Originalmente publicado no Jornal GGN.
Para entender os dilemas da chamada frente de esquerda, há que se colocar no tabuleiro vários componentes extra-eleitorais e algumas peças políticas.
Peça 1 – a composição do Estado de Exceção
Há uma frente heterogênea, que sustenta o Estado de Exceção. Essa frente reflete majoritariamente o sentimento da classe média, exposta a mais de uma década de campanha raivosa da mídia. E conseguiu o feito de juntar desde o mercado financeiro até setores da indústria teoricamente beneficiados pelas políticas industriais do governo Dilma.
Há uma característica paradoxal nessa frente.
Fortalece-se com a expectativa de volta de Lula/PT.
Dispersa-se com a presunção de Lula/PT fora do jogo eleitoral. Aí começam a aparecer as divergências.
O comando maior, o agente articulador das expectativas são as Organizações Globo. Com poder de Estado, integram essa força a maioria do STF (Supremo Tribunal Federal), o Judiciário – incluídos o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) -, a Procuradoria Geral da República (PGR) e parcelas majoritárias do Ministério Público Federal (MPF) – incluído o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) -; a Polícia Federal; os órgãos de controle. Em suma, a burocracia brasiliense e o Judiciário.
Na economia, junta o chamado mercado e a maioria das confederações empresariais. Na sociedade civil, a classe média.
Há uma série infindável de episódios de exceção demonstrando que a frente continua ativa:
Estratégia do STF – Há constitucionalistas, os que defendem a Constituição, os ativistas judiciais, surfando nas ondas do neo-moralismo., e os oportunistas políticos. Nas grandes votações, há situações de quase empate, que dão algum alento acerca da reação do STF contra o arbítrio. Mas o colegiado sempre dá um jeito de que o voto decisivo seja pela manutenção do Estado de Exceção. É o que garante a tranquilidade para os constitucionalistas. O voto Rosa Weber no julgamento do habeas corpus de Lula; e, agora, o de Dias Toffoli, contra a libertação de Lula, são sintomáticos desse jogo de subterfúgios. Se seu voto não fosse decisivo, provavelmente ambos votariam pela libertação.
Do mesmo modo, a decisão do “punitivista” Alexandre Moraes, de remeter os processos de Aécio Neves para a 1ª instância, a pretexto de retirar privilégios, devolve Aécio ao seu habitat, Minas Gerais, onde mantém ampla influência sobre o Judiciário. Enfim, STF se tornou o órgão máximo das espertezas processuais escandalosas.
Estratégia da PGR, MPF e PF – as delações permitiram juntar um enorme arsenal de fatos ou meras evidências, que são armazenadas nas gôndolas do MPF e da PF e retirados de acordo com o prato político que está sendo preparado. Se o PT pensa na alternativa Jacques Wagner, imediatamente tira-se uma denúncia da gôndola e abre-se um inquérito ou alimenta-se a mídia de uma mera possibilidade de denúncia contra ele; se é Fernando Haddad, outro; se Gleisi Hoffman se mostra muito aguerrida, outra denúncia é retirada da gôndola. Enquanto isto, os inquéritos contra o PSDB caminham a ritmo de cágado. Só andam após a morte política dos alvos, como o caso de Aécio Neves
Aécio tinha dois caminhos a seguir. Mantendo-se senador, as investigações pela PGR e PF entravam na reta final. Para pular fora da frigideira, teria que renunciar ao posto de senador, e perder a prerrogativa de foro.
O bravo Alexandre de Morais resolveu a questão: retirou o foro sem a necessidade de Aécio abrir mão do cargo de senador.
É o país da hipocrisia!
Não apenas isso. A imagem do helicóptero com 500 quilos de cocaína, com o piloto sendo liberado dias depois, e o caso do tio de Aécio, responsável pelo aeroporto da família, e denunciado por esquemas com desembargadores visando libertar traficantes, lançam suspeitas fundadas. A primeira, de que há ligações entre o crime organizado e parte da estrutura política e de repressão do país. A segunda, que se criaram territórios intocáveis. Tudo isso sob o manto do macarthismo que se apossou das instituições.
Não foi mero “azar” do PT ter o Joaquim Barbosa como relator do mensalão, Sérgio Moro como juiz da Lava Jato, os três sobrinhos do Pato Donald (um completando a frase do outro) no TRF4, processos com juízes punitivistas do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. O Partido do Judiciário conta com a adesão fortemente majoritária de juízes em todas as instâncias.
Estratégia no CNJ e CNMP – todos os abusos contra a esquerda são tolerados; qualquer abuso pró-esquerda é reprimido. Tome-se o caso Rodrigo de Grandis, o procurador que atrasou por anos as investigações sobre as propinas da Alstom para o governo de São Paulo. Não sofreu uma sanção sequer da parte do CNMP.
Até hoje o CNJ não encontrou disposição para julgar o mais óbvio abuso cometido até agora: a divulgação de grampos ilegais de conversas de Dilma e Lula, autorizados pelo juiz Sérgio Moro e pelo então PGR Rodrigo Janot.
Estratégia no TSE – na análise das contas de Dilma e do PT, nas eleições de 2014, tentou-se transformar em infração grave até o enquadramento de máquinas de picotar papéis como bem de consumo durável. Agora, o futuro presidente do TSE, Luiz Fux, acena até com impedimento de candidatos que, segundo as avaliações do TSE, tenham sido eleitos recorrendo a fake news. Disse isso em Seminário da revista Veja, a mesma que soltou uma capa falsa contra Dilma no dia anterior às eleições do segundo turno de 2014.
Estratégia na Câmara – transformar “pedaladas fiscais” em crime de responsabilidade.
Conclusão – Esses são os personagens que estarão à espreita do próximo presidente eleito, caso seja considerado um “inimigo”. Tudo isso compõe um quadro permanente de arbítrio, que não cessou com a queda de Dilma ou com a condenação de Lula. É um tigre que continua sentado na sala de visitas, sem ser incomodado, devorando qualquer carne fresca que se apresente. Basta a Globo escandir um “isca”.
Abrem-se dois desafios, portanto: como vencer as eleições, e como enjaular novamente o tigre do Estado de Exceção.
Peça 2 – a herança maldita
Some-se a essa instabilidade política e institucional a herança maldita deixada pela quadrilha que se apossou do poder.
Em geral, governantes eleitos têm um período de graça, no qual podem ousar passos mais ousados com o beneplácito do Congresso. Seria o período para aprovar uma reforma fiscal progressiva para valer e anular as principais maldades cometidas por esse inacreditável “dream team” da economia.
A maneira como foram aprovadas as reformas da Previdência e trabalhista desmonta todo um modelo tributário que, desde as reformas de Roberto Campos, no governo Castello, dava um mínimo de previsibilidade à arrecadação, com os descontos em folha. Desestimulando a formalização do emprego, de um lado, e a adesão à Previdência, de outro, somado à Lei do Teto, essa suposta “equipe de ouro” da Fazenda produziu um desastre a curto prazo.
Tudo isso, mais a Lei do Petróleo, mais os grandes negócios armados em torno da Eletrobrás, terão que ser enfrentados, ao lado de uma pauta de reformas fundamentais. E com o maior poder do país, a Globo, jogando contra, em um ambiente de não recuperação da economia, com a irresponsabilidade da PEC do Teto inviabilizando a gestão econômica.
Peça 3 – Lula vs Lula
Por outro lado, tem-se um quadro em que o grande eleitor, sendo candidato ou não, continua sendo Lula. Intimamente, poucos acreditam que Lula conseguirá viabilizar sua candidatura. Mas é necessário manter a chama acesa.
Contudo, a prisão de Lula jogou no imaginário da esquerda discursos conflitantes.
De um lado, os que não admitem mais nenhuma forma de pacto – escaldados com os pactos firmados na era Lula-Dilma, que terminaram em golpe. De outro, porta-vozes de Lula procurando consolidar e ampliar o arco de alianças para as eleições, inclusive com a possibilidade de abrir mão da cabeça de chapa, entendendo que apenas ganhar as eleições não garantirá a governabilidade.
Há duas estratégias para o dia seguinte ao do impedimento de Lula:
Estratégia 1: com a hegemonia do PT
Mantém Lula candidato até o prazo final.
Escolhe-se um vice representativo do PT. As discussões internas no momento estão entre Fernando Haddad e Jacques Wagner, embora ambos defendam a ideia de até abrir mão da cabeça de chapa, para consolidar a frente de esquerda. Quando o TSE proibir a candidatura Lula, automaticamente o vice assumiria a cabeça de chapa, o que seria entendido por todos os eleitores como o ungido por Lula. Ao mesmo tempo, seria desmascarada mais uma vez a farsa do impeachment.
O segundo turno seria o momento de se consolidar a frente de esquerda, mas aí com o PT na cabeça da chapa.
A legitimação do novo presidente, pelo voto popular, seria a arma para desmontar o aparato do golpe.
Quais as dúvidas acerca dessa estratégia:
A vitória de um candidato de Lula é provável, mas não é certa.
Um candidato do PT, que não seja Lula, dificilmente conseguirá manter intacta a frente de esquerdas. Há uma possibilidade do racha entre candidatos de esquerda excluí-los do segundo turno.
Dificilmente conseguirá romper a aliança golpista. O novo presidente enfrentará o terceiro turno a partir do primeiro dia de mandato em um quadro econômico francamente desfavorável.
Estratégia 2: com a frente ampla de esquerda
Mantém Lula como candidato até o prazo final.
Até lá, sem alarde, irão sendo montadas alianças com outros partidos de esquerda, em torno do candidato com melhores possibilidades já com vistas às disputas do 1º turno. É a possibilidade que está sendo conduzida por Fernando Haddad, Jacques Wagner e por lideranças do PCdoB. E aí, a balança penderia para Ciro Gomes.
Some-se a isso a implosão próxima da centro-direita com o fracasso das políticas de Temer, o fim das apostas em outsiders e o desânimo generalizado com a candidatura Geraldo Alckmin. E, principalmente, a constatação de políticos do nordeste sobre o papel crucial de Lula na região. O antilulismo poderá ser fatal para as pretensões políticas de muitas raposas. Esse pessoal tentará se aproximar de Ciro Gomes, em uma frente nordestina que tem o apoio de Jacques Wagner – montado na expressiva vitória do PT na Bahia em 2014.
Ciro tentaria alargar a base de apoio com uma campanha baseada em reforma fiscal que taxe o capital financeiro, uma reforma previdenciária que invista contra os privilégios das corporações públicas, na regulação do sistema financeiro, em políticas desenvolvimentistas.
As dúvidas acerca dessa estratégia:
Resistência de parte da militância petista quanto aos grandes acordos nacionais – dos quais Lula foi campeão.
Resistência do próprio Ciro em relação ao PT.
Destempero de Ciro, que acaba gerando resistências em muitos setores empresariais.
Peça 4 – os protagonistas do jogo
Apesar de algumas declarações infelizes, a presidente do PT Gleisi Hoffman representa um sopro de renovação do partido, tornando-o menos infenso à burocracia interna e aos dogmas partidários. Tem potencial para conduzir negociações e fazer a interlocução com as bases petistas.
Fernando Haddad e Jacques Wagner são outros dois polos de bom senso e de capacidade de articulação, Haddad com o principal interlocutor de Lula para as articulações políticas, especialmente para ampliar o arco de alianças; Wagner com a ampla influência sobre a política regional nordestina.
Guilherme Boulos logrou trazer para o jogo político uma boa relação de intelectuais de esquerda, com capacidade de formulação, e que perderam espaço com a estratificação do PT na última década. Seu discurso sobre o aprofundamento da democracia é uma das peça centrais a ser assumida por todos os partidos de esquerda.
Flávio Dino e Manuela D’Avila são outros dois políticos que estão crescendo.
E Ciro Gomes, que terá o desafio de controlar o próprio temperamento e mostrar talento para montar um quebra-cabeças de inúmeras peças conflitantes.
PS – Considere, ainda, a possibilidade da evolução do inquérito contra Temer e quadrilha, abrindo espaço para um governo provisório que possa adiar as eleições. Dentre todos os políticos brasileiros, não há um mais obediente às orientações da Globo que Rodrigo Maia.