Publicado no Jornal do Brasil
Um telegrama de caráter “confidencial” endereçado ao Departamento de Estado Americano, em janeiro de 1975, e assinado pelo embaixador da época, John Hugh Crimmins (que serviu em Brasília de agosto de 1973 a fevereiro de 1978), lançava um alerta, com base em matérias publicadas pela Revista Manchete e pelo jornal Folha de S. Paulo: “há rumores de que o ex-presidente João Goulart se prepara para retornar ao Brasil.”
O comunicado oficial contextualizava as notícias veiculadas na imprensa, juntando informações sobre o clima de perseguição política aos exilados brasileiros, ao mesmo tempo em que alertava para o peso político da figura de Jango, definida como um “anátema” – uma espécie de maldição –, para os militares que o destituíram do poder.
Tanto a Manchete quanto a Folha, arroladas no telegrama do embaixador americano, se posicionavam a favor da ditadura, embora o dono da Manchete, Adolpho Bloch, fosse amigo de uma das suas vítimas, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck, também exilado, àquela altura. Esses veículos, porém, gozavam de credibilidade junto à opinião pública.
O telegrama, distribuído também aos embaixadores americanos da Argentina, do Uruguai e para os consulados do Rio de Janeiro e de São Paulo, dizia: “Nos últimos dois anos tem havido rumores recorrentes em círculos de imprensa de que o ex-presidente Jango Goulart estaria cansado de viver exilado na Argentina e no Uruguai e gostaria de voltar ao Brasil.” E acrescentava o seguinte comentário: “Ele é a encarnação da influência esquerdista e do meio político e econômico terminado pela Revolução de 1964.”
O embaixador ainda destacou: “No final de março, o deputado federal Amaury Müller (MDB) foi destituído como deputado federal e teve seus direitos políticos suspensos (…), pelo menos em parte, por pedir o retorno de Leonel Brizola.” Mas sem deixar de pontuar que “o combustível por trás desse último ressurgimento dos rumores é a situação insegura dos exilados políticos na Argentina e no Uruguai. (…). O senador do MDB, Paulo Brossard, pediu o retorno dos brasileiros no exterior e disse que Goulart está agora no Uruguai, mas teme por sua vida.”
O medo de que algo acontecesse a ele e à sua família era real para Jango. E tanto era assim que optou por mandar para Londres os filhos João Vicente e Denize Goulart. Denize, a mais nova, talvez por estar distante, não se lembra de conversas neste sentido. “Ele estava muito pressionado e comentava que estava sendo vigiado.”
Denize, que é também historiadora e prestes a inaugurar o “Espaço Jango”, um centro cultural em memória do pai, atribui o telegrama e os boatos ao medo do poder que Jango poderia representar naquele momento tenso. Geisel estava assombrado pela eleição, em 1974, de senadores da oposição, vitoriosos em quase todos os estados. “Não podemos esquecer que às vésperas do golpe meu pai tinha 72% de apoio popular e grandes chances de vitória para o seu candidato nas eleições de 1965, que acabaram não acontecendo.”
Historiador, autor do livro “João Goulart, uma biografia” e professor titular aposentado pela UFF, Jorge Ferreira aponta que o momento exigia de Jango algum movimento, pois o panorama das ditaduras era pesado e seus comandos já iniciavam conversações para o que veio a ser conhecido como a “Operação Condor”, um acordo de cooperação regional para a prisão e eliminação dos “inimigos” desses sistemas.
“O embaixador não está inventando nada. Acho que ele repete o que saiu nos jornais, mas eu separei algumas partes aqui do meu livro, em que cito, na página 648, uma festa de aniversário dele, em primeiro de março de 1975 – que coincide com o ano do telegrama –, em que ele é vigiado por agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações) e da repressão uruguaia. O já falecido historiador Muniz Bandeira costumava dizer que surpresa seria se o SNI não o vigiasse”.
Ferreira recorda que em julho de 1975, Jango redigiu algumas notas dizendo que era chegada a hora de reorganizar a vida política do país. “Aqui ele já está se apresentando como a liderança disposta a exercer este papel, de fazer essa transição, mas isso não dá em nada. Meses depois vem a Operação Condor. Ele é avisado por emissários de Miguel Arraes e começa a presenciar, a partir disso, mortes de amigos e políticos à sua volta. Isso o deixa inquieto.”
Na página 660 da biografia do ex-presidente, o autor destaca os boatos, em 10 de setembro de 1976, de que Goulart estaria preparando sua volta ao Brasil. No mesmo dia, Sylvio Frota (1910-1996), ministro do Exército de Geisel, envia telegrama ao Departamento Geral de Investigações Especiais da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. O telegrama, com carimbos de “Confidencial” e “Reservado”, determinava as seguintes providências: 1) João Goulart deverá ser imediatamente preso e conduzido ao quartel da PM, onde ficará em rigorosa incomunicabilidade, à disposição da Polícia Federal. 2) Nenhuma medida policial deverá ser tomada contra os seus familiares, que permanecerão em liberdade. 3) Fica sem efeito a prescrição restritiva referente ao transporte das Aerolíneas Argentinas, ou qualquer que seja o meio de transporte nacional ou estrangeiro. A prisão acima referida deverá ser realizada e as medidas consequentes aplicadas. Acusar recebimento.”
Ferreira cita o telegrama de Frota para reforçar que havia uma expectativa, por parte dos militares, de que Goulart pretendia voltar, mas havia, também, a determinação de que ele fosse imediatamente preso. Daí o relato do embaixador americano, sobretudo num cenário tenso, em que está em curso a eleição de Jimmy Carter, que vence, pelo Partido Democrata, com um discurso de defesa dos Direitos Humanos. O documento do embaixador, inclusive, destaca que há brasileiros correndo risco de vida no Uruguai e na Argentina. No fim, o que ele diz é que há perigo na volta de Goulart, que foi o “causador” do golpe, por sua influência esquerdista. E que, em sua opinião, os militares não vão permitir sua volta.
Sobre as suspeitas em torno da morte de João Goulart, Ferreira tende para a morte natural. Em 2013, houve a exumação do corpo de Jango, mas não houve avanço na análise do caso. “Depois de 36 anos, isso pouco acrescentou. Tanto assim que os laudos foram inconclusivos. Jango era cardiopata, não fazia dieta, tomava uma série de remédios e não abria mão do uísque. Sem contar que se a CIA quisesse eliminar alguém, o alvo seria Brizola, este sim, mais radical e, no entanto, Carter o salvou e o recebeu nos EUA”, conclui.
Filho espera por mais documentos
João Vicente Goulart, filho mais velho do ex-presidente, e autor do livro “Jango e eu: memórias de um exílio sem volta” espera conseguir respostas com o acesso a mais documentos americanos. A cada telegrama que vem à tona, sua esperança se renova. “A importância de se divulgar documentos como este é que reforça o pedido feito há anos, pela família, ao Ministério Público, para que solicitem documentos americanos tarjados, ainda secretos, e que ficamos aguardando para esclarecermos de vez as circunstâncias da morte do meu pai.”
Ele conta que há dois anos o Ministério Público e a Secretaria do Ministério da Justiça entregaram ao Itamaraty o pedido de oitiva dos agentes americanos que seguiam os passos de Jango, no Uruguai e na Argentina, e a documentação a respeito. “Até hoje sequer deram importância. Enquanto o MP do Brasil é tão exigente para alguns assuntos, sequer se importa se os EUA ignoram ou não os pedidos relacionados ao seu ex-presidente”.
Ele lembra que o pai havia feito contato com uns amigos e ficou sabendo da existência de um inquérito em Cuiabá, contra ele, em que os militares o convocavam através de um edital. Diziam que o meu pai estava em lugar incerto e não sabido. Ele então convocou o seu advogado, o Mirza (Wilson Mirza), e o Mirza considerou que ele poderia voltar. Disse que os militares é que estavam desrespeitando o exílio dele ao publicarem esse edital, como se o meu pai estivesse em local não sabido”, relata.
O edital o convocava para uma audiência e dava a Jango 60 dias para se apresentar. “Ele havia sido cassado por 10 anos. Já estávamos em 75, portanto, esse tempo já tinha transcorrido. Teoricamente ele não estava mais com seus direitos cassados.”
Goulart sabia que havia no país dois movimentos militares. Um que já falava em abertura, e um que queria fechar ainda mais o regime, (a tentativa de golpe de Frota). Ele entendeu que não podia voltar. Saudoso, o ex-presidente apenas adiou a volta para o fim do ano de 1976. “O plano era ele ir passar o Natal em Londres, com a gente, depois iria no Vaticano, visitar o papa, e de lá para uma conversa com o Ted Kennedy, nos EUA, e desembarcaria no Rio, mas morreu antes”.