Nota de falecimento. Por Luiz Gonzaga Belluzzo

Publicado na CartaCapital

Suscetível ao clima externo, o desditoso programa de metas de inflação sucumbiu à última decisão do BC

O Banco Central, contrariando a opinião quase unânime do mercado, manteve a taxa Selic em 6,5% ao ano na quarta-feira 16.

Os prejuízos pipocaram. Assim faleceu aos 19 anos de idade o programa brasileiro de metas de inflação. Gêmeo de outros espalhados ao redor do planeta, sucumbiu após uma infância difícil, maltratado pelos pais desde pequeno.

O menor golpe de vento já o deixava enfermo e, ainda assim, insistiram em deixar janelas e portas abertas expondo o desafortunado às intempéries do ambiente externo.

Em 2011 escrevi nesta coluna que o Committee on International Economics and Policy Reform havia publicado o relatório Repensando os Bancos Centrais.

O comitê era formado por economistas acadêmicos, ex-presidentes de bancos centrais e ex-ministros das finanças.

Entre eles estão Barry Eichengreen, Mohamed El-Erian, Carmen Reinhart, Kenneth Rogoff, Raghuram Rajan e Dani Rodrik.

Lá estava também Arminio Fraga, presidente do BC no momento da instauração do regime de metas.

Na contramão do rame-rame que assola o debate brasileiro, o relatório faz uma avaliação sem preconceitos do desempenho dos bancos centrais no período pré-crise financeira e aponta para mudanças no escopo das políticas nos próximos anos.

Reconhece que assiste razão aos críticos quando denunciam o fracasso dos bancos centrais em administrar de forma adequada os riscos do sistema financeiro. Isso deve ser debitado em boa medida ao foco estreito na política de metas que levou ao descuido com as medidas prudenciais mais efetivas.

A visão convencional assume a inexistência ou a irrelevância dos efeitos internacionais negativos das políticas monetárias executadas nos Estados Unidos, país que administra a moeda-reserva, fenômeno que ora atormenta os incautos no mundo escancarado às farras dos capitais especulativos.

Na visão do comitê, a dupla metas de inflação-taxas de câmbio flutuantes não possui credenciais para cuidar dos efeitos perversos da volatilidade dos fluxos internacionais de capital. No Brasil, essa questão suscitou a formação de uma barreira de argumentos pseudocientíficos e, não raro, escandalosamente interessados.

O economista Claudio Borio, do Banco de Compensações Internacionais, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas comprometidos com a banca se esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis saberes.

Na gênese, desenvolvimento e configuração da crise financeira, está o fluxo bruto de capitais privados originários dos EUA e da Europa.

A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias.

Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, a emergência das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira e o papel dos Estados Unidos como provedores de ativos líquidos de “última instância”, hoje o bônus do Tesouro de dez anos.

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de expectativas racionais.

O mundo não convergiu para o regime de taxas flutuantes. Muito ao contrário, a coexistência entre regimes de taxas de câmbio flutuantes e taxas administradas tornou-se a marca registrada da economia mundial.

O número de países que adotaram a “ancoragem” no dólar ou numa cesta de moedas aumentou consideravelmente.

Depois da crise asiática, as economias da região, particularmente a China, retomaram as estratégias exportadoras com forte acumulação de reservas e medidas bastante pragmáticas de controle de capitais.

A entrada da China e de outros emergentes como protagonistas importantes no comércio internacional promoveu um forte movimento de queda nos preços das manufaturas, fator determinante para estabilidade de preços na economia global.

A queda dos preços das manufaturas compensou, com sobras, os preços das commodities superaquecidos pela demanda chinesa.

Essas mutações na geografia manufatureira e a dominância dos fluxos financeiros transnacionais foram sumariamente desconsideradas pelo pensamento dominante, embevecido com o desempenho dos bancos centrais independentes e de suas políticas monetárias na batalha contra a inflação.

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