Os mitos permanecem vivos por milhares de anos porque representam situações, dilemas e dramas arquetípicos, inerentes a todas as culturas humanas.
Assim é com o mito da caixa de Pandora.
Os deuses gregos estavam em guerra com os titãs. Prometeu e Epimeteu eram dois irmãos titãs que traíram a classe e aliaram-se aos deuses. Histórias de traição não costumam terminar bem – vide Temer – e a aliança implodiu quando Prometeu roubou o fogo do Olimpo para dá-lo à humanidade. A ousadia irritou profundamente Zeus, o maior dos deuses gregos, que castigou Prometeu amarrando-o em um monte e condenando-o a ter o fígado devorado por uma ave todos os dias – o fígado se regenerava durante a noite. Tinham o pavio curto, esses deuses antigos.
Não satisfeito com a tortura imposta à Prometeu, Zeus criou, em uma das versões do mito, a primeira mulher, Pandora, e enviou-a a Epimeteu, obviamente com péssimas intenções. Prometeu tinha advertido seu irmão de que não deveria aceitar qualquer presente dos deuses. Epimeteu, contudo, não resistiu aos encantos de Pandora e casou-se com ela. Especialistas em presentes de grego, os deuses deram aos noivos a famigerada caixa, que continha apenas todos os males do mundo. Quando Pandora abriu a caixa, os males foram liberados e abateram-se sobre a humanidade.
No Brasil do século XXI depois de Cristo, a caixa de Pandora foi aberta para propiciar a derrubada do governo eleito democraticamente em 2014. A onda fascista é mundial; no Brasil, entretanto, foi impulsionada com esmero pela direita midiática, judicial e partidária, apavorada com a possibilidade de um retorno de Lula em 2018 e um ciclo de 24 anos do PT no poder.
Para impedir esses acontecimentos, ressuscitaram um anticomunismo completamente tosco, absolutamente anacrônico e perigosamente violento. O PT, agremiação bastante moderada e que adotou a política econômica da direita em diversos momentos, foi pintado como o partido da iminente revolução socialista brasileira – o que seria, obviamente, o apocalipse – e o responsável por todos os males passados, presentes e futuros da nação, quiçá da humanidade. O que é pior: muita gente acreditou – ou acredita até hoje.
O resultado é a naturalização do discurso e prática do ódio e da violência.
Bolsonaro tem em torno de assustadores 20% das intenções de voto em todas as pesquisas. Sua grande proposta é distribuir armas e permitir que a polícia atire nos bandidos – obviamente nos que moram no morro, jamais nos que residem em condomínios de luxo – sem consequências legais. O nosso projetinho de Hitler tropical, como definiu Ciro Gomes, adotou como símbolo o gesto de atirar, ensinando-o inclusive para crianças. Milhões de brasileiros que identificam-se com essa postura abertamente fascista sentem-se cada vez mais à vontade para falar e agir violentamente.
Um exemplo recentíssimo: a campanha de Guilherme Boulos informou, ontem, que uma militante foi ameaçada com arma de fogo por um apoiador de Bolsonaro. Ela estava em frente a um comitê da campanha, em São Paulo, quando o motorista de um veículo Chevrolet Preto apontou contra ela uma arma de fogo, “proferindo gritos em defesa do candidato Jair Bolsonaro e contra as candidaturas de Boulos e Sônia”.
A direita tradicional prefere alguém mais confiável do que o desqualificado e imprevisível Bolsonaro no poder – apesar de certamente não descartar a hipótese de apoiá-lo no segundo turno – e, para tanto, busca desesperadamente desidratá-lo. Colocar o monstro de volta na caixa não é, contudo, tão fácil quanto deixá-lo sair.
A Globo tentou na entrevista ao Jornal Nacional; o que conseguiu foi ter toda a sua hipocrisia exposta por Bolsonaro, que tripudiou novamente sobre o apoio da Globo à ditadura. Também na pergunta sobre retirada de direitos trabalhistas a cara de pau global ficou evidente, tendo em vista que a empresa dos Marinho é, há décadas, a grande fiadora dos ataques à classe trabalhadora.
Marina e Alckmin também têm ido para a ofensiva. Marina teve algum sucesso confrontando Bolsonaro, no debate da RedeTV!, sobre a questão das mulheres – o calcanhar de Aquiles do ex-capitão, para ficarmos nos mitos gregos – e da violência. A primeira peça de propaganda televisiva de Alckmin é toda ela uma referência a Bolsonaro, acabando com a frase “Não é na bala que se resolve”.
Ambos possuem, contudo, uma contradição insanável. Seus projetos econômicos são semelhantes demais ao do candidato fascista: liberalismo econômico na veia e salve-se quem puder.
Ciro é outro candidato que partiu para o enfrentamento aberto com Bolsonaro. Ele tem a moral que Marina e Alckmin não têm para fazê-lo, já que seu projeto para a economia é antagônico ao liberalismo e ele esteve sempre no campo antigolpista, ou seja, não adubou o terreno para o brotar da flor fétida do fascismo. Ele vem subindo o tom, como fez ontem:
Eu não quero buscar os votos de todo mundo, não, eu quero buscar os votos dos brasileiros, homens e mulheres, decentes, equilibrados, serenos, que têm solidariedade com os mais pobres. O Brasil tem uma fração da população, que respeito porque é o meu povo e quero ser presidente de todos, mas há uma fração que vive com uma pedra no coração, são egoístas, pouco estão se lixando para os 13 milhões de desempregados, pouco estão se lixando para o problema dos 32 milhões que vivem correndo da repressão nas ruas para vender. Bolsonaro não é ignorante; ele passou na Academia Militar das Agulhas Negras. Bolsonaro é mistificador, perigoso e fascista. É um projetinho de Hitler tropical e muito mal preparado porque Hitler pelo menos era um intelectual razoável.
Apesar do patente despreparo de Bolsonaro, a tarefa de recolocar na caixa de Pandora os males que habitam em todos nós, seres humanos, e agora estão personificados nessa figura sinistra, certamente não será fácil. Essa fulcral tarefa cabe, por justiça e desígnio histórico, ao campo democrático.
A lenda grega nos traz, porém, dois motivos para otimismo.
O primeiro é que estava na caixa, juntamente com as desgraças todas, a esperança. Pandora deixou os males escaparem mas a esperança não. Para Nietzsche, a esperança que ficou na caixa é também um mal, como escreveu em Humano, Demasiado Humano:
Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.
Essa interpretação do filósofo alemão é meio baixo-astral, não? Fiquemos, então, com a interpretação mais óbvia e útil para o momento: não importa o tamanho do estrago se há a esperança para dar-nos força e motivação para seguir em frente.
O segundo motivo para otimismo é o de que a lenda pode ter sido deturpada na mitologia patriarcal de Hesíodo, poeta grego da antiguidade que contou a história de Pandora. Jane Ellen Harrison, britância que morreu em 1928, ao estudar a cerâmica grega concluiu que houve, antes de Hesíodo, outra versão do mito de Pandora. Uma ânfora do século V a.C. mostra Pandora subindo da terra (anodos) na presença de Hefesto, Hermes e Zeus. Essa representação era comum para a deusa da terra (como Gaia ou outra de suas formas).
“Pandora é, no ritual e na mitologia matriarcal, a terra como Kore, mas na mitologia patriarcal de Hesíodo sua grande figura é estranhamente transformada e diminuída”, escreve Jane em seu livro “Prolegomena to the study of Greek Religion” (Fonte: Wikipedia).
Milhares de anos depois dos gregos, os homens em geral continuam com sua visão deturpada da realidade – o que é demonstrado por sua absoluta prevalência sobre as mulheres no eleitorado do “mito” (haja aspas).
Ao que tudo indica, assim como Jane resgatou a grandiosidade de Pandora, as mulheres brasileiras vão nos salvar, pelo voto, da pequenez de Bolsonaro.