Publicado na Revista Cult.
Foto: Operários’, de Tarsila do Amaral (1933) (Reprodução)
Por Rubens Casara
Ideologia e imaginário
Hoje, parece claro que as teses que sustentavam o fim das grandes narrativas, e os discursos que expressavam a certeza de que o mundo não poderia ser transformado, partem de uma grande narrativa a serviço daqueles que não querem transformações no mundo. O “fim da história” e o “fim das ideologias” nunca passaram de discursos marcadamente ideológicos e com funcionalidade política.
A ignorância de muitos acerca do caráter ideológico de programas como o Escola Sem Partido ou dos efeitos da ideologia na aplicação do direito pelos tribunais (há, por mais incrível que possa parecer, os que sustentam de boa-fé a “neutralidade” dos juízes) é um sintoma muito claro de que a ideologia está mais viva do que nunca.
A ideologia que sustenta o “fim das ideologias no ensino” (o projeto Escola Sem Partido) leva a ações direcionadas a dificultar qualquer forma de reflexão e, assim, sepultar o pensamento crítico através de um modelo direcionado ao “pensamento único” (ou à “escola do partido único”) de viés totalitário e funcional para o projeto neoliberal de transformar cidadãos em consumidores acríticos. Algo parecido acontece com as campanhas que miram na “ideologia de gênero”, pois é o desejo de manter a hegemonia ideológica do patriarcado (e a correlata dominação) que serve de motivação para as ações de pessoas que parecem desconhecer o significado tanto de “ideologia” quanto de “gênero”.
A ideologia existe e produz efeitos ainda que não se fale dela. Aliás, a ideologia alcança o ponto ótimo de funcionamento enquanto não é desvelada e pode produzir efeitos sem que os indivíduos ideologicamente comprometidos a percebam enquanto tal. Como explicar as reformas neoliberais, que romperam o compromisso entre as grandes forças sociais que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, e a passividade com que a maioria da população assistiu ao desmonte do Estado do bem-estar? Como explicar que pessoas exploradas, das classes populares, defendam os interesses dos detentores do poder econômico?
Parece evidente que o modo de perceber e atuar no mundo passa por um conjunto de discursos, práticas, modificações econômicas, dispositivos de poder, produtos da indústria cultural, manipulações discursivas e alterações das relações sociais. Em outras palavras, o modo de ver o mundo liga-se à forma como o imaginário é construído. Pode-se afirmar que, hoje, qualquer forma de dominação ou de ação política relaciona-se, principalmente, com a imagem que cada pessoa faz da realidade.
A realidade é uma trama que envolve o simbólico (a linguagem, a Lei) e o imaginário: a realidade depende da linguagem e da imagem que se faz do mundo a partir dela.
Nas últimas décadas, verificou-se não só o empobrecimento da linguagem como também um correlato processo de dessimbolização em razão do qual se deu a perda (ou, ao menos, uma radical transformação) dos referenciais normativos para agir no mundo. A lei e os correlatos limites que conformavam o mundo-da-vida perderam importância diante do excesso de capitalismo. Tudo e todos passaram a ser tratados como objetos negociáveis. Em nome do projeto e do desejo de enriquecimento, acumulação e circulação ilimitada do capital, instaurou-se uma espécie de vale-tudo. A ilimitação tornou-se o novo regime da subjetividade.
Diante do enfraquecimento do simbólico, em meio a uma sociedade cada vez mais sem limites, aumenta a importância do imaginário. Em um mundo cada vez mais perverso, em que as pessoas gozam ao violar os limites legais e éticos (e no qual aumenta a cada dia o número de pessoas que não interessam ao capitalismo), o imaginário transforma-se em um registro fundamental a ser disputado por quem acredita que um outro mundo é possível. A ação transformadora cada vez encontra menos fundamento no registro do simbólico, ou seja, deixa de estar necessariamente conectada a um Grande Outro (partido, líder etc). Cresce, portanto, a relação entre o registro imaginário e o potencial revolucionário. E os detentores do poder econômico sabem disso.
Da Luta de Classes
O conceito de Luta de Classes perdeu prestígio. Há quem chegue a dizer que o excesso de capitalismo (avanços tecnológicos, capital improdutivo etc) eliminou a importância do conceito de “classe”. Não é verdade. As classes (e a desigualdade) persistem, embora a dessimbolização do mundo e o empobrecimento da linguagem tenham produzido um brutal velamento não só da categoria “classe” como também dos conflitos entre os diferentes grupos sociais. Em consequência, deu-se uma mutação na dinâmica da Luta de Classes.
Da mesma maneira que a burguesia industrial foi progressivamente perdendo espaço para a burguesia financeira, também por um efeito do condicionamento produzido pela racionalidade neoliberal, o trabalhador foi levado a não mais se identificar com os demais trabalhadores. Para ele, a ideia de Luta de Classes perdeu o sentido por uma questão ideológica, ou mais precisamente, em razão de um imaginário incapaz de identificar o outro como um aliado, um igual da mesma classe, contra a opressão. Mais grave ainda: racionalidade neoliberal, não raro, faz como que o explorado não perceba as novas formas de exploração.
Como percebeu Jessé Souza, em seu livro A elite do atraso, a ideia de classe social já é mal conhecida por boas razões:
porque ela, acima de qualquer outra ideia, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura e predetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classe específica vão ter na sua vida em todas as dimensões, negar a classe equivale também a negar tudo de importante nas formas modernas de produzir injustiça e desigualdade.
A questão da classe, que sempre foi maltratada, passou a ser praticamente ignorada no Brasil. Por vezes, a classe foi percebida apenas como uma realidade econômica ou como o lugar que a pessoa ocupa no sistema de produção, enquanto, em outras oportunidades, se deu a universalização dos padrões de comportamento da classe medida para todas as demais classes.
No mais das vezes, as tentativas de entender a questão das “classes” passa por leituras economicistas, ou seja, preocupadas exclusivamente com o nexo entre o comportamento humano e eventuais motivações econômicas. Jessé Souza tem razão ao sugerir que a questão das classes sociais não se limita ao problema da renda ou à temática econômica. O tratamento adequado das classes sociais deve partir da socialização familiar primária (do “berço”) e, mais precisamente, da análise de dados socioculturais. Por evidente, o pertencimento a uma determinada classe leva a um tipo de conhecimento (produzido desde o nascimento) e a um padrão de comportamento que fará diferença no mundo da vida.
Pode-se, portanto, sustentar a existência de mecanismos socioculturais de formação das classes e de produção de capital social. Assim, para o Brasil, faz sentido a tentativa de explicar a sociedade a partir da divisão de classes entre a elite econômica (os detentores do poder econômico), a classe média culturalmente distinta (os detentores de capital cultural), os trabalhadores (os detentores da força de trabalho) e a ralé (os herdeiros do desprezo antes atribuído aos escravos). Também se pode afirmar que enquanto a elite econômica integra a “classe capitalista” e a classe média culturalmente distinta pretende-se a “classe gerencial”, os trabalhadores e a ralé constituem a “classe popular” na configuração tripolar de classes proposta por Gérard Duménil e Dominique Lévy.
Se todas essas classes são visíveis a partir de dados socioculturais, de padrões de comportamento e das chances concretas de êxito no mundo-da-vida, a ideologia produzida a partir da racionalidade neoliberal faz com que fiquem invisíveis. As pessoas que integram tanto a classe média culturalmente distinta quanto a classe trabalhadora, e mesmo alguns que figuram na ralé, passaram a acreditar que são verdadeiros empresários e, portanto, a partir da ideologia da meritocracia, potenciais novos ricos (detentores do poder econômico, a elite que compõem a classe capitalista).
O sujeito condicionado pela racionalidade neoliberal acredita que deve perceber e agir no mundo como empresário de si próprio. Todos os outros, dos vizinhos aos colegas de trabalho e amigos de infância, passam a ser percebidos como empresários-inimigos e, portanto, como concorrentes a serem vencidos.
Ao mesmo tempo em que o egoísmo é transformado em virtude e o interesse individual passa a pautar as ações na sociedade, desaparece a possibilidade tanto de uma amizade desinteressada quanto de construção de uma consciência de classe. Em outras palavras, o outro que antes era um potencial amigo ou companheiro na caminhada para a construção de uma outra sociedade, tornou-se o inimigo a ser derrotado ou destruído. O sujeito passa a explorar a si mesmo na crença de que sua vida é uma empresa.
Tem razão Byung-Chul Han, ao afirmar que aquele que acredita ser “um projeto livre de si mesmo”, capaz de produzir ilimitadamente e enriquecer, acaba por isolar-se. Desaparece, então, o “nós”, o “comum” e a solidariedade que poderiam levar à ação conjunta. Porém, Byung-Chul Han está errado ao afirmar que as classes desapareceram e não há mais a possibilidade de uma revolução social, e isso porque os indivíduos de todas as classes sociais teriam se tornado, ao mesmo tempo, exploradores e explorados.
O “fim das classes”, tal como o “fim da história”, é também um discurso fortemente marcado pela ideologia produzida pela racionalidade neoliberal. Não se pode confundir o velamento ideológico das classes com o desaparecimento dos marcadores socioculturais e econômicos que diferenciam grupos de pessoas. Se a auto-exploração afeta todas as classes, isso não significa que a contradição produzida pela existência de classes desapareceu. A importância da Luta de Classes permanece para a transformação social.
Há, porém, uma luta prévia: a luta pelo imaginário de todos aqueles que não integram a elite econômica (os “super-ricos”) que explora e destrói o mundo, que lucra com a auto-exploração de todas as classes, que controla os meios de comunicação de massa e, portanto, os meios de produção do subjetivismo. Na luta pelo imaginário, como defende Naomi Klein, deve-se construir uma narrativa atraente e identificar um comum que justifique a luta lado a lado. Mas, não é, só. Impõe-se ressimbolizar as classes e apontar as contradições da sociedade, em especial dos grupos que lucram com a razão neoliberal, e partir à luta. Pois, como lembrou Marcio Sotelo Felippe, no texto que marcou a estreia da coluna Além da Lei, a Luta de Classes é “a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais”.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ, escritor, doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação da ENSP-Fiocruz, membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano