*Denise Assis
O ex-presidente José Sarney (MDB), andou se queixando do arrependimento que sente de não ter reunido informações que propiciassem às gerações futuras uma melhor leitura do seu legado. O atual ocupante da cadeira presidencial, Michel, embora no início tenha dado de ombros sobre o que falariam de sua passagem pelo poder, agora anda tão preocupado com a própria imagem que vem lançando mão de malabarismos capazes de alavancá-lo do índice de um dígito onde estacionou desde que lá está, a fim de dar um up grade na própria imagem e à do seu “governo”. Já fala até mesmo em uma candidatura, para “defender” o que considera “positivo” no que andou fazendo no Brasil.
Enquanto isto, o ex-presidente, João Goulart, apeado do cargo pelo golpe civil-militar em 1 de abril de 1964, (há 54 anos, portanto), não esperou muito até iniciar movimentações no sentido de organizar o que chamaria de: “O Livro Branco do Governo João Goulart”. Iniciou, já em 1966, tratativas para referenciar todos os seus feitos, por setores, numa edição a cargo da Civilização Brasileira, do amigo Ênio Silveira, conforme demonstrado no sumário elaborado para a obra. (Ver reprodução). As informações localizadas pelo Cafezinho, encontram-se nos arquivos do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, onde está o acervo do ex-presidente.
Os papéis foram examinados pelo cientista social, Jorge Chaloub – Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ, com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Chaloub é um estudioso do período da República de 1946 e seus desdobramentos até o golpe que depôs João Goulart.
O acadêmico destacou a importância e o ineditismo dos documentos que, em sua opinião, “traz um Jango não só interessado em voltar a participar da vida política, como também de resistir, o que não se costuma ler nos diversos trabalhos a respeito”, disse. Ele ressalta, porém, que “Jango não era um Brizola, disposto a uma resistência armada, se fosse preciso. Jango operava pelo mundo da política. Claramente fica demonstrado nesses documentos que ele estava disposto a lutar politicamente e não militarmente, tanto pelo passado, pelo legado do seu governo, quanto por um passado que se fará presente no futuro. Pela rede de pessoas que escolhe para as suas articulações, ele considerava dar continuidade ao trabalhismo”, observou.
A documentação nos conta a história de um momento pós golpe, ainda com questões a serem esclarecidas. Por ela observa-se que, tão logo chegou ao exílio no Uruguai e conseguiu reorganizar a própria vida, Jango iniciou, em 1966, tratativas para formar com o seu ex-ministro da Casa Civil, Darcy Ribeiro, uma equipe de coordenadores editores, redatores e pesquisadores, a fim de reunir todo o material de que dispunha, no livro que daria satisfação ao povo brasileiro do real significado o seu governo.
Desses papéis, surge um João Goulart tenso, preocupado com a própria imagem, com o seu destino e o dos companheiros da época do seu governo, ao mesmo tempo em que se surpreende com o clima de traições e futricas estabelecido em torno dos antigos colaboradores. Na verdade, a maior parte é composta de cartas cuja entrega ficava a cargo do ex-deputado José Gomes Talarico, a quem ele chamava carinhosamente de “o nosso pombo-correio”. Em alguns momentos Jango deixa transparecer o seu estado de perplexidade com a conspiração urdida em torno da sua queda, como uma carta do dia 27 de fevereiro, de um médico catedrático da Escola de Medicina da USP, Dr. A. C. Pacheco e Silva, para o general Ulhôa Cintra -, ativo participante da conspiração que o derrubou.
“Tenho boas notícias a dar-lhe quanto à publicação de um jornal contendo notícias breves e incisivas, escrito de forma sucinta, de molde a difundir os principais acontecimentos que ocorrem no país, no propósito de defender a Democracia em perigo. Segundo estou informado, os primeiros números serão distribuídos dentro de dez dias. Além disso, o jornal “O Estado de São Paulo” vai lançar uma edição nacional, com farta distribuição em todo o Brasil, com o mesmo propósito.”
O professor Jorge Chaloub destaca outra carta, esta do próprio Jango, em que os sentimentos de indignação e perplexidade estão presentes. Em 8 de junho de 1964, já deposto, escreveu ao “Ilustre Jornalista Danton Jobim, diretor do Diário Carioca –
Senhor Diretor:-
Jornais e rádios de Montevidéu amanheceram divulgando notícias procedentes do Rio de Janeiro, publicadas no Diário Carioca, que atribuem ao General Assis Brasil declarações altamente ofensivas à minha pessoa e ao governo a que ele serviu até o último momento, em posto da maior responsabilidade surpreendido com estou com o tom ofensivo das supostas declarações e em face da visível contradição entre elas e tudo o que sempre ouvi do General que tenho como um amigo, do adido militar na Argentina e do Chefe da Casa Militar, o qual em momento nenhum, opôs qualquer reserva à orientação do meu governo, tenho dificuldades em acreditar que sejam verdadeiras”. O texto de Jango, reflete nervosismo e até mesmo raiva, a julgar pelos rabiscos, (como os que aqui estão reproduzidos), e setas acrescentadas às margens.
Com os acontecimentos ainda muito recentes, o presidente deposto não fazia questão de esconder os sentimentos. Chaloub chama a atenção para o fato de ele ir buscar os assessores mais próximos, as figuras que eram simpáticas à causa “com a expectativa de que o governo dele fosse defendido, como na carta em que fala do general Assis Brasil. Ele esperava uma defesa do seu legado e da sua imagem posterior.” O professor aponta, ainda, que havia um projeto nesse movimento.
“A menção a outras figuras, como ao Tito Riffy, ao Talarico, como também ao Darcy Ribeiro, com aquele pensamento sofisticado, mostra que Jango estava montando um coletivo com a ideia de fazer um balanço, por um lado, do seu governo, mas que havia ali também um projeto. Algo a ser feito.”
Nesse “algo” Chaloub identifica a consolidação do trabalhismo. “Há um processo aqui, de balanço histórico de 1961 a 1964, mas há também no sumário uma ideologia trabalhista, que não se esgota no Jango. O sumário demonstra que havia lenha para queimar nesta ideologia. Depois vem uma defesa do governo como uma realização desta ideia trabalhista e eu destaco a parte cinco, do sumário, que são as tarefas que apontam para o futuro retomando o projeto”, detalha.
“Esse projeto retoma um pouco desse aspecto trabalhista, valorizando o segundo governo Vargas, como a criação da Petrobras, da Eletrobrás, a preocupação com os recursos naturais, que é uma característica tanto do Estado Novo quanto do Vargas eleito, mas também uma retomada das reformas de base como desdobramento desta política trabalhista.”
Entre os documentos que integram o conjunto está um estudo depreciativo sobre o desempenho da Educação no governo João Goulart. A análise crítica tem o nome de “Mário Calaza”, um simpatizante da ditadura que se iniciava, frequentador e colaborador do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), ninho do golpe. Os dados vêm acompanhados também de um sumário, levando a crer que havia planos para uma publicação a respeito. Por estar no mesmo conjunto, talvez tenha sido esse amontoado de críticas a um setor que lhe era caro, a motivação para organizar o “Livro Branco do Governo João Goulart”.
“A revolução encontrou o Ministério da Educação e Cultura (nome oficial na época) marcado por uma política educacional deformada em obra de agitação e subversão. Programa e planejamento eram ditados pela ação do improviso inspirado no sectarismo do extremismo ideológico, com o sacrifício dos compromissos e metas nacionais e internacionais seguramente definidos”.
Ainda no setor da Educação, Calaza apontava: “Foi tenaz o esforço para o saneamento, iniciado desde a primeira semana de abril de 1964, ainda na gestão do Ministro Gama e Silva, tanto revogando atos administrativos viciados, quanto intervindo em determinadas Universidades Federais, extinguindo Serviços e Campanhas de notórios propósitos subversivos, e instituindo Comissões Especiais para a promoção de levantamento de dados e revelação de fatos existentes nos diversos órgãos do Ministério, bem como a apresentação dos funcionários que, nos termos do Ato Institucional, eram incompatíveis com o serviço público, por atentados ao regime democrático ou lesão nos cofres públicos”.
As críticas contundentes iniciavam um arrazoado de 15 páginas e, no fecho, a descrição do plano para uma publicação onde estavam listados também outros setores a serem “visitados” por Calaza, tais como: a Igreja e o campo.
Lendo todas as cartas e apontamentos na sequência, o que se observa é um Jango irrequieto, irritado, magoado, como se tentando colocar o dedo nos buracos por onde a sua imagem fazia água. O presidente deposto usava da única munição disponível no momento: cartas despachadas pelo “pombo-correio”, Talarico (José Gomes Talarico, deputado petebista).
Também para as famílias do editor e proprietário da Civilização Brasileira, Ênio Silveira e do ex-presidente João Goulart, tanto a documentação, quanto a ideia de que houve um plano para este inventário sobre o seu governo soam como novidade. Além do plano da publicação, Ênio chega a mencionar conversas para fazer de Jango seu sócio nos negócios, que se expandiriam para uma “holding”. Isto, já nos idos de 1968, quando, com todos os bens bloqueados, o ex-presidente atravessava agudas dificuldades financeiras. Rui Silveira, o filho mais velho do editor, muito próximo ao pai e aos seus negócios, declarou que nunca ouviu nada sobre a transação ou tampouco sobre o livro que, na época, conforme salta das páginas dos documentos, era tratado sob o mais absoluto sigilo e por pessoas da estrita confiança de Jango.
“Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1968,
Meu caro presidente:
Recebo comovido e agradecido pela sua atenção, a carta de que foi portador nosso pombo-correio ítalo-brasileiro. Por ele, também, tive uma ideia aproximada dos sérios problemas que atualmente o afligem, quase todos decorrentes do prematuro e inesperado falecimento de seu amigo e procurador.
A realidade, mais depressa do que eu desejaria ou esperaria, confirma o acerto de minha posição: é indispensável, é urgente (Os grifos são do Ênio) que um advogado com experiência administrativa de bens (que seja de absoluta seriedade e discrição mas que não mantenha laços de qualquer intimidade com o cliente, para evitar a interpretação de interesses) se encarregue de botar ordens no seu patrimônio pessoal.(…) Perdoe-me abordar outra vez este assunto delicado, que não me diz respeito(…)
Para lhe dar uma ideia da sinceridade e da franqueza com que estou agindo, e da preocupação que me causam seus dissabores atuais, sobretudo depois do relato que me foi feito pelo nosso amigo comum, quero liberá-lo, pela presente, de qualquer compromisso conosco, relativamente à reestruturação da nossa firma numa empresa holding. Está claro que nada me agradará e honrará mais do que tê-lo ao nosso lado num empreendimento cultural como esse, que apenas ampliará e solidificará o muito (perdoe-me a imodéstia) que a Civilização Brasileira há 36 anos, e particularmente nos últimos seis, tem feito pelo Brasil e os brasileiros. Mas quero deixar bastante claro, igualmente, que nada me entristeceria mais, no momento, do que aumentar seus problemas ou trazer-lhe novas preocupações. (…)
Recebi, também pelo querido pombo-correio, longa e substanciosa carta do nosso reitor Xavante, sobre o Livro-Branco. Acho boas as ponderações que ele me faz e dou início às operações, certo de que o livro será menos um serviço ao seu nome e à sua pessoa do que ao próprio Brasil. Talvez ele venha até contribuir para que alguns milicos golpistas descubram, tardiamente, que deram uma punhalada ignóbil nas costas da Pátria. Dentro de mais alguns dias darei notícias a respeito, escrevendo diretamente ao professor, que lhe informará prontamente. (…)
Com um abraço amigo e o desejo de que o panorama de sua vida se desanuvie, aqui fica, as suas ordens, o Ênio da Silveira
Da fase “anuviada”, Denize Goulart se lembra bem. Os primeiros dias de exílio, quando tiveram que viver com o conteúdo “de uma malinha de mão”, arrecadado às pressas pela mãe, Maria Thereza Goulart, na fuga para Porto Alegre e depois para o Uruguai. “Naquela época não havia os limites e leis quanto a presentes a chefes de estado. A minha mãe ganhava joias, obras de arte, tudo isto ela deixou para trás. Sem contar os nossos cachorros, presos no canil da Granja do Torto. Isto para crianças como nós, era muito sério, foi uma grande perda afetiva”, lembra.
Das tratativas para o “Livro Branco”, porém, não tem conhecimento. “Eu me lembro das pessoas, dos amigos, e do meu pai sempre articulando a volta ao Brasil, mas todas as vezes que falava do assunto, dizia que não retornaria enquanto todos os brasileiros que se encontravam fora não pudessem retornar com ele.”
Este Jango “inconformado”, é identificado por Chaloub. “Em resumo, o que esta documentação nos traz é um Jango preocupado em permanecer como ator político e lutar politicamente. Ele e os seus pares estavam imbuídos de que não haveria um fechamento absoluto e que os militares em algum momento sairiam do poder. Certamente que ele achava haver terreno para uma disputa. O que salta desta documentação é esta figura inconformada e disposta a se reconstruir”.
Não é difícil perceber o motivo pelo qual o “Livro Branco de João Goulart” não passou de um projeto. Primeiro, era preciso colocar em ordem a vida pessoal e financeira, de pernas para o ar. Em seguida, debelar ameaças e futricas que pouco a pouco iam colocando no banco dos réus ou no exílio cada integrante da equipe. Em agosto de 1967 a notícia de que ele estaria escrevendo o livro vazou no Brasil, conforme trecho de carta enviada por Talarico, a pedido dele, ao então embaixador Walter Moreira Salles:
(…) “Estivemos para comparecer àquela manifestação, mas, confessamos que o constrangimento foi maior que a nossa tendência. Não desejamos chocar nenhum dos participantes pela condição de proscrito (referindo-se a Jango) Nesse ínterim saiu no “jornal do Brasil” uma nota fazendo alusão às “memórias” (?!…) que o Dr. João Goulart estaria redigindo, nas quais V. Ex. seria personagem de um dos capítulos. Causou-nos isso um impacto.”
E quando finalmente em 1968 a ideia ganhava corpo veio o AI-5, (que neste ano, em 13 de dezembro completa 50 anos), fechando o país e o cenário político-cultural por 10 anos, sob forte censura e medo.
O que se seguiu depois foi uma perseguição implacável a Jango durante todo o tempo, mesmo no exterior, a ponto de pouco antes de sua morte enviar os dois filhos para estudar em Londres, depois de receber ameaças contra a vida de toda a família. Denize se lembra de que a última vez que o viu e pôde abraçá-lo foi em outubro de 1976, quando ele esteve em Paris e deu um pulo à capital britânica para conhecer o neto, filho de João, Vicente, que acabara de nascer. Ela estava com 18 anos e João Vicente com 19. Dali a dois meses Jango morreu “oficialmente” de um ataque cardíaco, em sua fazenda, no município de Mercedes, na Argentina. Até o último minuto a família teve que negociar com os militares a entrada do corpo em solo brasileiro, onde foi enterrado, em São Borja (RS), sua terra natal.
Para a filha de Jango, documentações como esta virem a público “contribuem para que a figura do seu pai ganhe a sua real dimensão. “A de um político que tinha um projeto de país mais justo, voltado para os direitos dos trabalhadores, que agora vamos vendo serem destruídos. Eu gostaria de vê-lo nos livros didáticos como esse político, preocupado com a sua gente. Ele viveu pensando nisto”.
*Jornalista e colunista de O Cafezinho
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