Wanderley ao Valor: Só uma frente apartidária conterá o avanço de Bolsonaro

Reflexões importantes do professor Wanderley, que precisam ser assimiladas e discutidas.

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No Valor

“Só uma frente apartidária conterá um governo de ocupação”

Wanderley Guilherme dos Santos passou os últimos tempos recebendo insultos e apelos. Insultos por ter advertido, no início de 2017, que a esquerda não ganharia a eleição com o PT à frente. E apelos por não ter aderido às frentes que se formaram no segundo turno em apoio a Fernando Haddad.

Decano da ciência política brasileira e uma das principais referências do pensamento de esquerda no país, Wanderley Guilherme não deu ouvidos ao assédio. Manteve-se longe do segundo turno da mesma maneira que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um amigo de décadas, que a política afastou.

Já lhe parecia muito concreta a ideia de que o ex-presidente assustava a direita quando Luiz Inácio Lula da Silva e Wanderley Guilherme se encontraram no Rio, no início do ano, no apartamento de um amigo comum. Com a prisão, continuou a advertir contra a ideia de que eleição sem o líder petista seria um golpe. Depois bateu-se contra a obsessão de se levar ao limite a defesa de sua liberdade como plataforma de campanha. Uma hora cansou.

Optou por Ciro Gomes, sumiu do debate público e se voltou para tentar entender o que deu no Brasil. Aos 83 anos, o pensador que um dia previu o golpe de 1964 diz que um outro pode vir a ser evitado com uma frente, acima dos partidos, que reúna esquerda e centro, para proteger as instituições democráticas contra o que chama de um governo de ocupação.

Não contem com ele para teorizar sobre o fascismo no Brasil. O que vê em curso, diz, é um ataque à democracia pela própria democracia. “É bom informar o público que um governo reacionário é uma possibilidade democrática”, diz.

A seguir, a entrevista, realizada durante um almoço, no Rio, na semana passada, e arrematada ontem, com o fim do segundo turno.

Valor: É um Brasil fascista que emerge das urnas?
Wanderley Guilherme dos Santos: Fascismo é uma expressão bastante trivializada que esquece aspectos fundamentais como o da organização paramilitar, toda a população organizada com uma hierarquia estabelecida e com uma estratégia de ação de violência, mas sob coordenação. Nada disso existe no Brasil.

Valor: A violência que emergiu desse Brasil miliciano não caraçteriza isso?
Wanderley Guilherme: As milícias não estão subordinadas ao Bolsonaro. Se ele tentar pacificar o país, certamente enfrentará as estruturas de violência existentes, as milícias e o crime organizado. Tanto o nazismo quanto o fascismo já se constituíam como tal quando chegaram ao poder. Tanto Mussolini quanto Hitler tinham organizações paramilitares prévias, que promoviam atos de violência localizada. Isso não existe no Brasil.

Valor: Mas a afronta às minorias, a ameaça contra opositores e o constrangimento ao Supremo não sinaliza essa escalada?
Wanderley Guilherme: Isso não é novidade no Brasil. A questão é saber por que venceu agora. O preconceito contra as chamadas minorias, que, aliás, não são, como negros e mulheres, é de sempre. Seus assassinatos estão todos os dias nos jornais, desde sempre.

Valor: Mas a novidade não é que alguém com esse discurso ganhe uma eleição?
Wanderley Guilherme: Mas por que? Seus eleitores não estão interessados nisso. Acham que sempre aconteceu e vai continuar a acontecer.

Valor: A campanha de Haddad acusou a campanha de Bolsonaro de ter trabalhado sua chegada ao poder pelo falseamento da realidade. Isso também não caracteriza um regime totalitário?
Wanderley Guilherme: A repercussão dos discursos absolutamente delirantes de Bolsonaro na Câmara jamais tiveram a mesma repercussão do impacto e do clima anti-política que foi feito pela imprensa tradicional brasileira e pelas televisões contra o PT. Foi muito pior. Durante o período petista, a quantidade de noticias falsas foi permanente. Há um caldo de cultura fascistóide no sentido trivial, não no sentido político do fenômeno

Valor: E que fenômeno político foi esse que deu nascimento ao governo Bolsonaro?
Wanderley Guilherme: A esquerda não se perguntou até agora como é que depois de 12 anos de votação maciça no PT, do Nordeste ao Sudeste, à exceção de São Paulo, 40 e tantos milhões de pessoas, inclusive aqueles que recebem menos de dois salários mínimos, passaram para o outro lado. O problema fundamental é esse. O que fez com esse capital político da esquerda deixasse de ser majoritário em quatro meses de campanha?

Valor: Haddad disse que foram as ‘fake news’. Não foram?
Wanderley Guilherme: Esta é a opinião dele. Acho uma análise sociológica e política pobre e crua, de quem está bastante impactado por aquele apoio que parecia prometido para ele na hora em que Lula dissesse que o candidato não era ele, era Haddad e que se revelou uma falsidade. Certamente o PT não se recuperou de ter quase ganho no primeiro turno quando, na realidade, quase perde. E isso aconteceu em 15 dias. Acreditar que mais de 50 milhões de brasileiros sejam fascistas é entrar num discurso delirante semelhante aos discursos delirantes de Jair Bolsonaro. Não existem 50 milhões de fascistas no Brasil.

Valor: E o que foi que aconteceu?
Wanderley Guilherme: O que aconteceu foi que esses 50 milhões deixaram de votar nos seus candidatos e votaram em Bolsonaro. É isso que tem que ser entendido e não qual foi o efeito da ‘fake news’. O que precisa ficar claro é que se trata de um governo de ocupação, como o candidato do PSL deixou claro nos discursos dele.

Valor: O que é um governo de ocupação?
Wanderley Guilherme: Quando ele estima considerar movimentos de sem-terra como organização terrorista ou diz que os vermelhos ou vão embora ou vão para a cadeia isto é um governo de ocupação que transforma toda a oposição em inimigo. A visão que Bolsonaro transmitiu é que seus opositores são estrangeiros ao Brasil. Não são brasileiros propriamente ditos. São estranhos ao Brasil. É importante entender que um governo de ocupação não é necessariamente fascista. Ele vai usar as leis que existem. Leis que estão no código penal e na Constituição e que podem ser aplicadas de uma forma perfeitamente violentadora daqueles direitos que supúnhamos adquiridos mas que não têm respaldo institucional nas leis do país. A legislação brasileira é extremamente conservadora. E até mesmo Fernando Henrique Cardoso se valeu dela, ao dar início ao seu governo enquadrando uma greve na Petrobras na Lei de Segurança Nacional.

Valor: Bolsonaro não precisará fazer mudanças legislativas para reprimir movimentos e opositores?
Wanderley Guilherme: Não. Basta se considerar um governo de ocupação. Basta ouvir sua concepção de poder. Ele vai ocupar o país. E vai expulsar todos aqueles que gozavam de liberdade, pela benevolência da interpretação das leis por parte dos governos democráticos. Não será necessário violentar a legislação para se exercer um governo de ocupação. Ele vai tratar seus adversários como opositores do país.

Valor: É plausível a ideia de que ele se fie no respaldo militar, e no sistema de informações que foi recentemente centralizado na Abin, para coagir e constranger sua base política a votar como lhe convém?
Wanderley Guilherme: Talvez seja desnecessário. De saída, ele já começa com 243 deputados se somar os votos dos partidos que formarão a maioria com ele. E não se incluem aqui os adesistas que virão do MDB, do DEM ou do PSDB. Já tem maioria absoluta. Faltam uns cento e poucos votos para a maioria constitucional. Ele não terá muita dificuldade nem precisará um esforço maior para ter aquiescência parlamentar. É um Congresso que foi eleito na onda do Bolsonaro, bem como os governadores. Certamente vão surgir as cobranças, como em qualquer outro governo, mas esta próxima Câmara será muito mais fácil para Jair Bolsonaro do que foi para os governos do PT.

Valor: Ele resistirá ao loteamento dos cargos estratégicos do governo por esta base, como prometeu?
Wanderley Guilherme: Tenho dúvidas. Em 2016 tivemos uma coalizão entre Executivo, Legislativo, imprensa, empresariado e Supremo. Foi esta coalizão que, dentro da lei, sem violência alguma, destituiu [a ex-presidente] Dilma [Rousseff]. Esta coalizão tem vários interesses contraditórios mas tem um comum que é o de impedir que a centro-esquerda volte ao poder. E isso foi feito. Agora estão com tudo na mão, com um elemento novo que é a infiltração de militares para o exercício do poder executivo. Não importa se são da reserva. É uma convocatória. Ao que parece o que Bolsonaro pretende fazer é blindar todas as áreas estratégicas de governo, de infraestrutura, com os projetos que estão sendo elaborados por engenheiros e toda a elite tecnológica do Exército. Estão organizando, fazendo seminários, propostas e vão ocupar os cargos. O comando dessas áreas pelos militares é fundamental para o sucesso do governo. É um passo complicadíssimo para romper aquela coalização conservadora que continua majoritária e firme sempre que se trata de atingir a esquerda.

Valor: É com o Exército que ele vai conter o loteamento?
Wanderley Guilherme: Imagino que sejam esses seus planos. Se vai funcionar ou não é outra coisa. Porque a agenda de problemas, fosse quem fosse o presidente, é muito complicada. Mesmo havendo uma retomada sólida do desenvolvimento econômico via investimento privado ou publico será no sentido do mundo moderno e da revolução tecnológica por investimento na automação. Não haverá lugar para 13 milhões de desempregados.

Valor: Uma população gigantesca como esta mantida à margem não vai gerar muita conturbação social?
Wanderley Guilherme: Certamente. No período petista esses problemas foram minimizados com crescimento e políticas sociais modestas, diria até vergonhosas porque são o índice de extensão da nossa miserabilidade. Você ter como algo meritório um programa como o Bolsa Família de R$ 83 por mês é uma vergonha.

Valor: Qual será o papel da oposição?
Wanderley Guilherme: Se eu tivesse algum papel político tentaria romper essa coalizão via Supremo Tribunal Federal. Como instituição democrática, o histórico do STF é pífio, menor. Porém, sempre tem grandes nomes capazes de chamar à razão.

Valor: Mesmo na ditadura?
Wanderley Guilherme: Não, na ditadura sempre foram subservientes ao poder. Com toda a pompa e circunstância do discurso, sempre concederam o que lhe pediram, exceto quando os governos estavam no fim. Este é o histórico do nosso Supremo. Mas nunca deixou de ter, por outro lado, personagens ímpares, nos períodos democráticos, como Vitor Nunes Leal e Adauto Cardoso. As estruturas partidárias estão destruídas do ponto de vista do crédito. É urgente e importante que se crie uma instância extrapartidária, civil, para se contrapor a um governo de ocupação, capaz de ir englobando pessoas e não instituições.

Valor: Mas de que natureza seria essa instância?
Wanderley Guilherme: Incluiria toda a oposição, mas não como representantes dos partidos, como pessoas, a integrar uma instituição civil não partidária.

Valor: Uma frente, então?
Wanderley Guilherme: Sim. E tem que trazer o PSDB. Uma grande frente anti-governo de ocupação que englobe todos os derrotados nessa eleição.

Valor: Mas foi muito difícil formar uma frente democrática neste segundo turno. Isso não antecipa as dificuldades de vir a fazê-lo depois?
Wanderley Guilherme: Não. Não é uma frente partidária e ninguém entra partidariamente. E tem instâncias nacionais e locais.

Valor: Quais seriam os pressupostos dessa frente?
Wanderley Guilherme: A defesa da democracia. O país não é fascista. Pode ser conservador e ter um conceito limitado de democracia, mas fascista não é. Vamos ter muitos motivos de continuada intranquilidade social. Esta eleição não vai acabar. Agora é que vai começar porque os conflitos não vão ser resolvidos. Não tem nada que permita antecipar que essa polarização vá diminuir. Muito pelo contrário. Por isso é preciso tentar retomar um modo de interpretação da legislação coercitiva que já existe e que vai ser usada na sua literalidade. Por isso é importante a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal.

Valor: Mas de que maneira a gente pode acreditar que o Supremo vá agir nessa direção se o presidente da Corte, ainda que tenha reagido a ameaças, colocou um general no seu gabinete e já chama a ditadura de 1964 de movimento?
Wanderley Guilherme: O histórico recente não autoriza otimismo, mas o Supremo, como instituição, não tem caráter, é suscetível a pressões. Por isso é importante que haja essas pressões sobre nomes do Supremo e de outras instâncias para que chamem a ordem. Dentro de lugar nenhum vai acontecer nada sem pressão. Conto com a imprensa.

Valor: Com a entrada dos militares em setores da infraestrutura, com planejamentos de longo prazo, não vai ser difícil tirá-los de lá? Vão montar tudo isso e entregar para um governo eleito que precise, novamente, compor sua base?
Wanderley Guilherme: Por isso acho que é muito importante a lição que a gente aprende em diretório acadêmico. Um novo presidente do diretório acadêmico precisa aproveitar a primeira oportunidade que surja para ganhar a batalha contra as autoridades. Senão ele está perdido. Com isso quero dizer que tem que haver um primeiro ministro militar demitido. E aí você joga.

Valor: Mas um presidente como Bolsonaro vai demitir um ministro militar?
Wanderley Guilherme: E por que não? As coisas não são inamovíveis e invencíveis. Essa era vai ser longa? Em princípio, sim, mas pode não ser. Não sei se o governo Bolsonaro termina.

Valor: Como é que o senhor distribui a responsabilização do resultado entre PT e PSDB?
Wanderley Guilherme: É difícil falar sobre isso logo depois de uma derrota. Ainda é uma coisa obscura se essa estratégia do PT foi imposta sobre Lula ou o inverso. De onde veio essa maluquice da campanha de fazer de Lula candidato e substituí-lo de última hora? A bipolaridade da campanha, a esquizofrenia. Essa coisa de xingar o Judiciário de tudo. Tudo errado. É o que o Ciro falou, Haddad foi o candidato escalado para perder.

Valor: E qual será o papel do Ciro daqui por diante?
Wanderley Guilherme: Vai ter que participar, senão é ‘fake’. E não na condição de candidato em 2022. O candidato presidencial pode ser qualquer um. Não dá para entrar num movimento com cartas marcadas. É uma coisa muita séria para ser comprometida por projetos pessoais. Não pode tirar casquinha.

Valor: O lulismo acabou?
Wanderley Guilherme: Haddad não seria Lula. Dilma foi Lula. Fez um grande governo. Agora o Lula está acabado. Não lidera mais a esquerda. Quando deixou de ser candidato, passou uma semana ali no noticiário depois ninguém mais falou nele. E ele sabia que isso ia acontecer. Ninguém mais disse ‘Eu sou Lula’. Acho que ele leu isso.

Valor: O partido entrou na campanha disposto a manter o mito do Lula vivo e acabou por enterrá-lo?
Wanderley Guilherme: Acho que sim. A análise do que aconteceu vai ser pouco elucidativa do que se deve fazer. Constatar que o lulismo acabou não deve nos levar a xingar o Lula. Acabou. É daqui pra frente que se deve planejar o que fazer para recuperar a democracia. Num governo que não precisa violar as leis para ser antidemocrático. É o problema que o mundo inteiro está discutindo só aqui que não. As democracias estão sendo corroídas pelas leis democráticas, depende como estas são aplicadas. Dependendo como se usa a lei essa nossa conversa aqui pode ser considerada um atentado contra a democracia. As instituições democráticas, pelas suas virtudes, de tolerância interpretativa, abrem um espaço para se governar autocraticamente em nome da democracia.

Valor: Dessa onda de direita que agora chegou ao Brasil, dá para vislumbrar uma reação da sociedade?
Wanderley Guilherme: A base da sociedade não está nem aí porque o custo de participação política é muito elevado, a não ser que estejam protegidas porque o custo do fracasso é elevadíssimo. O que não é para segmentos como os intelectuais. Se o povão quiser fazer passeata vão levar pancada e vão ser demitidos. Por isso é que tem que começar por nós. É papel dos intelectuais pôr as ideias em circulação e fazer contatos. Estamos nos acertando com o passo da história da pior maneira possível. O modo de organizar, as relações sociais, o tempo que se gasta na internet está acabando a interação pessoal. Não há de se ficar contra porque não tem jeito. A questão agora é ver o que dá para fazer para não se perder a humanidade.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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