As mentiras e o ódio de Bolsonaro pelo meu pai
Por Marcelo Rubens Paiva
24 Outubro 2018 | 12h40
Como deputado, Jair Bolsonaro costuma proferir desde os anos 1990 na Câmara dos Deputados discursos mentirosos sobre meu pai, Rubens Paiva, um deputado federal como ele.
Todos taquigrafados em http://www.camara.leg.br
Nunca demos bola. O ex-capitão era uma figura secundária na política brasileira e se sobressaía exatamente pelas falas polêmicas e sem sentido, ofensas a gays, negros, nordestinos e mulheres, no Congresso e em programas de rádio e TV. Falas que continua a pronunciar.
Como candidato à presidente, repete sua teoria sobre uma suposta participação indireta do meu pai na Guerrilha do Vale do Ribeira.
Seus seguidores passaram a reproduzir trechos da sua teoria nas minhas redes sociais. Foi então que eu soube dela.
Meu pai teria dado armas a Lamarca, diz. Todos sabem que, em 24 de janeiro de 1969, acompanhado do sargento Darcy, do cabo José Mariani e do soldado Roberto Zanirato, o capitão Lamarca desertou do Exército levando do 4º Regimento de Quitaúna uma Kombi com 63 fuzis FAL, três metralhadoras leves e alguma munição.
Armamento que usou no Vale do Ribeira, em guerrilha financiada por milhões de dólares roubados do cofre do ex-governador Adhemar de Barros.
Bolsonaro disse no plenário da Câmara de 20 de março de 2012:
“Então, o Lamarca, aproximadamente em 3 meses, estava a montante do Rio Ribeira de Iguape, Município de Eldorado Paulista, lindeiro com a Fazenda Caraitá. Que Fazenda Caraitá é essa? Pertencia à família Paiva. Um dos donos: Rubens Paiva. E o Rubens Paiva, então, foi quem indicou aquela região para o Lamarca, assim como no passado indicaram a região do Araguaia. Então, o Lamarca usava aquela região, indicada por Rubens Paiva, e bancado, financeiramente, por Rubens Paiva.”
Quem foi fazer guerrilha no Araguaia foi o PCdoB, anos depois. Lamarca já estava morto, assim como meu pai.
A fazenda de Eldorado não era do pai, mas do meu avô, Jaime Paiva, morador de Santos, com quem meu pai tinha desavenças justamente por conta das convicções conservadoras do velho, a quem chamava de “Coroné” (meu avô chegou a ser eleito prefeito de Eldorado pela ARENA, o partido braço civil dos militares durante a ditadura).
Meu pai passou a infância dos anos 1930 e 1940 na fazenda, e depois raramente ia. Morávamos no Rio de Janeiro.
“Rubens Paiva deu o local, deu os meios para que Lamarca criasse um foco de guerrilha na região de Barra do Braço, pertencente a Eldorado Paulista.”
O campo de treinamento da guerrilha na verdade ocorreu a mais de 100 quilômetros de Eldorado Paulista, nas matas na fronteira com o Paraná, e na fuga eles saíram em Barra do Turvo, a 50 quilômetros de mata da fazenda, região montanhosa sem estradas.
Continuam os delírios de Bolsonaro: “Acusam-nos de ter matado Rubens Paiva. O grupo do Lamarca suspeitou e chegou à conclusão de que ele foi denunciado pelo Rubens Paiva quando foi preso. Ninguém resiste a tortura… Então, o grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado. E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas.
Em 2014, o general reformado Raymundo Ronaldo Campos revelou que o Exército montou uma farsa ao sustentar, na época, que Paiva teria sido resgatado por seus companheiros “terroristas” ao ser transportado por agentes do DOI no Alto da Boa Vista.
Raymundo, que era capitão, conduzia o veículo supostamente atacado e estava na companhia dos sargentos e irmãos Jacy e Jurandir Ochsendorf.
Segundo O Globo: “O general, que passou os últimos 43 anos sustentando a farsa, mudou a versão sobre o episódio em depoimentos ao Ministério Público Federal e à Comissão Nacional da Verdade. Ele admitiu que recebera ordens do então subcomandante do DOI, major Francisco Demiurgo Santos Cardoso (já falecido), para levar um Fusca até o Alto da Boa Vista e simular o ataque. Raymundo e os dois sargentos metralharam e incendiaram o carro, jogando um fósforo aceso no tanque de combustível.”
A família Rubens Paiva, além de conviver com a dor morte sob tortura absurda por tantas décadas, ainda tem que aturar o ódio delirante de Bolsonaro, que cuspiu no seu busto nos corredores do Congresso, na inauguração.
Como conta meu sobrinho Chico Paiva Avelino, em texto comovente publicado ontem no Facebook:
A cusparada premonitória de Jair Bolsonaro -por Chico Paiva Avelino
Em 2014, a Câmara dos Deputados fez uma tocante homenagem ao meu avô, Rubens Paiva: inauguraram um busto com a sua imagem em função de sua incessante luta pela democracia – causa pela qual ele literalmente deu a vida. Minha família foi em peso. Emocionadas, minha mãe e minha tia fizeram discursos lindos e orgulhosos sobre a memória do pai. No meio de um deles, fomos interrompidos por um pequeno grupo que veio se manifestar. Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que “Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado.
Gostaria muito de poder conversar com o meu avô nesse momento político pelo qual passamos. Teria muito a acrescentar: foi eleito Deputado Federal por São Paulo em 1962, e cassado pelo AI-1 em 10 de abril de 1964. Como democrata exemplar que era, sempre lutou contra o autoritarismo e nunca encostou numa arma. Infelizmente essa oportunidade me foi arrancada quando, em janeiro de 1971, ele foi levado de casa junto com minha avó e minha tia, que na época tinha 15 anos, para os porões do DOI-Codi do Rio de Janeiro, na Tijuca. Lá, foi torturado até morrer pelo aparelho de repressão montado pelo regime militar, cuja filial paulista era comandada por ninguém mais nem menos do que o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Na época, não havia ficado claro o motivo dos militares levarem também a minha avó e minha tia. Hoje, conhecendo os métodos praticados por Ustra, sabemos que era para trazê-las à sala de tortura e pressionar o meu avô. Elas, em celas ao lado, separadas, ouviram seus gritos antes que ele fosse morto.
O atestado de óbito só foi entregue à família 25 anos após o assassinato, em 1995. O corpo jamais foi entregue. Na Comissão Nacional da Verdade, outros militares envolvidos no crime disseram que o corpo foi enterrado e desenterrado duas vezes. Sobre o assunto, Bolsonaro debochou: pendurou na entrada do seu gabinete em Brasília uma placa que dizia “quem procura osso é cachorro”.
Hoje em dia, Ustra é mais famoso não pelas atrocidades que cometeu, como torturar mães na frente de suas crianças, colocar ratos e baratas vivas dentro da vagina das mulheres, estupros, pau de arara, choques, entre outras; mas por ser o grande ídolo, chamado de herói, pelo nosso provável novo presidente, Jair Bolsonaro – que diz que seu livro de cabeceira é a história do coronel.
Em seu voto a favor do impeachment, Bolsonaro prestou homenagem ao torturador da ex-presidente. No púlpito do Congresso Nacional, com o país inteiro assistindo, ele decidiu lembrar de um ser asqueroso que era o contrário de tudo que a democracia representa, e que havia covardemente torturado a mulher que ele ali teve o sadismo de torturar psicologicamente mais uma vez.
Desde que me dou por gente, essa cicatriz já havia sido fechada na família. Não era um assunto tabu. E sempre fui ensinado que essa não era uma luta pessoal, que não devíamos denunciar e brigar contra essas práticas como vingança familiar, mas para evitar que isso ocorresse com outros. Não era uma briga nossa, mas de todo o país. Minha mãe foi a muitos eventos e deu muitas entrevistas naquele ano por ocasião dos 50 anos do golpe de 1964. Em todas elas fazia questão de lembrar do caso Amarildo, pedreiro desaparecido e assassinado pela PM do Rio de Janeiro em 2013 – como aquela prática seguia mesmo na nossa frágil democracia, e como a dor da família de Amarildo era a mesma pela qual a nossa havia passado.
Estamos às vésperas de uma eleição na qual Bolsonaro não só reafirmou sua admiração por Brilhante Ustra, mas a todo aparato do regime militar. Meu avô lutou contra discursos como esse e por isso foi covardemente preso, torturado e assassinado. Deu a vida pela democracia. Hoje, fica evidente que aquela cusparada não era algo meramente simbólico, mas um prenúncio daquilo que ele pretende fazer como Presidente, e que vem incansavelmente repetindo durante a campanha: prender e exilar seus adversários políticos, eliminar militâncias e desaparecer com as minorias.
Ainda dá tempo de evitar isso, e o poder está em nossas mãos, com nosso voto. Eu nunca imaginei que, em 2018, essas informações não bastassem para que as pessoas pudessem ter repulsa a um político que defende isso. Espero que ajude alguém a refletir, a tornar mais palpável quem é Jair Bolsonaro. Em 1964, foi Rubens Paiva e milhares de outros. Em 2018, pode ser eu, você, as pessoas que amamos.