(Zuzu Angel e filhos: Hildegard, Ana Cristina e Stuart Angel | imagem: York/ acervo Instituto Zuzu Angel)
Antes de passar a palavra à jornalista Hildegard Angel, algumas considerações.
Para quem não conhece o jargão do mundo da espionagem, “desclassificar” um documento é quando um governo muda o seu status de secreto para público. Nos EUA, há um lei segundo a qual todos, ou quase todos, os documentos governamentais são desclassificados, após vinte ou trinta anos, a depender do grau de “periculosidade” da informação.
Em função deste calendário, muitos documentos secretos do governo americano sobre a ditadura brasileira estão sendo desclassificados nos últimos anos.
Hoje sabemos, por exemplo, que houve reuniões na Casa Branca, entre membros da cúpula da governo americano, incluindo o presidente Lyndon Johnson, dando aval ao embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, para ações de desestabilização e derrubada do governo de João Goulart.
O seu antecessor, John F. Kennedy, também vinha coordenando ações similares, antes de ser assassinado em 1963. O cineasta Camilo Tavares usou vídeos e áudios dessas reuniões, desclassificados recentemente pelo governo americano, em seu filme O Dia que Durou 21 anos (se você não assistiu ao filme, assista aqui), que trata da participação da Casa Branca no golpe de 64.
E agora, novos documentos provam que a cúpula do governo militar, e o próprio o presidente Geisel, não apenas conheciam a política de execução sumária de adversários do regime, como a comandavam. Isso significa que as mortes, torturas e demais atrocidades do regime não eram cometidas nos “porões”, sem conhecimento dos comandantes militares. Eles sabiam o que acontecia. A ordem vinha deles. Nunca foi uma “ditabranda”, para usar a expressão de Otavio Frias, dono da Folha, tentando minimizar a gravidade dos crimes de Estado cometidos pelo governo, sempre com apoio e chancela da grande imprensa brasileira.
Aliás, é sempre bom lembrar que tanto o golpe de 1964 quanto sua longa duração, por dolorosos 21 anos, só foram possíveis por causa do apoio irrestrito que as forças antidemocráticas receberam dos grandes jornais brasileiros, em especial a Folha, o Estadão e O Globo.
Ainda pior que a ditadura em si foi o clima de pesadelo, terror e medo imposto pelo silêncio e pela mentira dos grandes meios de comunicação, que inventavam todos os dias um Brasil que não existia.
Sempre é bom lembrar, também, que os mesmos grandes jornais continuam a exercer hoje, rigorosamente, o mesmo papel de inimigos da democracia e dos interesses populares. Assim como apoiaram o golpe de 1964, apoiaram o golpe de 2016. Assim como sustentaram o regime militar, a mídia hoje sustenta uma agenda política, de cunho violentamente antissocial, uma agenda criminosa, voltada contra a população, e que não foi decidida nas urnas.
Assim como apoiava as atrocidades da ditadura militar, a mídia apoia hoje as violências e pós-verdades da ditadura judicial, que resultaram, por exemplo, na condenação sem provas e portanto ilegal do ex-presidente Lula, configurando o mais escandaloso caso de prisão política da história brasileira.
Agora, algumas palavrinhas sobre Hildegard Angel, a entrevistada: Hildegard é uma jornalista de moda de grande renome nacional. Já trabalhou em vários jornais e revistas. Hoje assina uma coluna social no JB, e tem um blog onde escreve crônicas sobre moda e política.
O nome de Hildegard Angel, no entanto, antes de ganhar vida própria por suas qualidades profissionais, ficou conhecido no Brasil por causa de sua tragédia familiar. Seu irmão Stuart Angel e sua mãe Zuzu Angel foram assassinados pela ditadura militar. Leia na Wikipedia quem foi e como morreu Stuart Angel, bicampeão carioca de Remo, estudante de economia e mártir da nossa democracia. Leia mais sobre Zuzu Angel, uma estilista de sucesso que iniciou uma cruzada para saber o que tinha acontecido a seu filho, e depois foi, ela mesma, vítima de um assassinato político.
Escutem ou leiam o depoimento de Hildegard Angel ao Cafezinho, em resposta à seguinte questão:
Hildegard, o que você sentiu quando tomou conhecimento dos documentos da CIA que provam que os assassinatos políticos da ditadura não só eram de conhecimento da cúpula do governo militar como eram coordenados pelo próprio Geisel?
Hildegard:
Eu senti horror, Miguel, horror. Porque tudo isso, a gente já sabia. Quando a Comissão da Verdade foi investigar mais profundamente o caso da minha mãe, que já havia sido confirmado como um assassinato pela Comissão dos Desaparecidos Políticos (ainda no governo do Fernando Henrique Cardoso, quando o secretário de direitos humanos era o Zé Gregory), não havia o fato novo, que era um agente do DOPS fazendo revelações.
E isso a Comissão da Verdade teve, que foi o Cláudio Guerra, que era um delegado do DOPS, que escreveu um livro em que ele revelava que a minha mãe tinha sido assassinada. Dá, inclusive, o nome de quem organizou tudo, aquela cilada – que foi o Freddie Perdigão – e conta que esse Perdigão se reportava diretamente ao gabinete do Geisel, ou seja, que as ordens eram dadas pelo gabinete do Geisel.
Foi uma coisa muito forte, essa informação, mas, na época, a imprensa não se deteve nisso, não deu relevo ao fato mais contundente, à revelação mais contundente dessa investigação. Ele deu esse testemunho, foi transmitido via internet, acredito que esteja no portal da Comissão da Verdade (nota do Cafezinho: o depoimento está aqui), porque tudo foi disponibilizado, na época, e o caso da mamãe, mais uma vez, foi confirmado.
Isso me infelicitou muito, me horrorizou, porque cada vez que essas revelações retornam, é como se fosse a primeira vez. Você revive aquela situação. E, no caso da minha mãe, é ainda mais escandaloso, porque mamãe não era uma militante política. Ela não era o que eles chamavam de terrorista – quando quem praticava o terror eram eles – ela não era um militante perigoso, ela era uma mãe de família, ela era uma senhora de 54 anos, com 1,55m, frágil e que exercia uma profissão, sobrevivia, era uma empresária e era uma costureira, era uma criadora de moda, era uma pessoa com hábitos familiares e empresariais e profissionais, com círculo de relações, era uma pessoa conhecida, uma pessoa de vida normal, não era uma militante política.
O que ela estava fazendo de irregular? Primeiro, ela não tinha medo, isso era um agravante, porque toda a estrutura, tudo que eles montavam, toda a parafernália deles era para inspirar medo, pânico, controle da população, e a Zuzu Angel não tinha medo. Isso os desestruturava. Além de não ter medo, ela desenvolvia uma ação contínua e incessante, primeiro, em busca do filho vivo, e posteriormente, em busca do corpo do filho morto. E ela era incansável nisso, ela foi atrás da mídia, não podendo haver a receptividade da mídia local (porque a mídia local, por mais boa vontade que tivesse, porque ela encontrou boa vontade nessa mídia, tinha que fazer isso por vias transversas, por indiretas, com discrição, por metáforas) ela procurou a mídia internacional, fez ações internacionais, como desfile de moda de protesto político, ela conseguiu a Anistia Internacional, que a apoiou, ela foi ao Congresso americano, ela teve os senadores americanos que a apoiaram, os escritores, jornalistas americanos, as celebridades, que gostavam do trabalho dela, como artistas de cinema, Joan Crawford, Kim Novak, que escreviam para ela; a Igreja Católica (Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Helder Câmara), tudo isso incomodava o poder, porque ela era uma mãe desesperada que não tinha limites na sua busca, na sua procura, ela sensibilizava todos os níveis da vida brasileira e também, na medida do seu acesso, da vida internacional.
Nós tínhamos um parente, tio do meu pai, que era da Suprema Corte de Nova Iorque (chegou a presidir lá a corte), que mantinha correspondência com pessoas ilustres, o judiciário no Brasil. Tudo isso causava transtorno. Ela denunciou a aeronáutica, ela denunciou o Burnier internacionalmente, ela provocou a queda, na época, do ministro da aeronáutica com seu protesto, ela mobilizou os nossos artistas, ela mobilizou os artistas brasileiros. Chico Buarque, depois da sua morte, até fez uma música que a homenageia, a única música que homenageia uma pessoa no repertório do Chico Buarque. Eles não imaginavam que isso fosse acontecer.
Enfim, mamãe causou-lhes transtorno, mas ela não era uma militante política, ela não era uma pessoa perigosa, e eles resolveram exterminá-la dessa maneira, na saída de um túnel, de madrugada. Não imaginavam que fossem haver testemunhas, como houve (duas pessoas da Paraíba, que se apresentaram 22 anos depois e deram depoimento e foram ouvidas), não imaginaram que haveria também, 30 e poucos anos depois, o Claudio Guerra fazendo esse relato, não imaginaram que havia, no arquivo do Globo, uma foto do assassino no local do crime.
Tudo isso são desdobramentos, mas mesmo assim, Miguel, uma coisa que me transtorna é ver que a imprensa brasileira, até agora, não digeriu o fato de que isto é uma verdade: Zuzu Angel foi assassinada. Até hoje a imprensa brasileira publica que ela morreu num acidente mal explicado ou num acidente de causas não reveladas, num acidente mal resolvido. Na verdade, o que é mal resolvido, mal explicado, é a imprensa, que não se dá conta de que ela não se atualizou. Já foram três comissões que reconheceram oficialmente que a Zuzu foi assassinada por agentes do governo, com perícia, e agora mais esse documento que dá conta de que os mortos do período Geisel foram por determinação dele. E os jornalistas não conseguem dizer que a Zuzu Angel foi assassinada. A Zuzu Angel não morreu num acidente mal explicado, ela morreu num assassinato muito bem planejado. É isso.
[Agradeço à valorosa jornalista Lia Bianchini pela transcrição do áudio].