Uma radiografia do fascismo, por Joseph Roth

“A TEIA DE ARANHA” (1923) DE JOSEPH ROTH:
UMA RADIOGRAFIA DO FASCISMO DE ATERRADORA ATUALIDADE

Por Mefistófeles de Albuquerque

para meu impertérrito amigo Eugênio José Guilherme de Aragão

Joseph Roth (1894-1939), judeu nascido nos confins da monarquia austro-húngara, não completou meio século de vida. Foi jornalista e escritor, um dos maiores prosadores de língua alemã da primeira metade do séc. XX. Converteu-se ao catolicismo. Ideologicamente confuso e nesse ponto semelhante ao monarquista Balzac, bateu-se pela restauração da dinastia de Habsburgo, na qual via a redenção para os males da Áustria. Isso não o impediu de ver com dolorosa clareza o advento do nazismo. O desespero levou-o ao álcool, mas não à cegueira. Roth bebeu até morrer aos 45 anos no exílio parisiense.

Seu primeiro romance, inconcluso, é “A teia de aranha”. Foi publicado em folhetim no “Jornal Operário” de Viena entre 7 de outubro e 6 de novembro de 1923 e redescoberto apenas em 1967. Traduzo dele a maior parte do cap. XVIII, que descreve “essa época, essas pessoas” na ótica de um personagem, o judeu oriental Benjamin Lenz, agente duplo e observador minucioso dos tempos. No Brasil de março de 2018, comentários são dispensáveis.

***

Em torno de Benjamin, os adolescentes definhavam e não amadureciam; os maduros odiavam-se; os bons e a bondade murchavam; lactentes secavam; anciãos eram esmagados nas ruas; mulheres vendiam seus corpos enfermos; mendigos jactavam-se com suas mazelas, ricos com suas cédulas de dinheiro; adolescentes maquiados ganhavam a vida nas ruas; operários iam furtivamente ao trabalho, em passos de sombras enfermiças, como defuntos de longa data, condenados a carregar a maldição da sua labuta na face da terra; outros embriagavam-se, uivavam em júbilo demente nas ruas, nos derradeiros regozijos antes do ocaso; ladrões despiam-se da sorrateira cautela e desfilavam com o butim; assaltantes tinham abandonado seus esconderijos e atuavam à luz do sol; quando um se estatelava no duro calçamento da rua, o outro arrancava-lhe as vestes ao passar; doenças varriam as casas dos pobres e pátios empoeirados, recobriam quartos mal-iluminados, entravam pele adentro; o dinheiro escorria pelos dedos dos saciados, dos donos do poder; o temor dos famintos cevava a crueldade dos poderosos; a fertilidade dos seus bens inflava seu orgulho; bebiam champanha em palácios inundados de luz; zuniam nos seus automóveis, dos negócios à diversão, da diversão aos negócios; pedestres morriam sob os pneus dos carros; motoristas vertiginosos não se detinham; coveiros entravam em greve; metalúrgicos entravam em greve; diante dos balcões com espelhos reluzentes, pescoços ressequidos esticavam-se, olhos esbugalhados tremeluziam; punhos débeis cerravam-se em bolsos rotos.

Pessoas superficiais arengavam nos parlamentos. Ministros desnudavam-se diante dos seus colaboradores e passavam a ser seus reféns. Promotores públicos exercitavam-se em pelotões de assalto. Juízes dissolviam assembléias. Pregadores nacionalistas itinerantes batiam de porta em porta e ofereciam chavões altissonantes. Judeus espertos contavam dinheiro. Judeus pobres apanhavam. Religiosos pregavam o assassinato. Sacerdotes brandiam cassetetes. Católicos eram suspeitos. Partidos perdiam seguidores. Línguas estrangeiras eram odiadas.

Cuspia-se em forasteiros. Abatia-se cães fiéis nos matadouros. Comia-se cavalos de taxistas [de táxis de tração animal]. Funcionários públicos estavam sentados atrás dos guichês, atrás das grades, inatingíveis, ao abrigo da fúria, sorriam e mandavam. Professores espancavam, movidos pela fome e fúria. Jornais mentiam sobre os horrores cometidos pelos inimigos. Oficiais amolavam seus sabres. Ginasianos atiravam. Universitários atiravam. Policiais atiravam. Crianças atiravam. A nação inteira atirava.

E Benjamin vivia entre rostos desfigurados, membros desarticulados, lombos curvados, lombos surrados, punhos cerrados, pistolas fumegantes, mães estupradas, mendigos leprosos, patriotas alcoolizados, canecões espumantes de chope, esporas tilintantes, operários varados por balas, cadáveres exangues, túmulos abertos, valas cobertas repletas de corpos assassinados, cofres arrombados, cassetetes de ferro, espadas de som oco, comendas retumbantes, generais desfilantes, capacetes reluzentes.

***

O diagnóstico horripilante de uma sociedade no redemoinho da anomia préfascista foi escrito por um jornalista escritor há quase um século. Parece ter sido escrito ontem.

E você, “hipócrita leitor, meu irmão, meu semelhante” (Baudelaire), você, eleitor, professor, funcionário público, proprietário, trabalhador, despossuído, juiz, ministro do STF, procurador da República, policial, opressor, oprimido: vai deixar por isso mesmo? Vai amarelar? Vai fazer de conta que não é com você, mas apenas com o Lula, apenas com a democracia, apenas com o Estado de Direito?

Seja como for, bom proveito!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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