A hipocrisia das relações internacionais na América Latina, após a onda de golpes que varreu o continente, nunca foi tão evidente.
A reportagem da Folha sobre a mais recente reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) diz, no título, que “Brasil, EUA e 14 países repudiam eleição na Venezuela”. O leitor nem precisa ler a matéria para saber que se trata de mais uma xaropada antibolivariana sem pé nem cabeça. A começar pelo próprio título, que é um tanto surreal. O que a Folha queria dizer, naturalmente, era algo assim: Brasil, etc, repudiam ataques à democracia na Venezuela. Repudiar a “eleição” é bizarro, e ao mesmo tempo é emblemático, quase um ato falho. Afinal, não é isso que todos querem? Que haja eleições? Claro, tem de ser eleições limpas, justas e cujos resultados sejam respeitados pelos que participaram dela.
O primeiro parágrafo da reportagem chega ser engraçado, não fosse trágico:
Ora, centenas, quiçá milhares, de lideranças políticas importantes de todo mundo tem denunciado a prisão de Lula. Dois Nobels já assinaram abaixo assinado pedindo que o ex-presidente seja considerado para o prêmio. Então soa um tanto estranho que a Folha considere o risco de “presos políticos” na Venezuela e ao mesmo tempo ignore o caso mais chocante de todos: o do Brasil, onde o judiciário, comprometido até os ossos com o golpe, mantém o líder em todas as pesquisas de intenção de voto, preso numa solitária em Curitiba.
A conclusão que chegamos é simples: a Folha de São Paulo é um órgão medíocre e submisso do imperialismo. Suas posições democráticas não são coerentes. A Folha é como os Estados Unidos. Apoiaram o golpe militar de 1964. Apoiaram o golpe judicial de 2016. E mesmo assim continuam falando em democracia como se não fossem, eles mesmos, seus maiores inimigos.
Quanto a posição do governo brasileiro, uma outra reportagem da Folha diz tudo.
Confesso que demorei alguns segundos para apreender o sentido da frase. Temer “não afirma que não”. A negativa dupla é uma construção sintática estranha, deselegante e, sobretudo, antijornalística. A matéria poderia simplesmente dizer que Temer prefere não opinar sobre eleições na Venezuela, o que é a postura diplomática correta, visto que ninguém deve ser meter no quintal dos outros. Ao usar a expressão “não afirma que não”, a Folha usa um artifício semiótico dos mais vulgares. Fica parecendo que Temer não reconhecerá o resultado, embora ele não tenha dito isso.
Ao final da matéria, os representantes da Bolívia e Cuba fazem a denúncia que nem os EUA, nem seus lacaios travestidos de presidente, tem a coragem (ou o interesse) de fazer:
Já o mandatário boliviano Evo Morales referiu-se ao ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, preso na semana passada, dizendo que “não se pode aprisionar a consciência de um povo. Não existem provas contra Lula. É preciso estar alerta às ameaças a nossos governos. Estão usando o discurso da luta contra a corrupção para atacar os governos populares.”
O chanceler cubano, Bruno Rodríguez, em sua intervenção, disse que “Lula é um preso político e agora a Justiça virou instrumento para derrubar líderes populares”.
O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, em sua intervenção, faz uma afirmação curiosa:
A Venezuela já foi um dos países mais ricos do nosso hemisfério e hoje é um dos mais pobres. Não deixaremos que as pessoas sofram aos pés de um déspota como Maduro.
Seria interessante se a Folha se dignasse a dar “o outro lado” desse tipo de declaração, ao invés de apenas repetir o que o governo Trump diz. Trata-se de uma mentira. Se a Venezuela foi “rica” algum dia, não se pode dizer o mesmo sobre seu povo, vitimado pela fome, doenças e analfabetismo, problemas que foram reduzidos drasticamente durante os governos chavistas.
Coube ao chanceler cubano, Bruno Rodríguez, lembrar que “os EUA não têm autoridade moral para dar aulas de ética política quando financiaram e apoiaram governos despóticos na região, como as ditaduras dos anos 1970.
A declaração de Rodríguez é um fato histórico incontestável. Pena que a imprensa brasileira, espertamente, apenas dê a informação pela boca do chanceler cubano, e não, como deveria, por uma reportagem posicionada ao lado da notícia. Ao invés disso, a Folha prefere chamar Nicolás Maduro de “ditador”, expressão que não usa, por exemplo, para se referir ao “líder chinês” ou ao “rei da Arábia Saudita”.