O Brasil está sob um golpe de Estado.
O campo progressista está numa situação vulnerável, com seu maior líder preso. Não estou seguro se a confusão de ontem, o solta-e-prende de Lula, teve como resultado uma “vitória narrativa” para Lula ou o PT, como tenho lido por aí. Ademais, essas “vitórias narrativas” que só resultam em derrotas na prática são muito cansativas e ambíguas.
A sociedade brasileira está polarizada. Metade da população acha que a prisão de Lula é justa. A outra metade, injusta. Eu acho que a esquerda deve atentar para isso com humildade e estratégia, ao invés de apregoar que o “país inteiro” quer Lula livre. Infelizmente, isso não é verdade. Há uma metade que não quer Lula livre, e essa outra metade, lamentavelmente, é mais forte. Tanto que Lula está preso.
Não se trata de “derrotismo”. Acredito que podemos e vamos vencer as forças autoritárias que tem avançado dia a dia. A “narrativa” também não está boa para elas. Mas sem estratégia não há vitória.
Sergio Moro errou feio ontem. Ao interferir diretamente contra a liberdade de Lula, rompendo suas férias e se insurgindo contra decisão de instância superior, ele quebrou a hierarquia e cometeu uma grave infração.
Não é a primeira vez que Moro comete crimes. Se você examinar a Lava Jato, verá que a operação acumula uma quantidade incomensurável de violações aos mais básicos direitos constitucionais.
Repito: o Brasil está sob um golpe de Estado. É preciso entender isso e traçar estratégias inteligentes para superá-lo.
O nervosismo faz com que alguns falem em “derrubar a bastilha”, outros em “tomar as ruas”, e aqueles em “insurreição popular”. As expressões são bonitas, mas temos de ser realistas: não vai acontecer; não no momento.
A luz no fim do túnel está na política, não no direito.
Acreditar em soluções judiciais, a essa altura do campeonato, é fazer o jogo do conservadorismo. É jogar no campo deles.
Também me parece que já passou o tempo das ilusões republicanas ou democráticas. Acreditar que o judiciário e a imprensa se tornarão democráticos, de uma hora para outra, não é mais prudente. As soluções não passam mais apenas pelas vias democráticas, mas por alianças de força, que incluam setores importantes da esquerda, mas também do exército, da indústria e do próprio judiciário. Sim, é possível, desde que as costuras sejam feitas com inteligência.
Temos que fazer política, que significa ampliar o arco de alianças, conversar com setores liberais e até mesmo conservadores, que também não estão satisfeitos com o atual estado de coisas, para fazermos uma transição segura de volta à democracia.
Gostaria muito de ver Sergio Moro exonerado, e punido exemplarmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Se não tivermos juízo, porém, o que vai acontecer é a nomeação de Sergio Moro para o Supremo Tribunal Federal. E aí sim que Lula nunca vai sair da prisão. Jair Bolsonaro já disse que pretende ampliar o número de ministros do STF para 21, para botar lá mais “dez juízes do nível de Sergio Moro”.
Sergio Moro é um Bolsonaro de toga.
Quanto a situação de Lula, a solução mais estratégica, a meu ver, visando a sua liberdade, bem estar e integridade física, seria despolitizar o seu processo, com a indicação, pelo PT, de uma candidatura própria, de Fernando Haddad, por exemplo.
Nem falo mais de apoio a Ciro Gomes por aqui, para evitar desgaste com os setores mais sectários do PT, que não aceitam nenhuma solução que não venha do próprio partido, e ainda agridem quem “ousa” fazer tal proposta indecorosa. Seria mais apropriado, a meu ver, apoiar um candidato da esquerda não-petista, para fugir da polarização e driblar a pauta da Lava Jato. Esse candidato é Ciro Gomes, conforme tenho defendido neste espaço, da maneira mais honesta e transparente possível (e pagando um alto preço por essa honestidade e transparência).
Mas, por amor ao debate, fiquemos por enquanto com Fernando Haddad, do PT.
Um candidato do PT, livre, teria condições de ajudar a todo o campo democrático a fazer o embate contra os conservadores. Suas opiniões seriam ouvidas e assim o partido contribuiria para a educação política do povo. Haddad candidato poderia, desde já, costurar acordos políticos com Ciro, Manuela, Boulos, etc, com outros setores da sociedade, visando desde já sinalizar e debater saídas de médio e longo prazo para o país, além de orientar a militância.
O imbróglio de ontem serviu, mais uma vez, para revelar a disposição histérica do judiciário contra Lula.
Manifestações agressivas contra o judiciário, porém, não melhoram esse clima. Não será possível “derrotar o judiciário” dessa maneira. Teremos que conviver com esse mesmo judiciário, com esses mesmos juízes, por muito tempo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), único órgão de apelação contra magistrados, tornou-se, há tempos, num instrumento de defesa da corporação. Então é ingenuidade esperar algo de bom dele, por enquanto.
O que fazer?
Na minha humilde opinião, temos que pensar estrategicamente. A esquerda, por exemplo, não pode se isolar, o que seria suicídio. Tem de ganhar aliados, fazendo movimentos para conquistar o centro político e os setores liberais mais esclarecidos.
A luta jurídica, por sua vez, precisa ser qualificada. Não derrotaremos o conservadorismo judicial com xingamentos. É uma luta difícil, longa, mas que podemos vencer, desde que não esqueçamos que a política é a arte do convencimento, da persuasão. Se acharmos que os juízes são todos “monstros fascistas”, e que nunca serão convencidos, então é melhor abandonar a política e aderir à luta armada. Quem acredita na política, precisa também acreditar que é possível atrair os juízes de volta ao campo democrático.
A esquerda tem de fazer movimentos para ampliar sua base, o que significa conquistar o respeito de quem pensa diferente, e isso implica em usar uma linguagem moderada e uma argumentação mais sólida. Não me parece que xingar o ministro Edson Fachin de “verme”, irá adiantar alguma coisa. E aqui faço uma autocrítica, porque ninguém xingou mais juiz e procurador do que eu.
Não creio que a “narrativa” do PT seja tão vencedora assim. Ela tem muitos furos. Não os tivesse, não teria havido o golpe, Lula não teria sido preso, e não estaríamos perdendo quase todas as batalhas políticas importantes. O principal furo da narrativa petista é o fato do partido ter governado o país por mais de treze anos e, apesar dos inúmeros alertas de seus amigos sobre o risco judicial, mesmo assim ter insistido numa orientação política punitivista e reacionária, aprovando leis de exceção (ficha limpa, orcrim, delação premiada, antiterrorismo) e indicado ministros que iriam, ambos, as leis e os ministros, se voltar contra a própria esquerda e contra todo o campo democrático.
A análise da conjuntura precisa ser objetiva. Não adianta brandir pesquisas de intenção de voto, e se ater exclusivamente à primeira página dessas mesmas pesquisas, omitindo o problema da rejeição, gravíssimo no Sudeste, no Sul, e nas classes médias. Tampouco adianta agredir os analistas que apontam esses problemas.
A esquerda precisa fazer a luta política fora dos tribunais, e isso significa participar dos debates nacionais em que estejam presentes as diferentes forças sociais do país.
É ilusão acreditar demais nas “ruas”. A luta política, em qualquer país, depende em grande parte dos apoios institucionais: forças armadas, judiciário, executivo, ministério público, polícias, empresariado, sindicatos, imprensa.
As ruas também (ou talvez principalmente) são da classe média, que mora perto das grandes avenidas, que tem dinheiro para pagar sua atividade política pessoal, e autoconfiança para enfrentar as autoridades. E a classe média não pode mais ser demonizada pela esquerda, chamada de “fascista” ou “coxinha”. Por que isso não é verdade. A classe média, obviamente, não é homogênea. Suas franjas radicais são minoria. Por isso mesmo, ela precisa ser reconquistada pelo campo democrático. Isso também é luta de classes. Nenhuma revolução seria possível, na França, na Rússia, em Cuba ou na China, sem um apoio relevante de suas classes médias.
Para isso, o PT tinha que ter investido em comunicação. E tem de investir, agora, nesse momento, através de seus governos estaduais, prefeituras e gabinetes parlamentares. Comunicação não é propaganda. Comunicação é falar com pessoas diferentes. É ouvir. Por exemplo, o governo de Minas criou um excelente programa de entrevistas, para competir com o Roda Viva. É o Voz Ativa. Mas não está divulgando. Não está fazendo o programa sair do gueto.
Não adianta fazer apenas programas de “esquerda”. Comunicação requer enfrentar polêmicas, permitir a crítica e autocrítica, para que se possa construir audiência. É neste sentido que elogiei, embora com ironia, a entrevista do Roda Viva com Manuela D’Ávila. Houve um pouco de exagero por parte dos entrevistadores, mas também exagero nas críticas à esquerda, visto que a maior beneficiada pelo formato do programa foi a própria Manuela. O conceito de trazer entrevistadores que pensam de maneira contrária ao entrevistado é interessante. Produz um confronto dialético que dá audiência, e que dá mais claridade às ideias do entrevistado. A esquerda não pode achar que vai conseguir audiência fazendo programas em que entrevistadores e entrevistados pensam da mesma maneira. Esse foi um dos muitos erros da TV Brasil, por exemplo, cujos programas davam traço.
A conquista da classe média é fundamental. Para isso, a esquerda tem de recuperar a bandeira do combate à corrupção. Foi assim que Lopez Obrador ganhou eleições no México, com a bandeira da ética e com apoio da classe média. Obrador, é bom lembrar, fez aliança com o Encuentro Social, um partido conservador.
Quando eu falo em classe média, não falo de pessoas ricas, proprietários dos meios de produção. Falo de 90% da classe média, composta de trabalhadores assalariados, operários especializados, pequenos comerciantes, gerentes, profissionais liberais, funcionários públicos, professores, que dominam, em qualquer país, os embates da opinião pública.
Permitir que a direita erga a bandeira da ética, que um Jair Bolsonaro seja o campeão em defesa do judiciário, é uma temeridade.
Temos que tomar muito cuidado. O Brasil precisa de um judiciário, um ministério público e uma polícia federal fortes, autônomos e combativos, para que haja um enfrentamento efetivo da corrupção. Ao mesmo tempo, temos de pensar em como “desnazificar” essas instituições, hoje tomadas de autoritarismo e ódio político (ao PT sobretudo).
Não podemos cometer o mesmo erro da Lava Jato, que a pretexto de eliminar os carrapatos, atirou na cabeça da vaca. Precisamos eliminar as maçãs podres dos aparelhos estatais de repressão, mas precisamos que sejam fortes, democráticos, transparentes, responsáveis, populares.
Para que o judiciário se normalize, é preciso restaurar a autoridade moral da política. Com todo respeito ao Lula, que é a liderança popular mais importante do país, e que eu tanto admiro e tanto defendi ao longo de todos esses anos, ele não é mais a figura com capacidade de reestabelecer o necessário pacto entre as instituições e entre as classes.
Lula precisa ser libertado, porque é inocente, para poder curtir a vida com seus familiares, e ajudar o Brasil com seu bom senso, sua moderação, seu elevado senso de responsabilidade política.
Mas achar que Lula tem o poder de “salvar o Brasil”, todavia, como tem apregoado dirigentes do partido, é evidentemente um delírio. Se tivesse esse poder, teria evitado o golpe contra Dilma, teria conseguido se tornar ministro e não teria sido preso. O Brasil é que tem de salvar Lula, e não Lula que tem de salvar o Brasil.
O ex-presidente não deve mais nada ao país. Ele já fez muita coisa. Agora são os brasileiros é que devem fazer por Lula. E isso requer inteligência, estratégia e abertura política.
O nosso trabalho de formiguinha, nos blogs, conseguiu ampliar a massa crítica que NÃO apoia os arbítrios judiciais da Lava Jato. Constituiu-se um núcleo duro de juristas, intelectuais, professores, que entendem que houve um golpe em 2016, e que a Lava Jato e a prisão de Lula integra esse roteiro.
Em se tratando de eleição, porém, a estratégia precisa ser diferente. Se formos pautados pela Lava Jato, como quer a direita, nosso trabalho será muito mais complicado. O que aconteceu neste domingo é emblemático. Os petistas acusam as instituições de não cumprir a ordem do desembargador de plantão, Rogério Favreto, que havia determinado a liberdade de Lula. Eles tem razão e eu concordo. Mas como explicar ao povo que houve qualquer descumprimento judicial se o presidente do tribunal de recursos de Porto Alegre, deu a palavra final? Se o PT aderir ao refrão que “decisão judicial não se discute”, para se referir ao HC de Lula, terá de repetir a mesma coisa quando as decisões não forem favoráveis ao ex-presidente, como foi a decisão final de ontem. Digo isso ao nível da batalha narrativa, e não olhando as nuances jurídicas, porque à política importa apenas a narrativa.
Esses são apenas alguns dos “furos” narrativos a que me refiro. Não ver isso, ou pior, acusar os que os apontam (como já prevejo que vão fazer), não me parece digno de um partido que, por tantos anos, dirigiu o país com inteligência, moderação e bom senso, e ao qual o destino reserva, pela frente, longos anos de contribuição ao país.