(Na imagem, Bolsonaro presta continência à bandeira dos EUA)
Uma das definições de ideologia no dicionário Michaelis é: “maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou um grupo de pessoas, um governo, um partido etc.” Decorre daí que cada indivíduo, grupo ou etc., por ter sua própria maneira de pensar, tem sua ideologia.
Pois a direita brasileira passou, faz algum tempo, a usar o termo ideologia como palavrão. Os porta-vozes do conservadorismo costumam definir tudo que não se alinha ao seu modo de pensar como “ideológico”.
Esse truque argumentativo tem como pressuposto lógico a existência de indivíduos ou grupos que não possuem ideologia alguma.
Isso é, além de obviamente falso, extremamente autoritário.
Se somente os adversários são motivados por sua ideologia, enquanto o nosso lado atua apenas tecnicamente, a “verdade” – vinda sabe-se lá de onde – só pode estar ao nosso lado, o lado onde não há interesses ideológicos por trás das ideias e ações.
Parece uma estratégia um tanto quanto rudimentar, mas, nesse período de trevas, acaba funcionando.
O tal “Escola Sem Partido” é um belo exemplo do forte “viés ideológico” que anima as movimentações da direita. A pretexto de impedir uma delirante doutrinação esquerdista nas escolas, busca-se, na verdade, criar um clima de censura, dedurismo e medo em sala de aula, para que professores sintam-se intimidados e, assim submetam-se à ideologia (tcharam!) dominante.
A história de nomear apenas “técnicos” para os ministérios, tão propalada pela campanha de Bolsonaro, é outro exemplo. Sérgio Moro não é filiado a nenhum partido, mas é evidente que sua escolha é, além de uma indecorosa paga pelos serviços prestados à candidatura Bolsonaro, resultado do alinhamento ideológico de Moro com o projeto de extrema-direita que venceu as eleições. Punitivismo medieval, desprezo pelos direitos humanos, processo penal do inimigo e do espetáculo, além de uma patente ojeriza à esquerda, são todos elementos que unem, umbilical e ideologicamente, Moro a Bolsonaro.
É evidente, dessa forma, que não há indivíduo ou grupo que não tenha suas ações influenciadas pela própria ideologia.
É claro, contudo, que há casos em que a ideologia faz mais do que apenas influenciar as ações e acaba atropelando tudo que encontra pela frente. Inclusive a lógica e o bom senso.
O programa de Bolsonaro pode ser caracterizado, seguramente, como de extrema-direita, como comprova o alinhamento com a direita do partido de direita (perdoem a repetição, é para realçar) dos EUA, o republicano. É a ala de Donald Trump.
Pois Bolsonaro nem bem foi eleito e já conseguiu a proeza de provocar estragos nada desprezíveis na política externa, colocando a ideologia do seu grupo bem à frente dos interesses do país, como veremos.
Antes, analisemos brevemente a política externa dos governos do PT, acusada recorrentemente por Bolsonaro e seu nightmare team de ter “viés ideológico”. O presidente eleito falou, inclusive, que busca um chanceler “sem viés ideológico, nem de direita nem de esquerda”.
A política externa dos governos petistas foi marcada pelo multilateralismo: fortalecimento do Mercosul, aprofundamento das relações com países da África e Ásia, instituição do BRICS como mecanismo internacional. Tudo isso sem, de forma alguma, cortar relações com os EUA ou a União Europeia.
Tratou-se de um movimento bastante inteligente. A ideia de um mundo multilateral é, por óbvio, benéfica para todos que não sejam, atualmente, grandes potências, como é o nosso caso.
O BRICS, por exemplo, tem potencial para ser um bloco de países que faça frente ao poderio econômico dos EUA e da UE. O Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como Banco dos BRICS, nasceu para ser uma audaciosa alternativa de financiamento para os países em desenvolvimento, considerando que quem domina o FMI e o Banco Mundial são os países já desenvolvidos.
O Brasil, fundador do bloco e um dos chamados “cinco grandes”, alçou-se a respeitável player do jogo da geopolítica mundial ao juntar forças com os demais países dos BRICS.
Não se trata, portanto, de “viés ideológico” esquerdista aqui: qualquer análise minimamente sensata concluirá, seguramente, que a política externa foi um dos acertos do período petista na presidência.
O governo Temer deu uma guinada nessa bem-sucedida estratégia, passando a alinhar-se caninamente aos EUA e a ser escanteado dentro dos BRICS.
Bolsonaro não precisou nem ser empossado para demonstrar que o vira-latismo clássico da direita na política externa alcançará, em seu governo, níveis astronômicos – além de potencialmente catastróficos para a economia do país. Senão, vejamos.
Paulo Guedes afirmou recentemente, a uma correspondente do jornal argentino Clarín, o seguinte:
O Mercosul não é prioridade. Não, não é prioridade. Tá certo? É isso que você quer ouvir? Queria ouvir isso? Você tá vendo que tem um estilo que combina com o do presidente, né? Porque a gente fala a verdade, a gente não tá preocupado em te agradar.
As reações à grosseria – travestida de sinceridade – proferida por Guedes não foram nada boas.
O presidente da delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Mercosul, deputado Francisco Assis, manifestou preocupação: “Há uma enorme incógnita sobre qual será o futuro do Mercosul e, portanto, sobre como ocorrerá essa relação de negociação com a União Europeia”. O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, em negociação há quase 20 anos e agora na reta final, corre riscos com a chegada de Bolsonaro ao poder.
Juan Pablo Lohlé, ex-embaixador da Argentina no Brasil, disse que as declarações geraram “preocupação e surpresa”.
A justificativa de Paulo Guedes para essa postura é tão furada quanto caricata: o Brasil teria ficado “prisioneiro de alianças ideológicas”. “Você só negocia com quem tiver inclinações bolivarianas. O Mercosul foi feito totalmente ideológico. É uma prisão cognitiva”, disse ele.
A argumentação de Guedes faz tanto sentido quanto a expressão “prisão cognitiva” nesse contexto. Ou seja, nenhum. O embaixador alemão no Brasil, Georg Witschel, foi didático ao comentar a celeuma:
O Brasil tem posição mais forte para negociar tratados de livre comércio, com EUA, UE e outros, a partir do Mercosul. Não é um bom negócio para um país como o Brasil negociar sozinho, sobretudo com a China, o Japão e EUA. Nunca terão pé de igualdade.O mesmo vale para a Alemanha, como membro da UE, ela se encontra em pé de igualdade com a China ou os EUA. Não faz sentido buscar algo de maneira solitária, mas sim unir-se.
Será que a equipe de Bolsonaro não percebe essa obviedade? Tudo indica que sim, percebe, pois é, perdoem a redundância, óbvio demais que, para negociar com gigantes econômicos, faz muito mais sentido unir-se a outros países e formar blocos, como faz a UE.
O que temos aqui é pura maluquice ideológica. Em nome de uma luta quixotesca contra moinhos de vento – comunismo, bolivarianismo, etc. – e do alinhamento com os malucos do partido republicano dos EUA, Bolsonaro aparentemente implodirá bons acordos comerciais alinhavados pelo Brasil.
Bolsonaro conseguiu também a proeza de irritar, com suas declarações e sua visita a Taiwan, a China, apenas o maior parceiro comercial do Brasil. Um editorial publicado no China Daily, jornal que é uma espécie de porta-voz do governo chinês, alertou: as críticas de Bolsonaro a Pequim “podem servir para algum objetivo político específico, mas o custo econômico pode ser duro para a economia brasileira, que acaba de sair de sua pior recessão da história”.
O plano de transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém é outra patacoada bolsonarista com potencial explosivo. A questão é delicadíssima, envolvendo uma guerra religiosa histórica entre árabes e israelenses.
A absoluta maioria dos países mantêm suas embaixadas em Tel Aviv, ao menos até que se resolva a questão da divisão de Jerusalém entre judeus e palestinos. Apenas os EUA, sob Trump, seguido pela Guatemala, transferiram suas embaixadas para Jersualém.
Pois o tresloucado furor ideológico de Bolsonaro fez com que ele corresse a anunciar, poucos dias após sua vitória na eleição, que pretende transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. A vantagem dessa medida para o Brasil é exatamente nenhuma, a não ser agradar, de graça, Donald Trump.
O estrago, por sua vez, pode ser enorme.
Pouco tempo depois de Bolsonaro anunciar seu plano, o Egito cancelou uma visita oficial que faria o ministro das Relações Exteriores do Brasil. O cancelamento foi feito em cima da hora e sem sugestão de uma nova data, o que não é comum nas relações diplomáticas. Foi uma evidente retaliação às intenções de Bolsonaro.
O mercado árabe é o segundo maior mercado de exportação de alimentos do Brasil, sendo que nosso país acumulou um superávit de US$ 7,1 bilhões com as 22 nações da Liga Árabe em 2017. Tratou-se de 10% do superávit comercial total do Brasil, enquanto que com Israel foi registrado um déficit comercial de US$ 419 milhões.
Ou seja, a atitude de Bolsonaro não faz sentido algum, seja na área econômica, seja na diplomática. Trata-se, apenas, de maluquice ideológica com potencial explosivo para o país.
Não esqueçamos que todas essas lunáticas movimentações de Bolsonaro ocorreram antes do início do seu mandato. Se já provocaram consideráveis estragos nas nossas relações diplomáticas, imaginem o pontecial de dano a partir de 1° de janeiro de 2019, quando o presidente eleito assume de vez o comando do país.
Assustador, não?
É um padrão no comportamento humano apontar defeitos nos outros os quais o indivíduo carrega em si mesmo.
Bolsonaro e sua trupe extrapolam esse padrão para níveis inimagináveis, tanto na intensidade quanto na escala.
Enquanto gritam que vão acabar com o “viés ideológico”, ameaçam transformar o Brasil num pária econômico e diplomático ao colocar sua estúpida, cega e subserviente ideologia à frente dos interesses nacionais.