Por Waldeck Carneiro
Em breve, adentraremos o último semestre do pior quadriênio de governo do Estado do Rio de Janeiro, desde o pacto pela redemocratização simbolizado pela Constituição de 1988. É bem verdade que esse pacto foi rompido com o golpe de Estado de 2016, cujos efeitos na desnacionalização da economia brasileira, no desfazimento do tecido institucional no Brasil e no aumento da exclusão e da violência se fazem sentir, em grandes proporções, em terras fluminenses. Contudo, não se pode atribuir apenas ao degradado quadro nacional a situação do Rio de Janeiro, que se agravou, em curto período (2015 a 2018), passando pelos seguintes estágios: difícil, crítica, dramática e caótica. Atribuir essa acelerada degradação apenas a fatores externos ao Palácio Guanabara seria desconhecer a responsabilidade do mesmo grupo político, liderado pelo MDB, que comanda o governo do Estado do Rio de Janeiro, desde 2007.
Nos governos progressistas de Lula e Dilma, especialmente no período de 2007 a 2014, o RJ recebeu investimentos federais de grande monta, saltando de uma posição remota para o topo do ranking de estados da Federação aquinhoados com recursos federais. Aliás, esse foi o período em que o RJ recebeu o essencial dos investimentos para as grandes agendas esportivas: Jogos Panamericanos e Parapanamericanos (2007), Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio (2016). Paralelamente, aumentaram significativamente os recursos decorrentes de royalties e participações especiais, com o aumento da exploração e da produção de petróleo, em particular com o advento do pré-sal. Tempos de suposta bonança, pessimamente aproveitados, porém, pelo governo estadual. Por exemplo, nesse período de expressiva liquidez na economia fluminense, o RJ não estruturou um projeto estratégico de desenvolvimento econômico e social, que apostasse, de forma planejada e sustentável, na diversificação dos nossos arranjos econômicos. À exceção do setor metal-mecânico, com forte concentração no sul fluminense, e do polo cervejeiro, não houve esforços significativos para enfrentar a “estrutura oca” que ainda caracteriza a indústria fluminense, como ressaltam as análises dos economistas Mauro Osório (UFRJ) e Bruno Sobral (UERJ).
Mesmo assim, a expansão daqueles setores se baseou, em boa medida, numa política irresponsável de isenções tributárias, posto que desprovida de critério, transparência e metodologia de acompanhamento das contrapartidas econômicas e sociais decorrentes do tratamento tributário diferenciado. Apresso-me a dizer que a isenção tributária não é um mal em si nem deve ser “criminalizada”. Quando praticada de forma planejada e responsável, pode efetivamente ser indutora de desenvolvimento numa determinada região ou área da economia. Contudo, marcadas pelo compadrio com financiadores de campanha e transformadas em verdadeiro favor fiscal, as isenções tributárias concedidas no período de 2007 a 2014 se configuraram como “farra fiscal”, ao arrepio do interesse do povo fluminense. Não satisfeito, o governo Pezão tem inovado, ao criar nova unidade monetária no RJ, a saber, a compensação tributária. Por esse mecanismo, o governo do RJ se apressa a pagar suas dívidas com grandes empresas que fornecem ou prestam serviços ao Estado do RJ, por meio do abatimento de tributos estaduais (notadamente o ICMS) não recolhidos por essas empresas (débitos tributários vencidos) ou, pasmem, de tributos estaduais que por elas seriam recolhidos no futuro (débitos tributários vincendos). Sem sequer ter-se o zelo de negociar com essas empresas, credoras do RJ, descontos nas dívidas a serem pagas, como se faz, por exemplo, nos chamados leilões reversos, em que o Poder Público prioriza o pagamento a credores que lhe dão os maiores descontos.
Também fez parte das decisões equivocadas do governo do RJ, no período em questão, as operações de antecipação de receita junto a agências financeiras internacionais, inclusive os “fundos abutres”, oferecendo-se como caução recursos futuros oriundos da economia do petróleo. Ora, tais recursos são o principal fator de capitalização da previdência estadual, o que já é discutível, pois não se deve financiar despesas fixas com receitas instáveis. Ademais, o petróleo, por ser uma “commodity”, tem sua precificação fixada de acordo com a dinâmica do mercado internacional. Logo, trata-se de variável que não está sob o controle do governo do RJ, que se viu em péssimos lençóis, quando o preço do petróleo desabou, no final de 2014, fenômeno que já classifiquei, em outra publicação, como econômico e geopolítico, no contexto da atual crise de acumulação do modo de produção capitalista.
Sem fluxo de caixa, endividado, inadimplente no pagamento aos servidores e desmoralizado por denúncias, muitas já confirmadas, de robustos esquemas de corrupção na máquina pública estadual, cujo símbolo são as múltiplas condenações impostas pela Justiça ao ex-governador Sérgio Cabral, principal líder do grupo político que governa o RJ desde 2007, o atual governo Pezão decidiu “solucionar” os problemas do RJ, aderindo a um regime de recuperação fiscal imposto pelo governo federal ilegítimo, que também se encontra em sérias dificuldades econômicas. Parece até uma “solução final” de novo tipo, em que o “roto” governo do RJ adere a um regime recessivo fixado pelo “rasgado” governo federal. Como primeira consequência da adesão a esse regime, o governo estadual, que já tinha inventado, por decreto (depois consagrado em lei), o instituto da “calamidade na administração financeira”, sem previsão constitucional, se submeteu a uma intervenção federal na economia do Estado, hoje governada por um triunvirato (Conselho de Supervisão) formado com base na Lei Complementar 159/17, que disciplina a adesão dos estados ao regime de recuperação fiscal. Em outras palavras, o RJ está, a rigor, sob duas intervenções: na gestão das finanças públicas e na gestão da segurança pública. Sobre essas duas áreas estratégicas, o governador Pezão já não tem mais comando. Aliás, há sinais de que não tem mais comando em área alguma.
Quanto às regras impostas ao RJ pelo regime de recuperação fiscal, temos o modelito recessivo convencional: arrochar o serviço público (servidores e serviços prestados à população), hoje submetido à maior ofensiva da história recente do RJ; vender, a preços módicos, a última e rentável empresa estadual, a CEDAE, colocando a água e o saneamento no RJ sob a lógica da mercadoria e da rentabilidade; reduzir drasticamente os investimentos no ensino superior e na pesquisa, seguindo, também aí, o modelo ditado pelo governo federal usurpador, que ataca o parque científico e, com ele, a soberania nacional; e autoriza o combalido RJ a se endividar mais (presente de grego): com isso, a dívida consolidada líquida do RJ hoje já supera significativamente os 200% da receita corrente líquida, conforme estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal. Em troca desse rigor recessivo, quanto a União destina ao RJ? Nem um centavo! Apenas suspende por três anos (prorrogáveis por igual período) o pagamento da dívida que o RJ tem com a União. Mas a dívida segue contando, com juros inclusive, ou seja, trata-se de uma bomba relógio, com prazo para explodir no colo da economia e da população fluminense!
Originalmente publicado em Toda Palavra, junho, 2018.
* Professor da UFF e Deputado Estadual (PT/RJ)
Guilherme
26/06/2018 - 18h31
Tipo raro de reportagem (ou artigo).
Lamentável que o noticiário dê pouca atenção aos debates analíticos e reflexivos sobre os estados, sobretudo nas questões estratégicas e econômicas. Apenas no nível federal é que se vê mais esse tipo de coisa.
Parabéns ao Cafezinho.