No El Pais
Mulheres quebram o jejum das ruas no Brasil com manifestações contra Bolsonaro
Centenas de milhares de pessoas se uniram a protestos em 65 cidades, segundo coletivos que ajudaram a organizar os atos. Em São Paulo, ato foi do Largo da Batata à Paulista
RICARDO DELLA COLETTA
São Paulo / Recife / Brasília 30 SET 2018 – 06:24 CEST
Mulheres quebram o jejum das ruas no Brasil com manifestações contra Bolsonaro ‘#EleNão. #NósSim’, por Eliane Brum
Eram cinco e meia da tarde quando um som cadenciado de tambores silenciou de repente a multidão gigantesca que se reuniu no Largo da Batata, a praça dos protestos de São Paulo escolhida pelas mulheres para se manifestar contra o presidenciável Jair Bolsonaro no ato batizado de #Elenão. A percussão era do grupo Ilú Obá De Min – formado apenas por mulheres – que pediu passagem às pessoas para chegar ao carro de som. Quando os tambores pararam, uma locutora do alto do carro pediu ao público para repetir o manifesto criado para a ocasião. “Somos mulheres, milhões e diversas…”, começava o texto que explicava a razão do ato. “Estamos, hoje, juntas e de cabeça erguida nas ruas de todo o Brasil porque um candidato à presidência do país, com um discurso fundado no ódio, na intolerância, no autoritarismo e no atraso, ameaça nossas conquistas e nossa já difícil existência”, liam em coro as mulheres que quebraram o jejum das ruas dos últimos dois anos.
O ato na capital paulista, termômetro dos protestos no Brasil, reuniu centenas de milhares de pessoas, certamente mais de 100.000, no maior protesto popular registrado desde setembro de 2016, quando os brasileiros foram às ruas contra o presidente Michel Temer logo após o impeachment de Dilma Rousseff que, por sua vez, foi apoiado por multitudinárias jornadas também nas ruas. Integrantes de coletivos femininos estimam em 150.000 pessoas em São Paulo a participação, uma cifra que no país elas estimam a meio milhão nas 65 cidades em que houve protestos. Para além do número vultuoso, as mulheres reproduziram o que as pesquisas já falam sobre o candidato à presidência da República do nanico PSL. O deputado federal, que lidera a corrida presidencial de 2018 com 28% das intenções, tem uma taxa de rejeição de 46%. Entre o eleitorado feminino, esse rechaço chega a 52%.
No Brasil dos últimos anos, elas já aprenderam que fazer barulho tem ajudado a mudar o curso de algumas decisões. Foi assim na primavera feminista de 2015 – os protestos contra um projeto de lei que complicaria o acesso à pílula abortiva em caso de estupro – e nas diversas campanhas para aumentar sua voz, como a #primeiroassédio, que estourou nas redes. Desta vez, as brasileiras voltam à cena, agora para tentar evitar que Bolsonaro chegue à presidência no maior protesto liderado por mulheres no Brasil. O ato coincidiu com a alta do candidato, que ficou hospitalizado 23 dias depois do atentado na cidade de Juiz de Fora (MG) que quase lhe tirou a vida. O presidenciável deixou o hospital Albert Einstein, em São Paulo, e seguiu para a sua casa no Rio de Janeiro num voo tumultuado com vaias e aplausos.
Mas as ruas seguiam seu curso no ato mais esperado da eleição. No Recife, capital pernambucana, a aposentada Maria Estela, 94, foi aplaudida ao chegar de camiseta vermelha em sua cadeira de rodas ao ato. “Não podia deixar de vir”, disse, emocionada. A juventude também estava em peso para mostrar que elas pretendem multiplicar as vozes femininas pelos direitos da mulher no Brasil. “Ao longo dos últimos anos, as mulheres lutaram e conseguiram o básico, o mínimo de seus direitos. Não podemos perder esse mínimo para o Bolsonaro”, disse a estudante de direito Isadora Alexandre, de 20 anos, que chegou ao ato do Largo da Batata na tarde desta sábado acompanhada de quase dez amigas de várias partes do Brasil: Pernambuco, Ceará e Minas Gerais. “Na minha faculdade, vemos as salas lotadas de mulheres em sua maioria, mas os que ensinam, os professores, são, na maior parte das vezes, homens. Isso é bastante revelador de uma sociedade não igualitária e machista”, diz.
O sentimento era comum a todas as manifestantes presentes. “A mulher tem muito poder e temos de saber falar não e não nos sentir pequenas”, refletia R., uma vendedora de camisetas com a inscrição #Elenão, que estava na marcha para complementar sua renda como diarista. Mãe de três filhas e um menino, R. preferiu não dar seu nome para a reportagem para que as suas patroas não a identificassem. Mas ela mesma não escondia sua identificação com o protesto — a resistência a Bolsonaro está especialmente entre as mulheres mais pobres e vai diminuindo conforme aumenta a renda. “Se esse homem pegar o Brasil, leva a gente para um buraco maior ainda do que o que estamos agora. É um homem cheio de preconceitos… Imagina a direção do país com um homem assim!”, completou ela.
Com a marcha deste sábado, as mulheres forjaram uma coalizão ampla da sociedade, não só porque, sob a consigna, cabiam candidatos de todos os espectros políticos, mas porque concentrou num único ato toda a resistência à retórica antiminorias de Bolsonaro. As bandeiras de arco-íris, da comunidade LGBTQ, se uniu aos símbolos do movimento negro e ao público geral em apoio à pauta feminina e à aversão ao presidenciável do PSL. “Todo o discurso de Bolsonaro é tóxico, não podemos deixar que ele comande o país”, diz o estudante Felipe, de 16 anos que, acompanhado de outro amigo, veio a manifestação engrossar o número de homens que participaram do ato. “Sou totalmente a favor desse movimento que as mulheres criaram contra esse candidato fascista. Estou aqui para, além de defender o meu país, defender as mulheres que amo e fazem parte da minha vida e seus direitos”.
Não foi a primeira manifestação do ano puxado pelas mulheres. No dia 8 de março elas saíram às ruas para lembrar seu dia Internacional, ainda que em proporção infinitamente menor do que a deste 29 de setembro. No dia 15 de março, foi a vez delas puxarem o ato em protesto contra a morte da vereadora Marielle Franco, assassinada a sangue frio junto com o motorista Anderson Gomes um dia antes. Mais de seis meses depois, o crime não foi esclarecido. Mas as mulheres do #Elenão estavam ali para lembrá-la com bandeiras que levavam seu rosto.
Diversas candidatas em campanha participaram da marcha. Marina Silva, da Rede, esteve lá, assim como as candidatas a vice Katia Abreu (PDT), Manuela D’Avila (PCdoB) e Sônia Guajajara (PSOL). Marina aproveitou a ocasião para criticar o autoritarismo do candidato. “Há várias formas de enfraquecer a democracia e o discurso autoritário é apenas uma delas. A outra é aquela que, disfarçada de grandes ideias, inclusive usando mecanismos de corrupção para fraudar a vontade soberana dos eleitores”, disse. Bolsonaro desafiou, em entrevista com o apresentador José Luiz Datena nesta sexta e ao Jornal Nacional neste sábado, os resultados da eleição do próximo dia 7 de outubro. “Pelo que vejo nas ruas, não aceito resultado diferente da minha eleição”, disse ele. A fala em tom ameaçador à autoridade eleitoral brasileira colocou mais lenha na fogueira contra o candidato.
É exatamente essa postura de desprezo pelas regras democráticas que estimulou Ana Frozatti a se unir ao protesto deste sábado. Ela integra o grupo Judias contra Bolsonaro, um movimento que assinou um abaixo assinado nas redes contra o presidenciável. “Estamos contra qualquer nome que traga de volta o nazismo ou o fascismo”, diz Frozatti. Como ela, as milhares de mulheres que foram para as ruas neste sábado esperam engrossar o bonde dos que vão evitar que o candidato seja o próximo presidente. Seus apoiadores, que fizeram atos em menor escala em 16 Estados, circulam em seus grupos de WhatsApp que pretendem voltar às ruas neste domingo, inclusive em São Paulo, para dar um revés ao sentimento de vitória das mulheres com o #Elenão. Mas as imagens de multidão nas principais capitais mostraram que o militar reformado terá muita dor de cabeça com o público feminino, seja ele eleito ou não.