O dia em que Caetano experimentou a “força estranha”

*Denise Assis

Três linhas, um círculo e um tecido pendem ao fundo, sobre os quatro artistas no palco do Cine teatro Central (JF-MG). Neste cenário, de uma simplicidade e de uma funcionalidade ímpar, a melodia escorre pela cena suavemente como a bolha de ar em uma garrafa de mel.

Com a mesma suavidade, Caetano, o patriarca, vai conduzindo o roteiro, as falas, o ritmo, numa autoridade branda, que se vê, é cultivada em casa. Moreno, Tom e Zeca seguem, executam com alegria e delicadeza às orientações do pai, com um afeto tamanho que parece ocupar o lugar da quinta cadeira colocada no palco para as eventuais trocas de posição para microfones e instrumentos.

Tudo funciona tocado pela iluminação que por vezes aquece, em outras esfria, pode ser lua, pode ser sol e pode simplesmente sinalizar para a plateia que é hora de entrar em cena e tornar o show mais vibrante.

O quarteto abre o show com “Alegria, Alegria”, ganhando a plateia, de cara. Caetano se anima. Tira a jaqueta usada para se proteger do início do inverno que já se anuncia na cidade e se solta, ameaçando sair da cadeira onde se sacode. Mas se contém. Sabe que está numa cidade tradicional, e prefere primeiro saudar os presentes e falar da sua satisfação em ser recebido por eles. A plateia aplaude entusiasmada com o clima “família” do palco.

Caetano tenta arrastar o público comportado para os padrões das suas plateias. Esta, porém, reage apenas com palmas ritmadas e, por vezes, com uma cantoria miúda, que lembra o som de ladainhas. Longe do entusiasmo de um público do Circo voador.

Assim, entre sucessos como Trem das Cores”, “Oração ao tempo” e as composições dos filhos, que o artista vai apresentando “corujamente” – e com justa razão, pois os meninos são mesmo talentosos –  o espetáculo caminha. A voz límpida e angelical de Zeca, nos chega aos ouvidos como um carinho. Encanta. Moreno, o “místico” e macumbeiro”, no dizer do pai, é também o “sambeiro”, de maiores arrojos. E Tom, o mais tímido, surpreende o público ao cair na dança do passinho, descalço e cheio de animação. Arremata a performance com um carinho no pai, para deleite total da plateia.

Quando entoa “Força estranha” (de sabidas referências a Roberto Carlos) aí sim, o público canta a plenos pulmões. Sentindo-se mais confiante, Caetano solta um “Lula livre”.

O que se vê é a transformação imediata daquela plateia em fúria, urros, uma vaia estrepitosa como ele só deve ter conhecido no palco do festival da canção, no Maracanãnzinho, quando em setembro de 1968 tentou cantar “É Proibido proibir”. Distingue-se a débil tentativa do grupo jovem que ocupa as primeiras fileiras do teatro, sabe-se lá a custa de quanto sacrifício, para pagar com mesadas os ingressos salgados do show, por isto, em minoria, de reproduzir a palavra de ordem: “Lula livre”. Aqui e ali gritos de: “pega ladrão”, e, ainda, “viva Moro”.

Visivelmente desconfortável, procurando se recuperar da surpresa, e bem ao seu estilo, Caetano ainda ensaia um troco. “Este é um espaço democrático. Em Fortaleza, talvez porque o show foi de graça e feito numa praça, quando eu disse isto o povo veio todo em coro…” Caetano talvez não tenha percebido que aquela plateia não foi pra ouvir suas canções e mensagens progressistas. Foi porque pode pagar.

Estava politizado o momento. A sua réplica, demonstrando que quando dão voz ao povo ele sabe de que lado fica, porém, não foi suficiente. Caetano então esperou o silêncio e devolveu com o que aquele público mais gosta. Entoou o “Ofertório”, música composta para a missa de 90 anos de sua mãe. Neste momento, estabeleceu-se ali o que podemos chamar de “visão dicotômica”. Espantoso como aquela plateia soube como nenhuma outra separar o artista do homem Caetano e suas opções políticas. Voltou a aplaudir comportadamente, soltando “Hurrus” no final.

Moreno, no entanto, Caetaneou. Ao final do show, quando de pé o público exigia o bis, voltou ao palco e disparou: “o meu pai já disse e eu vou repetir: “Lula livre”.

Estava de novo, e desta vez mais forte, formada a “força estranha” que impulsiona aquela gente. Vaia, gritos, revolta e, aplausos esquizofrênicos – quer dizer, entusiasmados – no final, para o quarteto.

Na saída, deu para ouvir, de uma senhora com a chapinha em dia e um bem cortado casaco preto, reagir: “o que ele está pensando? Vem levantar bandeira aqui…”

Não, minha senhora. Caetano está apenas reproduzindo o que quase 50% do povo desse país quer. Lula livre, para ter seu nome incluído na urna em outubro.

  • Jornalista e colunista de O Cafezinho
Denise Assis: Denise Assis é jornalista e autora dos livros: "Propaganda e cinema a Serviço do Golpe" e "Imaculada". É colunista do blog O Cafezinho desde 2015.
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