Wanderley Guilherme: quem são os partidos da “nova ordem mundial”

No blog Segunda Opinião

GÊNESE DOS NOVOS PARTIDOS DA ORDEM: O BRASIL NA DANÇA MUNDIAL
3 de outubro de 2018

Automação, segunda idade da máquina ou quarta revolução industrial, o fenômeno é um só: a expansão tecnológica envolvendo nanotecnologia, novos materiais, crescimento exponencial da capacidade de armazenar e operar gigantescas bases de dados produz um corte irreparável com a revolução industrial clássica. Corolário da ruptura, enquanto a revolução industrial multiplicava oportunidades de empregos e congregava operários no mesmo local de produção, favorecendo a solidariedade, a subversão digital é adversária do trabalho e estimula isolamento, individuação do produtor e contratação personalizada dos serviços.

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee são otimistas quanto à capacidade de “um tempo de brilhantes tecnologias” superar as dificuldades nascentes, sem omitir que durante a clássica revolução industrial as recessões eram seguidas de recuperação dos níveis de emprego e nas antigas ocupações, ciclo ausente, agora, depois das ondas de inovações poupadoras de mão de obra. A oferta de empregos não recompõe numericamente os lugares perdidos e, sobretudo, faz com que vários tipos de ocupação desapareçam durante a transição: menos pessoas voltam ao trabalho, por falta de número e/ou espécie de ocupação e com níveis salariais abaixo dos anteriores (The Second Machine Age – work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies, 2014).

Em pesquisa oposta à concepção de que o problema seria temporário, Martin Ford investiga consequências efetivas da revolução digital (ele próprio fundador de empresa de desenvolvimento de software no Vale do Silício), e avalia não serem a educação e o adestramento de trabalhadores respostas suficientes ao naipe de desafios do futuro imediato. Essa a terapia que, alegadamente, daria solução às exigências de um modo de produção com elevado consumo de conhecimento técnico. Ademais, não são as ocupações de baixa qualificação as únicas ameaçadas, mas também o setor de serviços e até o mercado de profissionais altamente qualificados. “Nossas inovações não têm por objetivo tornar os empregados mais eficientes; a meta é dispensá-los completamente”, declaração do fundador de uma empresa de robótica, citado por Ford (Rise of the Robots – technology and the threat of a jobless future, 2015).

O ímpeto inevitável do progresso da automação está cruamente sumariado neste propósito: retirar o trabalho fora da equação econômica. “Removendo os humanos fora da equação” é titulo de capítulo escolhido por Douglas Rushkoff para desenvolver a tese, vastamente documentada, de que o sistema econômico deixa de adquirir valor (renda) pela via do atendimento às necessidades e desejos dos consumidores, com base na competição entre empresas singulares, passando a condicionar necessidades e desejos dos consumidores, extinguindo na prática o livre-mercado. Grandes corporações e conglomerados, tipo Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft, operam, via globalização, no universo dos winner-takeall-markets. Isso é, mercados monopolistas em que não há condições de competir com o vencedor, que ocupa todo o espaço econômico disponível. Na ausência de informações alternativas, são as corporações que moldam as necessidades e desejos dos consumidores. Quantos são os leitores no mundo, hoje, que pautam suas escolhas exclusivamente pelo cardápio que lhes é oferecido diariamente pela Amazon? (Throwing rocks at the Google bus – how growth became the enemy of prosperity, 2016). Em conexão com Thomas Piketty: dinheiro faz dinheiro mais rápido do que as pessoas e companhias conseguem criar valor. E essas não são deformidades sanáveis por programas emergenciais aos desvalidos de sempre ou aos desalentados modernos, não obstante a necessidade de mantê-los enquanto se altera com radicalidade a engenharia do mundo do século XX.

A extraordinária capacidade de armazenar dados e deles extrair padrões e correlações opera como uma das principais ferramentas para promover a transformação de mercados competitivos clássicos em winner-take-all-markets. Concebido, restritivamente, para indicar competição em que as diferenças em prestígio e renda entre o primeiro e segundo é abissalmente desproporcional comparadas à diferença da qualidade real entre os dois (exemplo recorrente são as competições esportivas: natação, maratonas, etc.), o conceito é apropriado para a extinção da competição entre empresas de relativamente igual capacidade e a instauração de mercados de vencedores únicos. A revolução digital equivale à promoção sistêmica do desaparecimento da ordem industrial, anciã de dois séculos, pela ordem digital e automatizada das gigantescas empresas que, sob a aparência de democratização de informação, se apropriam de todos os fluxos alternativos e passam a arbitrar o leque de escolhas a nossa disposição (Robert Frank e Philip Cook, Te Winner-take-all-society, 1995; Scott Galloway, The Four – the hidden DNA of Amazon, Aple, Facebook, and Google, 2017; Franklin Foer, World Without Mind – the existential threat of big tech, 2017).

Todavia, para o fundador do Forum Mundial, Karl Schwab, o futuro é o arco-íris prometido, desde que reconhecidos e superados os obstáculos com origem na revolução industrial anterior, na ordem da economia e na ordem da governança. A meta: uma sociedade automatizada ao extremo, com trabalhadores isolados mantendo currículos disponíveis em nuvens de informação, e que aí serão recrutados para serviços pontualmente definidos, sem obrigações posteriores entre o cliente e o técnico solicitado. Segundo Schwab, a autonomia do trabalhador será total, teoricamente livre para atender ou não ao recrutamento, em função de sua agenda de solicitações ou de lazer (The Fourth Industrial Revolution, 2016). O relativamente pequeno volume (184 páginas) comprime com eficiência as principais propostas de governo, organização social e regras econômicas características do novo mundo, acompanhadas de números destinados a comprovar a incurável insuficiência do mundo da terceira revolução industrial.

Não obstante a construída consistência lógica entre todas as propostas, eu creio que essa obra permanecerá como uma das mais interessantes utopias elaboradas ao início do século XXI, a começar pela premissa de que os desdobramentos da sociedade da automação proverão ocupações distintas, mas equivalentes em número às ocupações destruídas. O autor expõe uma profecia incauta diante de difíceis incógnitas como futuros movimentos demográficos, conteúdos das novas ocupações, divisão social do trabalho e efeitos da produtividade. Quanto ao estilo de governança, um suposto luxo de transparência, de votações por e-mail e outras lucubrações são moderadas por modesta advertência de que todos os instrumentos de boa governança também poderiam ser utilizados malignamente. Mas a relevante e assustadora alternativa não recebe tratamento específico.

Convém registrar que todas as obras citadas, entre várias da literatura pertinente, dispõem de dados e de argumentações sofisticados, aqui resumidos e enfatizando predominantemente a inclinação dos autores em relação ao futuro do trabalho. Por certo, não faltam as utopias de um universo no qual, vistos os patamares de produtividade e organização das estruturas produtivas, a maioria esmagadora de pessoas ficaria ociosa. Contudo, sendo as sociedades de então extraordinariamente ricas, haveria esquema distributivo de renda tão elevada que daria acesso dos ociosos aos bens à disposição no “mercado”. Tal como os navegadores portugueses que, segundo Fernando Pessoa, estando a Índia descoberta, ficaram sem ter o que fazer. Praticamente, uma sociedade de inúteis segundo critérios, se não do século XIX, com certeza do século XX. Registro que, mesmo autores entusiasmados com as promessas da robótica, cultivam certa cautela perante a ideia de sociedades claramente divididas, sem remissão, entre os que trabalham e os que não trabalham, ainda que o desejassem, além da incógnita sobre o próprio sentido existencial do trabalho. Ryan Avent talvez seja quem mais densamente tem refletido sobre os tipos de sociedade que a revolução tecnológica trás embutidas (The Wealth of Humans – Work, Power, and Status in the Twenty-first Century, 2016).

Estudos empíricos sobre as consequências da crise de 2008 têm revelado que a recuperação do desastre corrobora as previsões de redução no número de postos, reconfiguração das qualificações requeridas, o estabelecimento de relações entre empresas e indivíduos, não mais coletividades de empregados, redução dos níveis salariais e, nos países outrora de elevado bem estar social, conflito e gradativo desmanche dos laços de proteção ao trabalho. Os acordos enfrentados pelos sindicatos operários empenham-se em resistir aos ataques a conquistas históricas, antes que lutar por avanços a partir do status quo. O status quo trabalhista, hoje, é a última linha de defesa dos trabalhadores na Alemanha, nos Estados Unidos, na Dinamarca, na Bélgica, na Noruega, enfim, em todos os países de capitalismo avançado nos quais o nível de renda permitia a adoção de políticas de extensa proteção social.

Hoje prevalece a instituição forçada de mercados duais de trabalho – parte dos trabalhadores protegidos pelos direitos antigos, parte fora dos contratos coletivos, isolados, à mercê de ocupações temporárias e salários menores. – etapa indutora da abolição completa da sociedade industrial do século XX. A desorganização da produção e a fragilização das entidades trabalhistas, depois de 2008, proporcionou maior velocidade à difusão tecnológica e assalto ao trabalho, com as consequências negativas mais ou menos previstas. O diagnóstico compreende desde países utilitaristas como os Estados Unidos até as invejadas sociedades nórdicas (Kathleen Thelen, Varieties of Liberalization and the New Politics of Social Solidarity, 2014). Na Alemanha, mas principalmente nos países nórdicos, a estratégia dos atores anteriormente privilegiados – grandes sindicatos de trabalhadores, partidos sociais democratas e corporações econômicas – alteram gradativamente os padrões de coalizões, com a aproximação entre conservadores clássicos, partidos de esquerda e operariado tornado precário, formando associações tácitas em defesa das estruturas do século XX sob os ataques da revolução digital que os ameaça a todos. Embora com reduzida clareza, na Europa, os partidos de esquerda, diante da ameaça de um renascimento fascista, são os novos partidos da ordem decadente.

Esses processos se refletem nos indicadores sociais do mundo todo. A organização The Social Progress Imperative acaba de publicar seu 2018 Social Progress Index, avaliando 51 indicadores de nutrição, habitação, segurança, educação, saúde, usufruto de direitos e inclusão, em 146 países. Grande número deles, mesmo os mais bem colocados historicamente, embora continuando no grupo de vanguarda, exibem piora em alguns escores específicos O Brasil encontra-se na quadragésima nona posição do terceiro grupo de países. A publicação é de fácil acesso, dispensando a enumeração dos diferentes pontos alcançados pelos países e como se comparam entre si.

Termino com a menção de que o Brasil acolhe regiões ainda intocadas pela revolução industrial clássica, outras contemporâneas de nichos equipados com produtos da primeira metade do século XX, e, enfim, de alguns segmentos ingressando na idade digital. É um país composto por retalhos dos séculos XIX, XX e XXI, com populações e líderes políticos ajustados a cada retalho. Prepara-se para iniciar a década dos vinte do século XXI com a talvez definitiva extinção do velho partido da ordem, o PSDB, e a mobilização belicosa do conservadorismo radical, associado aos zumbis remanescentes do século XIX.

Na polaridade atual, quem representa o partido da ordem, não obstante a presumida identidade de esquerda? Na melhor das hipóteses, o Brasil está para ser governado por representantes exemplares do século XX, em coalizão defensiva da ordem em decadência. Como propostas, fora os delírios dos zumbis, apresentam promessas de reativação de iniciativas, aprimoradas, sem dúvida, mas impedidas de transgredir o receituário avançado do século passado que, no atual, será a vitamina de sustentação da obsolescência. O Brasil arrisca-se a permanecer um retardado crônico, durante o século XXI, assim como foi um industrializado capenga durante o século XX.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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