[Esse é o primeiro texto de uma série que prometi aqui]
“O Lula não é o Lula, o Lula é uma ideia”
Falou Lula, com todo perdão da cacofonia, pois uma overdose desse nome não faz mal algum à conjuntura brasileira. Além disso, precisamos entender bem de perto esse fenômeno da imortalidade das idéias (ou sonhos não envelhecem, como dizem meus conterrâneos): fora da pessoa Lula, existe o fenômeno lulismo.
Em primeiro lugar, essa expressão é constantemente debatida, portando não é novidade para ninguém. Para ser muito (e muito) objetivo, considero o lulismo como o legado do Lula. A história nos permitirá colocar lupas e microscópios nessa definição a ponto de entendê-la e melhorá-la, mas a urgência do tema me faz ficar por aqui.
Há, também, a definição do cientista político André Singer, a qual tenho, humildemente, um pouco de discordância mas deixo esse debate para depois. De um artigo dele (raízes sociais e ideológicas do lulismo), pego uma parte relevante para fomentar o debate:
“Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, revela que a projeção de anseios em uma força previamente existente, que deriva da necessidade de ser constituído como ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que têm dificuldades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece por que o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles“não podem representar‑se, antes têm que ser representados”, aparecem na política como raio em céu azul, uma vez que surgem de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto‑organização autônoma das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto é, dos partidos e movimentos de classe.”
Ou seja, uma sociedade apartidária, claramente a brasileira como se pode notar na última pesquisa CNI/Ibope, um nome referência acaba surgindo para trazer algum tipo de aglutinação – ao meu ver, não ideológica – que facilita na convergência de ações de grupos totalmente dispersos na desorganização geral.
Nesse sentido, a importância do legado de Lula em nossas ideias se torna crucial, pelo menos, em três questões: a primeira, da importância de dar alguma coalizão da esquerda ideológica com a classe média – sem a qual não tem sustentação qualquer sistema político; segundo, de aproveitar a oportunidade que a história de Lula nos deu de validar a ascensão de setores populares à política nacional e terceiro de ter um legado ideológico para sustentar a auto-organização destacada por Marx.
Sobre a ponte com a classe média, é factível considerar que existe uma massa silenciosa que abomina partidos, comprou o discurso da apolítica, mas gosta do Lula seja pela boa vida que teve no governo dele, seja pela a habilidade do ex-presidente em inspirar pessoas. Sendo assim, preservar o lulismo é preservar uma ponte de diálogo com aqueles que não gostam da política.
Acerca do segundo ponto, a importância histórica de Lula, não podemos esquecer jamais que o presidente quebrou uma lógica na estrutura política nacional que foi crucial para nos entendermos como um país mais democrático: a presidência que sempre foi ocupada por setores ligados da aristocracia nacional – mesmo nomes populares como Jango ou Getúlio – foi ocupada por um trabalhador pobre que teve suas forças não por influência das camadas maiores, mas sim num movimento popular dos trabalhadores e trabalhadoras.
Falando no pai dos pobres, com ele exemplifico o terceiro ponto: em 1995, quando o assumiu abertamente a agenda neoliberal FHC disse que era preciso acabar com a era Vargas. Ou seja, Getúlio tirou sua própria vida para entrar na história, em 1954, para 41 anos depois ver sua própria trajetória pautar o período da Nova República brasileira, sendo contraponto à agenda neoliberal (que, convenhamos, é a velha agenda da elite de rapina).
E quando penso em Getúlio, não posso deixar de abstrair como seria nossa história se, em sua famosa carta de suicídio, Vargas tivesse apontado o nome do seu sucessor (inclusive eleitoral). João Goulart tinha um ministério chave (trabalho, indústria e comércio), era da mesma cidade de Vargas, e mesmo assim não foi apontado por este como seu sucessor. Apesar de não aparecer na carta, Jango surfou, anos depois, nas políticas do seu conterrâneo gaúcho, herdando “naturalmente” o legado varguista.
Temos, assim, três motivos importantes para contar com o lulismo, e não tenho dúvidas que existem outros montes. Como também tenho a convicção que a manutenção do fenômeno lulista passa pela defesa incansável do presidente e da sua inocência.
Em outras palavras, se os meganhas da Lava Jato e companhia conseguem ganhar narrativa de que Lula é culpado, como iremos sustentar o lulismo?
E é, nesse sentido, que penso ser por demais importante uma defesa ferrenha do presidente Lula que passa pela legitimação do seu legado e, com isso, a crença e a defesa de sua inocência e do ataque feroz aos seus algozes, hoje representados principalmente pelo mercado neoliberal, a mídia golpista e o judiciário monárquico.
E não consigo enxergar uma maneira de fazermos isso, considerando natural uma eleição guiada quase em sua totalidade por instituições comprometidas, dos pés a cabeça, ao golpe. Tão pouco dá para aceitar que Lula esmoreça da entregando os pontos da sua candidatura só porque está sendo perseguido pela mesma elite que matou Vargas e exilou Jango.
A candidatura o presidente mais popular da história é chave para seu legado, por isso Lula a defende com unhas e dentes.
E nós, órfãos de um exemplo tão sólido de conquista de uma classe oprimida, nesse caso a dos trabalhadores e trabalhadoras, também deveríamos defender o empenho máximo em torno do ex-presidente.