Série Reflexões Políticas | Entrevista | Ruy Fausto
‘Burocracia do PT vive do mito Lula. Se houver sucessor, ela morre’
por Marina Gama Cubas — publicado 07/11/2018 01h02, última modificação 06/11/2018 15h49
Para o filósofo, a esquerda tem que se habituar a dizer a verdade sem medo. ‘A verdade penetra muito mais do que se pensa, ela tem uma força prática imensa’
Falar a verdade e ter flexibilidade. Essa seria uma boa receita para a sobrevivência e renovação da esquerda brasileira, segundo Ruy Fausto, professor emérito do departamento de Filosofia da USP. Para o filósofo, que estuda Marx e a esquerda contemporânea, a verdade tem o que ele chama de “força prática” que os “pseudosbababans” desconhecem. A flexibilidade, explica, está na capacidade de dialogar com o outro.
Fausto se apresenta como um membro da esquerda independente e vai além: defende que o discurso da esquerda precisa ser reconstruído não apenas na forma, mas em seu conteúdo. “Quais os pontos principais dessa reconstrução? A crítica do populismo-patrimonialismo e à herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda”, defende.
Em seu livro, Caminhos da Esquerda (editora Cia. das Letras), Fausto faz uma longa reflexão sobre os temas que permeiam esta entrevista, concedida por e-mail. Para ele, a burocracia do Partido dos Trabalhadores impediu tanto o avanço de Fernando Haddad nas urnas com uma renovação da esquerda brasileira.
Tal burocracia, diz Fausto, só sobrevive nos dia atuais pela insistência em colocar Lula no centro dos planos futuros do partido. “Lula candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa”, afirma.
Leia a entrevista a seguir.
CartaCapital: O que significa a vitória de Jair Bolsonaro?
Ruy Fausto: Não há como ocultar a realidade. É um verdadeiro desastre nacional. Agora há uma tendência a praticar um discurso mistificante, que deixa na penumbra o que está ocorrendo. Em nome da pacificação dos espíritos, ou sob o manto de discussões confusas que tratam das novas tecnologias e o novo capitalismo – tecnologias ultramodernas tiveram um grande papel na vitória de Bolsonaro, mas o fenômeno não é tecnológico, é político. Perdeu-se de vista o essencial e uma extrema-direita muito radical e extremamente perigosa chegou ao poder no Brasil.
CC: O que a vitória de Bolsonaro diz sobre a sociedade brasileira? E sobre os partidos políticos que se apresentam hoje?
RF: Começo refletindo sobre o evento, tentando depois indagar as suas causas, que poderiam iluminar um pouco o que se passa na sociedade brasileira. Fico pensando: 57 milhões e meio de brasileiros votaram num candidato que elogia não só a ditadura militar, mas a ala extremista dessa ditadura, aquela que se opunha a qualquer abertura mais o resto: racismo, homofobia etc.
Como isso foi possível? Tentando resumir, eu diria: os fatores fundamentais foram a utilização do tema da corrupção, o problema da violência, a orquestração desonesta em torno de temas “de sociedade”, mais o uso sistemático e ilegal de certos meios ultramodernos de comunicação. Em quase tudo isto, a responsabilidade da direção do PT foi imensa. Em quê isso reflete a sociedade brasileira?
A enorme desigualdade – tema fundamental que acabou sendo mais ou menos esquecido pela esquerda, que desemboca frequentemente numa posição radical, que pode ser de esquerda, mas em certas condições – no nosso caso: vazio político, desgaste de todos os partidos, violência – pode ser de extrema direita. Foi o que aconteceu.
CC: Como o campo progressista brasileiro pode se organizar para que um novo paradigma de senso comum, crítico e racional permeie o processo decisório popular brasileiro?
RF: A reorganização da esquerda já se impunha antes do 28 de outubro e agora se impõe com muito maior urgência. É preciso reconstruir o discurso da esquerda, não só na forma, mas também no seu conteúdo. Quais os pontos principais dessa reconstrução?
Como venho insistindo há muito tempo – e não estou sozinho nisso -, os dois pontos principais são a crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda. Em algumas coisas, essas duas exigências se intersectam, mas não em tudo.
Concretamente: é preciso levar a sério o problema da corrupção. Claro que ele não é o único e talvez nem o mais importante – o problema da desigualdade o supera sob muitos aspectos. Mas sem repensar o tema da corrupção, ao contrário do que pretendem certas sociologias fáceis, a esquerda não tem futuro.
O segundo aspecto é a exigência de uma recusa radical de todo autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda. A esquerda brasileira, como parte da esquerda mundial, continua confusa em matéria de liberdade e de democracia. Há muito autoritarismo difuso, que nos atrapalha.
Isso posto, trata-se de saber como a nossa mensagem chegará ao povo. A meu ver, precisamos de duas coisas: por um lado, muita verdade. Temos de nos habituar a dizer a verdade, e sem medo. O outro lado está na capacidade de ouvir o outro, o que exige grande flexibilidade. As duas coisas não são incompatíveis. A verdade penetra muito mais do que se pensa, ela tem uma força prática imensa que os “pseudobambambans” da habilidade política desconhecem.
No plano organizatório, precisamos de uma ampla frente dos diferentes partidos de esquerda, mais a participação efetiva da massa de homens e de mulheres de esquerda que não estão ligados a nenhum partido. O papel deles e delas se viu nas grandes manifestações de alguns anos atrás, e também no final da campanha do segundo turno: quantos milhões eles e elas representam? Cinco? Dez?
Não sei, mas são muitos, muitos mesmo. E até aqui eles e elas não foram levados em conta suficientemente. Pense-se também nos mais ou menos 42 milhões de pessoas que votaram em branco, votaram nulo, ou não compareceram aos locais de votação – claro que em parte isso se explica por outros motivos, mas uma proporção grande é, sem dúvida, de gente que pelo menos não “engoliu“ a fala de Bolsonaro, embora não aceitasse a de Haddad. Há que se preocupar com todo esse povo.
CC: A atmosfera social brasileira durante o processo eleitoral deflagrou episódios de violência motivados e potencializados pelo discurso de intolerância. Segundo o filósofo Karl Popper, a tolerância ilimitada leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância. Como a sociedade brasileira pode estabelecer limites às ondas de intolerância?
RF: Tentemos dar o nome aos bois. Claro que do lado da esquerda – principalmente por ela agir sob o comando de certo partido hegemônico – nem tudo foi perfeito. Mas, a esse respeito, como em outros casos, a simetria é ilusória. Não há simetria. A violência, a intolerância veio e virá da extrema-direita representada por Bolsonaro e as forças que o apoiam. Se andou comparando as reiteradas declarações antidemocráticas do candidato eleito com o que disse uma vez tal ou qual deputado do PT.
Esse método é ruim. Há que compare às falas de Bolsonaro com a trajetória (claro que com pontos altos e pontos baixos) do PT nos seus catorze anos de governo. Pode ter havido muita coisa ruim, mas não houve atentado à democracia. Se quisessem tentar alguma jogada antidemocrática já o teriam feito.
E as falas do candidato eleito tiveram e têm um efeito imediato: os seus partidários caçam homossexuais, tentam amordaçar os professores, propondo que se filmem à sorrelfa as aulas, além dos assassinatos políticos. Dirão que ele mudou de linguagem depois de eleito. Um pouco, mas ele voltou a ameaçar os “vermelhos” do PT, se lançou contra a Folha de S. Paulo, e declarou ainda uma vez que a ditadura não foi ditadura.
CC: Tentando fazer uma distinção entre os erros das partes, na opinião do senhor, quais foram os principais equívocos do PT e quais foram os de Fernando Haddad na eleição?
RF: A responsabilidade da direção do PT em tudo isso foi enorme. O lançamento da candidatura Lula foi um erro, como declarei sucessivas vezes em entrevistas e artigos. Não quero dizer com isso que não se devesse defender Lula, mas isso não implicava na necessidade de lançá-lo como candidato. Lula tinha e, em parte ainda tem, grande prestígio, mas já teve dois mandatos como presidente.
Ele candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa. Além do que, talvez a coisa mais importante: se o prestígio de Lula era grande, a rejeição do nome dele era tão grande quanto…
A direção do PT simplesmente “esqueceu“ esse elemento fundamental. A acrescentar o fato de que, desde o início, se sabia que a candidatura de Lula dificilmente obteria registro legal. Essa ênfase em sua candidatura não é inocente: a burocracia do partido vive do mito Lula. Ela sabe que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta.
A candidatura Haddad, até onde sei, foi apoiada essencialmente por Lula. A grande maioria do partido não o queria como candidato. Quando, afinal, não houve alternativa, e Lula se pronunciou pela candidatura do professor, a direção do partido adiou, o quanto deu, a troca de candidato. Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode.
Além da possibilidade de apresentar desde logo um candidato novo – e o melhor era certamente Haddad – havia a possibilidade de lançar a chapa Ciro/Haddad, desejada pelos dois, mas vetada pela direção do partido, por Lula inclusive. Lançado pelo partido, Haddad foi literalmente amarrado. O mote “Haddad = Lula” foi uma faca de dois gumes, um verdadeiro bumerangue, que levou votos a Haddad por parte dos admiradores de Lula, mas tirou os de todos aqueles que o rejeitavam.
Quanto aos erros de Haddad: custou muito a mudar, e poderia ter mudado mais. Aceitou no início o papel que o partido lhe deu. Se o deixassem mais solto, ele certamente teria se saído melhor. Ele foi mudando o seu discurso, deu bons passos no sentido da autocrítica, mas não foi, ou não pode ir mais longe, porque dependia do partido. A mudança foi tardia, mas em geral foi bastante bem. Felizmente, houve a virada final. Sem ela, talvez Haddad tivesse ficado queimado.
CC: Acredita que o nome de Haddad saiu mais forte do pleito? Na sua opinião, ele tem chances de ser o novo nome no campo de esquerda e/ou progressista?
RF: Na minha opinião, Haddad era um candidato muito bom. Muito melhor que a direção do PT. Claramente anticorrupção. Claramente democrático. O partido o transformou num “poste”, o que ajudou muito o adversário. Haddad virou um candidato “fraco“, coisa grave na situação atual. As ambiguidades de dirigentes do partido sobre esses três pontos serviram bem à oposição.
CC: Quais aspectos Haddad deveria melhorar em si para se tornar uma liderança política nos próximos anos?
RF: Não duvido de que gente da direção do PT, entre outras gracinhas, vá por a culpa em Haddad. Fora isso, ouve-se, por parte de alguns petistas, um discurso otimista do tipo: “Elegemos uma boa bancada federal, quatro governadores, tivemos quase 47 milhões de votos. Que beleza!”.
Não desprezo, mas nada disso compensa a vitória de um candidato neototalitário. Era melhor ter a metade da bancada e a metade dos governadores, e não digo ter ganho a eleição presidencial (aí o saldo seria mesmo enorme) ou mesmo ter perdido para qualquer candidato de centro direita, que continuaria a por em prática a mesma política reacionária, mas não poria em risco as instituições.
Não nos esqueçamos de que a direção do PT chegou à irresponsabilidade de poupar Bolsonaro (o que nem Ciro, nem Boulos fizeram, e nem mesmo Alckmin), porque muito “habilmente“ se convenceu de que Bolsonaro seria o adversário mais fraco no segundo turno. Mesmo que houvesse supostas razões para acreditar nisso, um partido político de esquerda responsável tem de pesar muito bem o que representa um adversário em termos de perigo para a democracia e, portanto, também para a sua própria sobrevivência.
CC: O que deverá acontecer com a esquerda brasileira nos próximos anos? Ou no que precisam estar preocupados para sobreviver?
RF: É preciso reorganizar as forças. Ciro, que teve bom papel na campanha, mas deu uma “mancada” final tomando uma posição neutra – o PT tem muita culpa nessa história – prepara uma aliança com vários partidos: PSOL, PDT, PCdoB, mas sem o PT.
Com relação a Boulos, candidato pelo PSOL, acho que teve bom desempenho, mas precisaria se livrar das suas ilusões bolivarianas.
Haddad prepara um outro esquema. Precisamos saber: como Haddad se relacionará com a direção do seu próprio partido? Ele será capaz de dar um outro caminho ao PT? Continuará fazendo concessões? Ou será obrigado a romper e constituir um outro movimento?
CC: Os movimentos sociais que ressurgiram nessa eleição deverão perdurar ou ocorrerá certa resignação a partir de agora? Acredita que se manterão sem uma ligação fisiológica com os partidos políticos?
RF: Até aqui, a resistência, antes e depois do resultado, tem sido boa. Não esqueçamos de que Bolsonaro tem contra si as forças vivas do país – um exemplo: mais de mil advogados assinaram uma petição pró-Haddad; menos de cem, em favor de Bolsonaro. Sobre a relação com os partidos, creio que já disse o suficiente: organizações e provavelmente partidos são indispensáveis, mas sem que haja subordinação a interesses burocráticos que jogam contra nós e até marcam gols contra.
Importante destacar em quê o governo Bolsonaro é perigoso. Não se pode prever em detalhe. Mas os “análogos“ de Bolsonaro tentaram sempre, com êxito ou não, dominar o poder, mantendo certas formas democráticas ou pseudodemocráticas.
Vejam um cenário possível para o novo governo: sem acabar com a “democracia”, ele pode atuar em várias frentes. O Ministério Público de certos estados é claramente parcial. Como serão certos Ministérios Públicos sob Bolsonaro?
De qualquer modo, não será difícil denunciar e condenar muita gente, em nome da luta contra a corrupção. Sabemos da violência da Polícia Militar em manifestações. Como será a PM sob Bolsonaro, que promete garantias excepcionais em caso de “acidente”? Ele pode também pressionar as universidades e centros de pesquisa, limitando drasticamente as verbas.
Enfim, como declarou um historiador, a Constituição de 88, apesar das suas qualidades, dá, como se sabe, certos poderes às Forças Armadas, que podem facilmente ser utilizadas por governantes, para perverter a democracia. No plano das grandes instituições, seria mais ou menos o esquema posto em prática por Viktor Orban, na Hungria. Isto acontecerá no Brasil? Não é certo. Mas, a meu ver, só não ocorrerá se “resistimos“.
Não se trata de fazer apelos à violência, mas resistir mantendo um olhar lúcido e sem concessões para o que está aí. Resistir no legislativo – através das bancadas de esquerda -, nos executivos estaduais e municipais, no judiciário, resistir na Universidade, na mídia, nas ONGs, na rua. Resistir.
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Esta entrevista faz parte da série “Reflexões Políticas”, publicada entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro no site da CartaCapital. Convidamos Fernando Schüler, cientista político, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, e Ruy Fausto, filósofo, para refletir sobre a esquerda atual e suas perspectivas para o futuro.