A última esperança: coletivo de nicaraguenses denuncia governo
Por DENIS KUCK (denis.kuck@jb.com.br) e JOHANNS ELLER (johanns.eller@jb.com.br)
Em 19 de julho de 1979, a junta formada pelos rebeldes que depuseram a ditadura de Anastasio Somoza assumiu o poder na Nicarágua, tendo à frente o guerrilheiro Daniel Ortega. Considerada a última grande revolta popular da América Latina, a Revolução Sandinista, que influenciou a esquerda do continente e líderes como Luiz Inácio Lula da Silva – foi em Manágua, em 1980, que ele conheceu Fidel Castro – chega ao seu 39º aniversário em profunda crise e sem ter o que comemorar. O Coletivo Nicaraguense, que reúne cidadãos do país centro-americano que vivem no Brasil, acaba de lançar um manifesto condenando o governo do agora presidente Daniel Ortega, denunciando graves violações dos direitos humanos, como repressão a movimentos sociais, execuções, desaparecimentos, prisões arbitrárias e tortura.
O cientista político Humberto Meza faz parte de coletivo de nicaraguenses no Brasil
Para o grupo, composto por 25 pessoas, a esquerda latino-americana e mundial precisa estar alerta para o que está acontecendo na Nicarágua: segundo o coletivo, os ideais sandinistas e revolucionários de Ortega se perderam faz tempo, e o governo transformou-se numa ditadura violenta e conservadora – foi sob o mandato do ex-guerrilheiro, por exemplo, que o país criminalizou o aborto, que agora é proibido até em casos de estupro. O grupo elogia a atitude do ex-presidente do Uruguai José Mujica, que ontem se uniu às críticas às autoridades nicaraguenses, afirmando que “aqueles que ontem foram revolucionários perderam o sentido da vida”.
“A revolução Sandinista, que derrotou a ditadura familiar dos Somoza na Nicarágua em julho de 1979, cumprirá no próximo ano quadro décadas. Foi o último sonho revolucionário perdido, a última esperança que se foi pelo sumidouro da história”, afirma o manifesto do coletivo. Uma junta de coalizão comandou o país de 1979 a 1984, quando houve eleições vencidas por Ortega. Ele ficou no poder até 1990, retornando à presidência em 2007.
“Muito do que acontece hoje pode ser explicado pela deterioração que houve entre os anos 90 e 2000, quando a revolução acabou. Quando a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) perde as eleições em 1990, houve um debate interno muito desgastante. Após ser uma guerrilha e depois Estado, a frente precisa aprender a ser um partido, em meio a um governo de direita e neoliberal. Isso foi uma crise profunda que fez o partido rachar”, diz o cientista político nicaraguense Humberto Meza.
A onda de protestos contra o governo de Ortega completou três meses ontem. A primeira grande manifestação ocorreu em 18 de abril. Desde então, o governo é acusado de reprimir violentamente os ativistas. O saldo de mortos, segundo organizações de direitos humanos, é de mais de 300 pessoas. O estopim foi uma reforma previdenciária, que depois foi revogada. Mesmo assim, parte da população continuou nas ruas. A insatisfação era bem mais enraizada e as reivindicações profundas, como a renúncia do presidente.
“Como há muito tempo não se falava da Nicarágua, parecia que estava tudo bem, mas não estava. De repente as notícias explodem. O dinheiro do petróleo da Venezuela ajudou muito a tornar o governo sustentável, houve assistência social. Mas o partido ficava cada vez mais fechado e clientelista. Porém, como a economia melhorava, as pessoas seguiam sua vida”, explica a produtora de cinema Isabel Martinez.
De acordo com o coletivo, a família de Ortega eliminou a oposição e controla o parlamento, pratica nepotismo, domina a maioria dos meios de comunicação e enriqueceu de maneira suspeita nos últimos anos.
Isabel aponta alguns eventos indicando que um barril de pólvora estava prestes a explodir, como o grande incêndio na reserva biológica Indio Maiz, que para muitos foi fruto da negligência do governo, e a negociação com os chineses para se construir um canal interoceânico, nos moldes do Canal do Panamá, o que desalojaria muitos camponeses. A isso se somou a reforma previdenciária, que previa aumento nas contribuições de trabalhadores e empresários. “Os jovens, que estavam apáticos, passam a ter consciência do que estava acontecendo. Com isso, a nova geração, netos dos revolucionários, começa a protestar e a demonstrar descontentamento”, diz a produtora de cinema.
Grupo denuncia tortura e execuções
A vice-presidente da Nicarágua, Rosario Murillo, anunciou ontem a retomada do controle da cidade rebelde de Masaya, localizada a 40 minutos da capital, Manágua. Horas mais tarde, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou por 21 votos a três uma resolução que cobra o apoio do governo nicaraguense à antecipação das eleições presidenciais de 2021 e o fortalecimento das instituições democráticas. O documento foi elaborado por vários países, incluindo os Estados Unidos.
A operação foi conduzida por forças governistas e paramilitares. Cerca de 200 pessoas fugiram da cidade temendo pelas suas vidas, segundo a Associação Nicaraguense pró-Direitos Humanos (ANDH). Pelo menos duas pessoas morreram, segundo o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh), mas o número total de vítimas é incerto. A cidade segue sob intensa vigilância de grupos paramilitares que apoiam o presidente Daniel Ortega.
Para o cientista político nicaraguense Humberto Meza, a violação de direitos humanos na Nicarágua atinge níveis assombrosos. “A situação é grave. Em Masaya, depois dos confrontos, policiais e militares entram na casa das pessoas, e levam os homens jovens sem qualquer acusação”, diz. “Depois, eles aparecem mortos ou vão presos. Jovens que voltam da prisão relatam torturas. Há também muitos desaparecidos. Lideranças que participavam dos diálogos com o governo também têm sido perseguidas e assediadas”, denuncia.
Os jovens são alvos do governo por desempenharem um forte papel nas mobilizações contra Ortega desde o início dos protestos, em abril. Estudantes, camponeses e outros grupos estão nas ruas e cobram a renúncia do presidente e de Murillo. Segundo a produtora de cinema nicaraguense Isabel Martinez, a geração que não viveu a revolução sandinista é protagonista no processo atual: “Hoje, os jovens são uma força expressiva e estão dando seus corpos e suas vidas movidos por um processo orgânico”.
A produtora discorda que os jovens sejam usados como massa de manobra da oposição ou dos EUA, como sugerem defensores de Ortega. “Quando você conversa com esses estudantes e essas lideranças, você percebe que eles estão totalmente politizados e interessados pelo país. Entrincheirados, começaram a estudar para entender o que está acontecendo. É um processo muito bonito. Não é algo partidário, mas politizado”, pondera Martínez. “Os jovens trazem novas pautas que não foram reivindicadas na revolução, como as bandeiras do feminismo e da ecologia”, complementa a produtora.
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