Por Waldeck Carneiro
No dia 05 de maio do corrente, teve lugar uma importante efeméride, de dimensão histórica e internacional, no campo das ciências humanas e sociais, em especial na filosofia e na economia
política. Refiro-me, como já se supõe, ao bicentenário de nascimento de Karl Marx, filósofo, jornalista, pensador, líder revolucionário, autor de algumas das mais densas, lidas, citadas, debatidas e criticadas obras do pensamento humano. Uma referência para o campo da esquerda, para a organização dos trabalhadores e para vários esforços, pretéritos, atuais e futuros, de superação dialética do modo de produção capitalista, estruturado na exploração do trabalho, na dominação e na desigualdade, logo, incapaz de promover justiça, dignidade e paz para todos. Não por acaso, sua obra foi sempre perseguida e banida por governos autoritários, de direita, a serviço das elites burguesas. No Brasil contemporâneo, seu pensamento segue sendo desqualificado por forças de extrema-direita e líderes neofascistas, que, sem capacidade de travar com o pensamento marxiano um debate de ideias, se limitam a caricatas e odiosas rejeições, sem lastro teórico-conceitual.
Quero aqui me concentrar na impressionante atualidade do pensamento de Marx para analisar a crise brasileira, que não se explica, como já afirmei em outras publicações, pela mera disputa partidária tupiniquim. Ou seja, não é um simples “Fla x Flu” partidário que nos permite entender, na sua dimensão estrutural, a maior crise política e institucional vivida pelo Brasil nos últimos 60 anos. Em seus escritos, Marx nos ensinou que o modo de produção capitalista enfrenta, de tempos em tempos, crises cíclicas de acumulação de riqueza. Para superar essas crises, o capitalismo sempre busca redefinir seus padrões de acumulação e de rentabilidade, o que por vezes leva décadas para se concretizar. Por exemplo, no final dos anos vinte do século passado, o capitalismo enfrentou uma crise de acumulação de grandes proporções, simbolizada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque. O capitalismo se reergueu apenas depois da segunda grande guerra, quando a burguesia industrial se consolidou como fração dominante do capital, nas principais economias capitalistas.
Ora, no final da primeira década deste século, o capitalismo enfrentou novamente uma profunda crise de acumulação, de maior dimensão que a dos anos 1920, tendo como epicentro a chamada crise das hipotecas, que, a partir de 2008, foi derrubando, por efeito dominó, as principais economias capitalistas ocidentais. Essa crise do capitalismo central pegou o Brasil no momento em que acabara de anunciar ao mundo a descoberta de uma das principais reservas de riqueza no planeta: as jazidas de petróleo na camada do pré-sal do mar territorial brasileiro. Não por coincidência, os Estados Unidos desenvolveram, desde então, um dispositivo de espionagem de Estado para monitorar as decisões tomadas pelo Palácio do Planalto, mormente no que tange à gestão do pré-sal. Esse escândalo internacional, propositalmente subdimensionado pela grande mídia, foi revelado por completo pelo principal editor do WikiLeaks, Julian Assange, o que obrigou o presidente Barack Obama a dar um telefonema de retratação à presidenta Dilma Rousseff.
Em profunda crise de acumulação no início dos anos 2010, as elites capitalistas internacionais avançaram, a todo vapor, sobre as riquezas brasileiras, em especial o pré-sal, dando sustentação ao golpe de Estado de 2016. O golpe, a rigor, é uma das páginas mais acirradas da luta de classes no Brasil. Os governos Lula e Dilma, que promoveram inúmeros e inéditos avanços, em várias áreas, apostaram, porém, numa conciliação de classes, considerada impossível por Marx, principalmente em tempos de crise no modo de produção capitalista. No contexto da crise, classes antagônicas, que viviam no Brasil um período de suposta harmonia (frágil castelo de cartas), mediado por governos progressistas mas conciliadores, passaram a travar, com armas desiguais, um duro combate. Em crise, as forças do capital, sobretudo sua fração dominante, que já não é mais a burguesia industrial, mas antes a burguesia financeira, avançam vorazmente, não apenas sobre nossas principais reservas de riqueza e potencialidades estratégicas, como também sobre direitos da classe trabalhadora, como forma de reduzir os custos da produção e para se apropriar de fatias mais polpudas dos orçamentos públicos e da riqueza nacional. Ora, não há sequer referência, no pensamento marxiano, à possibilidade de conciliação de classes, sob o modo de produção capitalista, o que só se materializa por meros arranjos político-partidários conjunturais, incapazes de conter a dinâmica da luta de classes, quando ela se manifesta.
Quando acima me referi à luta de classes travada com armas desiguais, quis acentuar que, no caso brasileiro, as elites golpistas, sustentadas pelo grande capital, dispõem de aparatos que não estão, neste momento histórico, ao alcance das forças populares e democráticas, que fazem o enfrentamento ao golpe: Ministério Público, Poder Judiciário, Polícia Federal, Congresso Nacional e grandes veículos da mídia. Para encerrar, vou me deter nesse último aparato, a grande mídia, que vem funcionando, nos termos de Louis Althusser, filósofo francês nascido na Argélia, de linhagem marxista, como exemplar “aparelho ideológico” do golpe, produzindo sensível processo de alienação das massas, que se distanciam da realidade do processo histórico ou dele se apropriam de forma muito enviesada. Noticiários parciais e programações alienantes, com produção técnica e artística qualificada, cumprem papel alienador e desmobilizador, buscando forjar uma “opinião pública” de sustentação ao golpe, a partir do apoio irrefletido de segmentos da população ou da sua indiferença a esta sombria página da vida brasileira – indiferença que pode ser uma forma de apoio, pois quem cala consente. Ao propagar as posições do campo golpista como verdades históricas e avanços sociais, sempre creditados às lideranças do golpe, sejam elas partidárias, governamentais ou institucionais (neste caso, colocando em evidência o “heroísmo” dos órgãos de controle do Estado), os veículos da mídia oligopolizada, a rigor, grandes conglomerados financeiros que disputam posições hegemônicas na esfera do capital, cumprem ainda, nos termos de Antonio Gramsci, filósofo italiano também de linhagem marxista, o papel de “intelectual orgânico” do golpe, indispensável para promover a adesão às teses golpistas e para a manutenção da nova ordem instituída pelo golpe de Estado em curso no Brasil.
Eis, portanto, como se revela atual, em pleno bicentenário de seu nascimento, o pensamento de Karl
Marx e de alguns de seus intérpretes na análise da contemporaneidade brasileira.
*Originalmente publicado em Toda Palavra, no 28, maio de 2018.
**Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. Deputado Estadual (PT-RJ).