e as obras específicas mencionadas na acusação. Ou seja, a acusação dirá que houve o desvio de obras contratadas pela Petrobras, que parte desse dinheiro desviado foi alocado numa caixa geral de propinas, e que as reformas no sítio foram pagas com esse dinheiro. Quanto às responsabilidades do ex-presidente, estas seriam “ações indeterminadas” ou “domínio do fato”, o que nos faz voltar ao coração da excepcionalidade lavajatiana, inaugurada, é verdade, na Ação Penal 470.
Não me parece absurdo que grupos gigantescos como Odebrecht e OAS tivessem uma caixa apenas para financiar campanhas eleitorais, mas não se pode culpar o ex-presidente por práticas cuja responsabilidade são exclusivamente dessas empresas.
Entretanto, é inegável que houve muita imprudência, beirando a irresponsabilidade, por parte dos amigos do ex-presidente e talvez do próprio, ao aceitarem, tão inocentemente, que o sítio fosse reformado “de graça” (e o que é pior, sem transparência) por empresários do porte de Leo Pinheiro e Emílio Odebrecht. Nem falo de Bumlai, o primeiro a pagar as obras no sítio.
Eu digo “inocentemente” porque me parece óbvio que ninguém levou vantagem. Os empresários que ajudaram também foram imprudentes. Pelo relato de Emílio Odebrecht, um “pedido” da família de Lula (no caso, de dona Marisa, a se acreditar que houve esse pedido) não poderia ser recusado, em função do que o mandato do ex-presidente tinha significado para toda a engenharia nacional, fazendo-a crescer de maneira magnífica, gerando empregos e se expandindo para o exterior.
Era um outro Brasil. Lula tinha uma aprovação de 85%, acabara de eleger sua sucessora, e não existiam as leis de exceção que o próprio PT (ó ironia) sancionaria durante os próximos anos, como a lei de delação premiada e a de organização criminosa, as quais seriam usadas voluptuosamente nas intermináveis conspirações políticas que culminaram no golpe de 2016, prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.
O resultado dessas famigeradas obras num pequeno sítio em Atibaia foram, de um lado a destruição de empresas – e prisão de seus principais controladores e executivos – com porte para reformar países inteiros, de outro a prisão da principal liderança popular do país, com prejuízo incalculável para seu partido e para todo o campo progressista.
Toda a narrativa lavatiana é centrada numa visão profundamente antipolítica, antiempresarial e antinacional, é uma mistura ideológica confusa, dostoiévskiana.
No que toca o preconceito político, há uma recusa deliberada em compreender a relação entre Lula e empresários como Leo Pinheiro e Emílio Odebrecht.
Paulo Gordilho, um dos mais antigos funcionários da OAS, explicou em seu depoimento que a OAS era uma empresa dominada por executivos de direita, conservadores, em especial pela longa relação da construtora baiana com o carlismo. Leo Pinheiro, no entanto, abriu caminho dentro da empresa com um pensamento de esquerda. Isso muito antes de Lula ser presidente. Lula ajudou Leo Pinheiro a lidar com o sindicalismo baiano.
Emílio Odebrecht, por sua vez, tinha afinidades com Lula nas grandes questões geopolíticas. A Odebrecht era a empresa brasileira mais bem sucedida no exterior. Estava entre as raras empresas nacionais que poderiam ajudar o país a internacionalizar sua economia. Se o Brasil aprofundasse os acordos com os Brics, e obtivesse fundos para tocar obras de infra-estrutura mundo à fora, como era o plano, certamente a Odebrecht seria uma das protagonistas. Todos os países tem suas “campeãs”, empresas bem sucedidas que lideram estratégias de conquistas de mercados no exterior.
Durante o depoimento, Lula teve a oportunidade de fazer alguns comentários de natureza política que me parece importantes que sejam examinados.
Em dado momento, o ex-presidente repete a narrativa petista de que ele foi condenado no processo do triplex para que fosse removido do processo eleitoral, onde ele ganharia no primeiro turno.
Neste ponto, identificamos uma certa megalomania de Lula, que a humilhação imposta por uma prisão tão injusta deve ter agravado.
Essa disposição emocional de Lula de olhar para si mesmo com orgulho ficou patente logo no início do depoimento, via-se que o ego ferido do ex-presidente tinha necessidade de se afirmar. Quando a juíza perguntou, em tom incriminador, se o casal Lula podia dormir no quarto principal do sítio, o ex-presidente respondeu, irritado (com razão, porque a pergunta era efetivamente idiota, e o tom incriminador era grotesco), que tinha recebido a mesma regalia no palácio da rainha da Inglaterra e no Kremlin. O tom de Lula é de alguém, contudo, que não consegue controlar sua indignação e que está disposto a chutar o pau da barraca. É imprudente. E o resultado foi a reação agressiva da magistrada.
Sobre a eventual vitória no primeiro turno, vê-se que Lula ainda acredita nisso, assim como os petistas, mesmo após as urnas terem dito exatamente o contrário.
As pesquisas jamais deram vitória a Lula no primeiro turno. Chegaram perto, mas não chegaram lá. Além do mais, Lula parece ter cometido o mesmo erro dos estrategistas petistas: não viu que a rejeição a ele era ainda maior que sua aprovação, e isso nas mesmas pesquisas.
Pesquisas servem para indicar o que as urnas dirão, mas depois que as urnas falam, a gente tem que olhar para elas, não mais para pesquisas. E as urnas deram um sinal claro de rejeição ao PT e a Lula, vide o caso do Rio de Janeiro (onde Bolsonaro ganhou com quase 70% no segundo turno) e das grandes cidades, inclusive do Nordeste (Bolsonaro ganhou, em quase todas, no primeiro turno). Repetir, portanto, que ganharia no primeiro turno, com base em pesquisas e não com base nas urnas, é insistir, de maneira temerária, quase irracional, numa fantasia.
Os resultados obtidos até aqui – impeachment, prisão de Lula, eleição de Bolsonaro -, se apontam a força dos adversários, também não indicam propriamente a eficiência das estratégias do PT e Lula. Seria interessante que, à luz de tantos insucessos, os estrategistas pensassem em outras formas de defender Lula. Insistir em sua candidatura foi uma grande estupidez, a meu ver, porque forçou todos aqueles que não queriam o PT novamente no poder a defender não apenas uma derrota eleitoral do partido, e sim a manutenção da prisão do ex-presidente. Ou seja, fortaleceu a Lava Jato, elegeu Bolsonaro e fez de Sergio Moro o ministro mais poderoso da história do país.
Montar um acampamento em Curitiba, diante da prisão, por tanto tempo, com seus manifestantes dando bom dia, boa tarde e boa noite, também não me pareceu boa ideia, porque gera um impacto negativo na opinião pública, que os vê como desocupados, além de incentivar um caudilhismo político duplamente irracional: primeiro por ser caudilhismo, segundo por ser caudilhismo de um cidadão atrás da grades, acusado (mesmo que injustamente) de corrupção, sem condições físicas, políticas ou morais de exercer livremente qualquer liderança efetiva.
Organizar manifestações e protestos diante dos tribunais, por sua vez, apenas tensiona os juízes a serem ainda mais duros em sua condenação, para provar à opinião pública de que não estão sendo intimidados pelo clamor dos “militantes” simpáticos ao réu, sobretudo quando as ruas, as urnas e as pesquisas já tinham deixado claro, desde 2015, que a quantidade de cidadãos contra o ex-presidente era tão relevante quanto a daqueles em favor.
A estratégia mais inteligente para defender Lula também não pode ser intimidar as instituições brasileiras com eventuais decisões da ONU, até porque confiar excessivamente na ONU é uma temeridade, e sim continuar construindo uma massa crítica. Essa estratégia vinha sendo feita, de maneira espontânea, por intelectutais independentes, militantes, blogs, mas foi implodida pelas estratégias eleitorais do PT em 2018. Militantes petistas, subitamente, passaram a hostilizar até mesmo aqueles que defendiam Lula, desde que esses não se alinhassem rigidamente às estratégias eleitorais do partido. Isso permanece até hoje. Tem críticas ao PT?, então não serve para defender Lula!
Ao fazer isso, o PT e sua militância trabalham para isolar ainda mais o ex-presidente. É uma estupidez inacreditável, visto que a defesa jurídica, e até mesmo política, do ex-presidente, apenas será eficaz se for feita por um conjunto plural de cidadãos, sobretudo não-petistas.
O PT precisa pensar estrategicamente. Todas as pesquisas, e qualquer análise empírica das ruas e das redes sociais, mostram que o partido sofre uma rejeição que supera em duas ou três vezes a sua aprovação. E não é por “fake news” de Whatsapp. Ao contrário, as fake news pegam facilmente no PT justamente por causa de sua rejeição. E a sua rejeição vem, dentre inúmeras razões, do fato de ter governado o país por 13-14 anos e nos ter legado, por todos os seus erros, isso que está aí: uma crise política interminável, impeachment, Temer e Bolsonaro. Para superar essa rejeição, a solução é lógica: pedir desculpas, ouvir as críticas, parar de atacar seus amigos, incentivar o surgimento de novas lideranças, ampliar o arco de aliados, combater esse hegemonismo que apenas está destruindo o partido.
PS: Assisti a quase todos os depoimentos feitos nos últimos dias à juíza Gabriela Hardt, relacionados ao processo do sítio em Atibaia: Marcelo e Emílio Odebrecht, Alexandrino Alencar (Odebrecht), Leo Pinheiro (OAS), Paulo Gordilho (OAS), Fernando Bittar, dono do sítio, e agora… Lula.
Ainda não consegui assistir aos vídeos de Roberto Teixeira, advogado de Lula, e Agenor Franklin, diretor-presidente da área internacional da OAS, e de Rogério Aurélio Pimentel.
A acusação do Ministério Público Federal contra Lula e outros réus, no processo de Atibaia, pode ser baixada aqui.