Marco Aurélio Barroso: A Globo e a ONU

O Globo e a ONU com seus tratados e convenções

Por Marco Aurélio Barroso, especial para o Cafezinho

Machado de Assis, nosso maior escritor, com sua pena leve e macia, pontuava: O maior pecado depois do pecado é a publicação do pecado.

Vamos a ele. No mês de maio, sentenciando sobre demanda dos patronos do Presidente Lula, a ONU não dava provimento ao pedido de liberdade para Lula.

Com essa resposta negativa, O Globo aproveitou o fato, e em página principal, deu seu destaque costumeiro. O título era:

Comitê da ONU rejeita recursos da defesa contra prisão de Lula

No corpo da notícia, lia-se:

Uma vez mais, fica claro que ‘narrativas’ e discursos falaciosos podem ter apelo no mundo das paixões. O mundo dos fatos pede outro tipo de abordagem. A versão da ‘perseguição política’ pode mobilizar militantes, mas não órgãos sérios e apartidários.

Caso estivesse mesmo diante de um flagrante episódio de violação de direitos humanos, o órgão não hesitaria em atuar rápida e pontualmente para mudar a situação, dando ao menos conforto moral ao injustiçado. Não foi o que ocorreu.

Alvíssaras à ONU! Colocou o PT e Lula em suas devidas circunstâncias. Em sua história, O Globo, por ser nossa eterna guerra fria, sempre precisou de um inimigo. Seus editoriais sempre reclamavam e reclamam, requereram e requerem fatos dessa natureza para, seguindo sua filosofia quase secular, poder florir e desenvolver-se.

Mas, como sempre acontece, o tempo, esse tirano, não para.

Vai daí que, há poucos dias, essa mesma ONU, tão elogiada acima, com essa mesma Sarah Cleveland, sentencia que Lula pode e deve ser candidato com todas as prerrogativas de seus concorrentes. Pronto, isso foi o suficiente para O Globo, vermelho de raiva, fulo da vida, informar que o que fora, não é mais. E tasca um “fake news” na ONU. Mas, O Globo sempre foi assim. Sua cláusula pétrea número 1 reza: nada está acima dos nossos interesses. Este é mais um caso.

Mas, leitor, e essa é a razão desse breve artigo, o que diz O Globo sobre convenções, tratados e acordos da ONU. Chega-nos a ser estarrecedor e assustador o desrespeito de O Globo com seus leitores.
Jornal dessa cepa não pode ser respeitado e, se possível, lido apenas como exemplo edificante de antilogias históricas. Vamos aos fatos.

No longínquo mês de maio de 1938, sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, estudava-se uma revisão geral das leis trabalhistas. A relevância a que se atribuía às convenções internacionais, já pode ser notada nessas palavras de O Globo:

Uma comissão especial estudará a adaptação da legislação brasileira às convenções internacionais.

No interregno entre as duas Grandes Guerras, aconteceu o grande esplendor da tecnologia aérea. Não havia leis a seguir. Não havia ainda o direito dos povos positivado leis a cumprir. Com isso, tem-se um belo exemplo de O Globo, em 1953, reclamando essa falta de tratados e acordos internacionais para tal:

Infelizmente, não há convenções internacionais que regulem suficientemente os atos da guerra aérea. A aviação desenvolveu-se no período entre as duas guerras, quando a humanidade não cogitava mais de dar leis à guerra.

Em maio de 58, como um aguerrido batalhador do equilíbrio universal, nosso patético O Globo, urrava de desejo pelas…

… leis e convenções internacionais [que] são suficientemente claras para que o nosso Governo encontre facilmente a regra da boa vizinhança a seguir, sem contemporizações nem descontinuidade.

Caro leitor, no meio de dezenas de exemplos, procuro extrair os mais representativos espécimes para aniquilar o fake news de hoje.

Logo no começo do governo Jânio Quadros, o mundo viveu o episódio do sequestro do transatlântico português “Santa Maria”. Abraçado à jurisprudência internacional dos tratados e convenções, O Globo pugnava como poucos pela sua validade e juricidade. Estamos em fevereiro de 61, e o texto a seguir é definitivo para caracterizar como o supra fake news de agosto de 2018 não passa de fake news:

Deve o governo Jânio Quadros, algumas horas após a sua instalação, tomar posição em face do problema do “Santa Maria”. Ao fazê-lo não pode agir em função de impulsos emocionais ou demagógicos, de efeito ocasional. É preciso que o novo governo comprove, desde logo, que estava maduro para assumir o comando da Nação, mostrando-se à altura de nossas tradições no campo internacional e fiel aos princípios jurídicos que tem regido a nossa conduta diplomática.

Só assim estará assegurando ao país aquela respeitabilidade indispensável ao papel de grande potência, que todos ambicionamos e auguramos para futuro próximo, ambição que o Sr. Jânio Quadros não se cansou de estimular em toda a sua brilhante campanha eleitoral. Prometeu-nos S. Exa. que saberia dar destaque ao Brasil no cenário mundial. Não queremos outra coisa, desde que essa ascensão, esse realce não se consiga às custas de golpes publicitários ou com o sacrifício de nossos compromissos e obrigações.

No caso do “Santa Maria” não existe qualquer problema de Direito que já não esteja resolvido por anteriores acordos diplomáticos, firmados e sempre respeitados pelo Brasil. Recordamos, especialmente, a Convenção de Havana de 1928, que define o que é um barco rebelde, isto é, dominado por insurrectos, e declara que o mesmo deve ser detido, assinalados os tripulantes rebelados e devolvida a embarcação aos legítimos proprietários. Não é outra a condição do “Santa Maria”, que não tem características de pirata, como tem frisado sempre o capitão Henrique Galvão.

Aliás, a jurisprudência aplicável a casos assim é muito anterior à Convenção de Havana e remonta, se não nos equivocamos, a 1873, quando o Visconde de Caravelas, então ministro das Relações Exteriores, definiu, de maneira acima indicada, a qualidade do navio “Porteño”, que, em viagem de Montevidéu para Buenos Aires, fora aprezado por insurrectos.

Nem precisaríamos ir tão longe. Há poucos meses, quando alguns aviadores se apossaram violentamente, em pleno ar, de um aparelho comercial brasileiro, por ocasião da chamada, “Revolta de Aragarças”, e tiveram posteriormente que pousar em Buenos Aires, o Governo argentino imediatamente determinou a devolução da aeronave ao Brasil – conforme solicitamos – embora concedendo asilo aos amotinados.

Procedeu bem a Argentina, nos exatos termos da Convenção de Havana, que igualmente assinou.

E não se venha dizer, em oposição à tese, que Portugal não é signatário daquela convenção, pois, apesar disto, exigimos do Governo de Lisboa, que reconhecesse o asilo diplomático proporcionado ao Gal. Delgado, ainda que o asilo diplomático seja instituto tipicamente latino-americano, desconhecido e repudiado pelos países europeus.

Como participante da Convenção de Havana, demos asilo ao Sr. Humberto Delgado e o trouxemos para cá, onde tão mal se tem comportado. Seria lamentável aplicar em nossas relações com Portugal dois pesos e duas medidas, ou seja, aplicar aquela Convenção quando não interessa ao governo luso, deixando-se de aplicá-la quando ocorre ser ele o beneficiado, como na affair do “Santa Maria”.

Aqui, já estamos em abril de 61, o assunto é Revolução Cubana e O Globo, definitivamente, informava:
Tem o Brasil uma tradição de respeitar sua assinatura nos tratados e convenções. Desde as nossas origens lusitanas sempre consideramos que pacta sunt servanda. Ai de nós se tomássemos o lado oposto. Basta considerar que a demarcação das nossas fronteiras não foi feita pelo ferro, mas por acordos com nossos vizinhos ou por decisões do juízo arbitral. Toleraríamos uma onde revisionista? Inútil pedir resposta. Constituímos um dos mais fortes pilares da comunidade continental, isso impõe que não contribuamos para destroçar um dos derradeiros baluartes do mundo livre.

O que hoje para O Globo é fake news, ontem era tradição que nos vinha das origens lusas. E completava: ai de nós se tomássemos o lado oposto – isso é fantástico. O Globo é o lobo d´O Globo.
O Globo, hoje, tem como fake news, o que, para ele, ontem, era ponto de honra das relações internacionais. Ele peca e nos fazemos propaganda. Machado de Assis tinha razão.

Marco Aurélio é o autor de O Globo e o Brasil – uma visão crítica do jornal que se perdeu a si mesmo no país que jamais se encontrou a si próprio.

Venda pelo e-mail: historia.imprensa@gmail.com

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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