Imagem de culpa criada pela mídia na América Latina preocupa Francisco
por Giovanna Costanti — publicado 09/08/2018 00h30, última modificação 08/08/2018 18h24
Para o papa, há tendência das pessoas terem que provar sua inocência contra um sistema que cria a culpa, conta jurista que visitou o pontífice
Há uma tendência na América Latina das pessoas terem que provar sua inocência contra um sistema midiático e jurídico que cria a imagem da culpa. A declaração é do papa Francisco à jurista Carol Proner, que esteve com o pontífice há uma semana. “Ele falou que é muito grave quando, através da mídia, são criadas acusações contra determinadas pessoas e a reputação das pessoas é destruída publicamente. Para ele, isso tem se tornado uma tendência”, conta Carol.
E a constatação do papa não inclui apenas o Brasil. A América Latina tem preocupado Francisco. A perseguição das elites e da mídia a defensores de direitos humanos, o desrespeito ao princípio da presunção de inocência, a intolerância religiosa e a onda conservadora são aspectos que têm chamado a atenção do pontífice. Segundo a jurista, o pontífice criticou a criminalização da política e as ações das mídias hegemônicas nesse processo, afirmando que isso é sistemático na maioria dos países latino americanos.
Por conta disso, Francisco, considerado o mais progressista dos líderes do Vaticano, tem recebido grupos engajados social e politicamente em diversos países latino americanos. A movimentação, entretanto, não é planejada. Os encontros ocorrem organicamente e a pedido dos próprios grupos, como os quatro representantes da Frente Brasil Popular, que estiveram no Vaticano apenas um dia depois da visita que o ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim, ao papa.
“O Papa considera que os retrocessos provocados pelo avanço das elites não são um problema só do Brasil. Para ele, a maior parte da América Latina vem enfrentando essa onda”, contou Carol Proner, que também faz parte da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia.
Outras críticas também tecidas por Francisco se voltaram para membros de religiões que são intolerantes a outros cultos e que ostentam e acumulam bens, se afastando dos pobres e do cristianismo.
Atenção à presunção de inocência
O Papa Francisco citou recentemente, em um artigo, os “golpes brancos” sofridos na América Latina nos últimos tempos. Ou seja, golpes sustentados pela legalidade. Segundo Carol, o grupo levou ao papa a ideia de que, frente a uma crise no Executivo e no Legislativo, o Judiciário tem operado com uma autoridade própria e com legitimidade legal para seus atos de autoritarismo.
O pontífice vem acompanhando com curiosidade, por exemplo, a situação do ex-presidente Lula, preso em Curitiba desde abril. Carol relata que o papa disse estar atento a esse fenômeno, tanto no caso brasileiro, quanto nos casos latino-americanos. “O papa falou que reconhece que há uma inversão inaceitável em ter que provar que se é inocente e não que aquele que acusa tenha que provar a culpa”, afirmou.
O Papa refere-se, nesse sentido, ao princípio da presunção de inocência – base democrática que afirma que alguém só é culpado quando se comprova a sua culpa e é inocente até que se prove o contrário. Esse é o argumento usado por defensores da liberdade do ex-presidente petista.
“No caso do Brasil, o papa sabe que tem que esperar a sentença penal condenatória julgada para que alguém possa ser considerado culpado, tem que esgotar todos os recursos possíveis para a pessoa se defender. Ele disse que é muito grave a violação dos direitos e princípios da presunção de inocência e que isso afeta a democracia”, afirma Carol.
Disse ainda que nunca esteve com Lula, mas que já se encontrou com a Dilma em três ocasiões. Referiu-se a ela como grande mulher e líder, pessoa honesta e amiga por quem tem grande admiração. O grupo presenteou o papa com o livro “Comentários de uma sentença anunciada: o processo Lula”, pelo qual ele agradeceu e afirmou que iria para o Laboratório do Vaticano.
“O papa, muito carinhoso, afirmou a preocupação com o aumento da violência contra aqueles que se pronunciam em defesa de direitos humanos que estão sendo marginalizados, perseguidos e atacados”, acrescenta Carol.
De fato, a onda observada pelo papa tem sido monitorada por organizações que defendem os direitos humanos. No ano passado, a Anistia Internacional divulgou que, em 2017, cerca de 212 defensores dos direitos humanos foram assassinados na América Latina. A violência contra os defensores se intensificou com a crise política e econômica na Venezuela, Brasil, Guatemala, Paraguai, Honduras e Argentina.
Além de Carol, o grupo contou com Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de direitos humanos e membro da Comissão Nacional da Verdade, Cibele Kuss, pastora luterana representante do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e Marinete Silva, advogada e mãe de Marielle Franco, vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, assassinada no dia 14 de março deste ano.
Quando Marielle Franco foi executada, o Papa entrou em contato com a família da ex-vereadora. Agora, no encontro, ele reforçou a preocupação com figuras como a da vereadora que lutam em defesa dos direitos humanos. Foi sua mãe que apresentou ao papa um documento sobre as violências e ameaças sofridas por defensores das minorias. Ela o presenteou com uma camiseta com o rosto da filha.
“Com toda a simbologia de uma mãe que perde a filha, ela mencionou o vínculo da Marielle com a Maré, chegando jovem ao poder, saindo da luta comunitária e lutando dentro da Alerj, pelas pautas das minorias, da negritude, e das periferias. Marinete explicou como Marielle passou a ocupar um lugar de vulnerabilidade, principalmente por conta de seu posicionamento contra a intervenção federal no Rio de Janeiro”, disse Carol.