Comentários sobre o evento no Circo Voador

(Foto: Ricardo Stucker)

A frase de Mario Lago, sobre a união da esquerda na cadeia, era apenas irônica, claro. Era uma ironia a essa característica atomizante da esquerda, de subdividir-se indefinidamente em correntes divergentes entre si.

Como a perseguição judicial à esquerda vem de longe, e se intensifica em momentos de crise, suas lideranças sempre teriam oportunidade de se unir – na prisão.
Entretanto, se essa união carcerária é uma realidade, ela se limita a seus muros. Do lado de fora, nem isso.

A história recente do Brasil é um exemplo.

Desde que os donos do país começaram a se dar conta, a partir de sucessivas derrotas eleitorais para o PT, de que os principais aliados dentro do Estado não eram mais seus representantes no parlamento, muito instáveis e dispendiosos, e sim a alta burocracia estatal, o processo político brasileiro se tornou, eminentemente, um processo burocrático.

Um processo jurídico, policial e midiático, mas sobretudo burocrático, no sentido de que todas as decisões importantes são tomadas, em última instância, por burocratas de carreira, e não mais por aqueles que o juiz Marcelo Bretas, responsável pela Lava Jato no Rio, chamou de “agentes públicos temporários”.

Lideranças como José Genoíno e José Dirceu foram presas, sem provas, ou com provas manipuladas e ilegais, e a esquerda, ao contrário do que dizia o ditado, desagregou-se. Quadros importantes saíram do PT e fundaram outros partidos. O PT, desde o início de seus governos, entendeu que a melhor maneira de atravessar os mares agitados pelas intermináveis crises políticas, era esvaziar ao máximo o seu navio. E foi botando pra fora tudo que não servia ao objetivo único: governar.

O objetivo era nobre. A estratégia, nem tanto. Até porque a travessia dos mares agitados só tem algum valor se restar alguém vivo dentro do barco.

Naturalmente, é injusto atribuir “culpa” à esquerda por um processo histórico cuja complexidade ultrapassa, como dizia Clarice Lispector sobre a vida, qualquer entendimento. Além disso, a esquerda foi vítima de suas contradições internas, derivadas, por sua vez, das enormes contradições com as quais os governos petistas tiveram de lidar durante suas gestões.

Se as conspirações midiático-judiciais – a “cadeia”, em suma – não uniram a esquerda, a morte, aparentemente, sim.

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), a execução de cinco jovens em Maricá ligados a UJS, e os atentados sistemáticos sofridos pela caravana de Lula no sul do país, fizeram a esquerda entender que, desta vez, não é apenas a sua liberdade política que está em jogo, mas a sua própria existência física.

O evento realizado nesta segunda-feira, 2 de abril, no Circo Voador, mostrou que a convergência das esquerdas brasileiras não é mais uma dessas ideias geniais que nunca se materializam. Tornou-se antes um processo guiado pelo mais genial dos professores de política: a necessidade histórica.

Inúmeros analistas concordam que o país nunca viveu uma crise política tão profunda. Os jornalões tentam escondê-la, com medo de que a percepção popular sobre a crise prejudique a sua narrativa, tão laboriosamente construída, de que a Lava Jato e o impeachment fazem parte de um processo salutar de recuperação nacional. Mas é justamente por ser escondida pela imprensa, e vivida tão brutalmente pela população, que a crise é tão dramática. O país é como um indivíduo acossado por dores terríveis, angustiantes, cujo médico lhe diz, incessantemente, que ele não tem nada; com uma diferença, o sofrimento irá, em algum momento, matar o indivíduo, enquanto um país como o Brasil, com nossos recursos humanos e naturais, pode agonizar por séculos.

Em junho de 2014, alguns meses após o início da Lava Jato, havia no Brasil um total de 36,8 milhões de pessoas trabalhando no setor privado com carteira assinada.

Quatro anos depois, em fevereiro de 2018, segundo o IBGE, esse número cairia para 33,1 milhões. Ou seja, houve uma destruição de 3,7 milhões de postos de trabalho.

Se considerarmos que a população brasileira cresceu de 201,9 milhões para 207,9 milhões nesse período, ou seja, que é uma população com 7 milhões de pessoas a mais, então a gente tem noção da catástrofe: o percentual de empregos formais do setor privado em relação ao total da população caiu de 18% em 2014 para 15,9% em 2018.

Voltando ao evento no Circo Voador, ele não foi o primeiro momento de união das esquerdas. Foi antes um corolário de uma série de movimentos neste sentido que vem acontecendo desde o segundo turno das eleições de 2014. Desde então, a esquerda partidária, assim como a esquerda social, vem assumindo pautas convergentes, como as lutas contra os projetos reacionários de Eduardo Cunha, contra o impeachment, contra o governo Temer e, finalmente, contra o fascismo.

O deputado estadual Marcelo Freixo ocupou o centro do palco, exatamente à esquerda de Lula. Mais a esquerda, estava o pré-candidato à governador pelo partido, Tarcísio Mota. Ainda no palco, na linha de frente, víamos a deputada Manuela D’Ávila, pré-candidata a presidente da república pelo PCdoB, sentada ao lado de Chico Buarque, e o embaixador Celso Amorim.

Todos os discursos foram afinados. Freixo e Tarcísio defenderam Lula com muita galhardia e coragem política, visto que é uma decisão difícil para um partido que, até pouco tempo (assim como o PT, a bem da verdade), ainda tinha um coração bem lacerdista.

Apesar do Circo Voador estar lotado, e havia muita gente do lado de fora, assistindo pelo telão, a força de um evento como esse não é exatamente a quantidade, e sim a qualidade.

Ali estavam reunidos o presidente que mais vitórias eleitorais obteve na história da nossa democracia, e ainda hoje líder inconteste nas pesquisas de intenção de voto para 2018; o deputado estadual mais votado no Rio; o chanceler mais admirado na história do país; todos os dirigentes sindicais importantes do Rio de Janeiro, além de estudantes, trabalhadores e intelectuais. Ou seja, quando falamos aqui de qualidade política, é num sentido que incorpora também a quantidade.

Lula discursou por último. O ambiente estava um pouco triste, talvez por não ser um evento, como tem sido a maioria dos quais Lula participou ao longo de toda a sua vida, para debater projetos, utopias, sonhos. Não era nada disso. Era um evento para denunciar assassinatos políticos e o surgimento de ondas de intolerância e violência política tão grandes que tem sido comparadas, com muita seriedade, àquelas vistas durante os regimes fascistas. A tristeza se agrava porque todos têm consciência de que é um processo que não vai parar tão cedo, porque suas causas ainda estão ativas: as forças que deram o golpe precisam continuar disseminando ódio e intolerância para que suas narrativas não sejam prejudicadas. Daí que é preciso, acima de tudo, continuar culpando o PT. E como essa culpabilização não encontra, na maioria das vezes, suporte na realidade, então é preciso inventar, exagerar, omitir-se diante da disseminação de fake news.

O senador Lindberg Farias, em seu discurso, foi bem enfático neste sentido, falando algo como: “eu acuso publicamente a Globo como principal responsável por esse processo de aumento da violência política, da intolerância e do fascismo”.

Demonizar o PT é a única saída para dar um mínimo de sustentação ao governo Temer. Com a Lava Jato, a grande mídia pode terceirizar a sua crítica partidária ao PT à alta burocracia estatal. Converter essas castas em seus jagunços contra a esquerda foi uma jogada genial da elite rentista, inclusive do ponto-de-vista de seus próprios bolsos. Seus capangas no parlamento custam caro. É preciso bancar suas campanhas, pagar suas dívidas, custear seus aparelhos políticos. Já os burocratas recebem seus salários e propinas do próprio Estado (e nesse tempo todo, a elite rentista sempre apoiou, discretamente, que a nossa casta jurídica se tornasse a mais rica do mundo). Não há nada mais absolutamente patrimonialista do que o festival de mordomias de privilégios que corrompem a nossa plutocracia jurídica.

O jogo é cheio de nuances e contradições, naturalmente. As críticas da imprensa a algumas mordomias do judiciário, por exemplo, são tão transparentemente oportunistas que chega a ser constrangedor: os barões da mídia, representantes mais diretos das classes rentistas, precisam constantemente lembrar às castas judiciais quem é que manda.

E tudo isso vai continuar e se agravar, na medida em que se aproxima o processo eleitoral. A prisão de Lula foi transformada, bizarramente, na principal demanda “política” de todos os setores sociais manipulados pela grande mídia e pela Lava Jato.

A gravidade disso é enorme, porque se a prisão de uma grande liderança política é transformada na principal bandeira do campo adversário, então qualquer pessoa ou instituição que se opor a essa prisão será tratado como inimigo, que é o que vem acontecendo.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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