Tentemos uma crítica diferente da série do Netflix que estreou há alguns dias, e que, naturalmente, vem provocando polêmicas por não esconder o seu objetivo, de ser mais uma, entre tantas!, tentativas de chancelar a narrativa lavajateira.
Neste caso, porém, pode ser que se dê o efeito contrário. O choque entre a fantasia e a realidade cria um desconforto que pode chamar a atenção do espectador para esta última, de maneira que, no afã de apresentar mais uma narrativa lavajateira, o diretor José Padilha atiçará a curiosidade do público para ouvir um contraponto.
Considerando a reação de parte do público, parece que é exatamente o que está acontecendo.
Sim, porque a história contada por Padilha é uma versão puramente oficialesca, chapa-branca, não apenas da Lava Jato, mas do próprio país. O que Padilha nos conta é o que vemos, diariamente, em todas as mídias, desde o início da operação.
É como uma série sobre o Vaticano escrita por um cardeal fiel à Igreja Católica: não há, na história, nenhuma contradição, nenhuma brecha, nenhuma complexidade.
Ou então é como se um cineasta americano resolvesse fazer um filme sobre a guerra do Vietnam baseado exclusivamente no ponto-de-vista do Pentágono. É uma visão simplista, mentirosa e autoritária.
Mas eu acho que as campanhas de cancelamento de assinatura indicam uma solução ingênua – e ineficaz – para esse tipo de problema. O máximo que podem causar é uma momentânea irritação no filho de 13 anos, que usava a assinatura familiar da Netflix para assistir Stranger Things.
Dias atrás, tentei ver a série, naquela postura republicana de “ver para criticar”, mas parei logo, enjoado e com sono, diante da constatação que estava diante de mais um xarope pró-autoridade, sem humor e sem verossimilhança. Ontem, tentei de novo, mas acabei me deparando com uma série sobre a história do jazz, que acabou me absorvendo por horas.
Pelos relatos que já li sobre a série, todavia, é provável que eu não tenha mesmo estômago, ou saco, para assisti-la.
Permita-me, todavia, fazer alguns comentários gerais de ordem estética, baseado na minha experiência como telespectador e estudioso de séries e filmes, em especial os políticos.
Quem já estudou com atenção o roteiro de séries políticas de alto nível, como House of Cards, The Americans e Homeland, ou já parou para pensar sobre a história de qualquer série ou filme político realmente bom, sabe que uma das fórmulas mais importantes é justamente não enveredar pelo maniqueísmo barato.
Os pontos altos de The Americans, que conta a história de um casal de espiões soviéticos que finge ser uma família americana feliz em Washington, aparecem justamente nos momentos em que os personagens (ao mesmo tempo protagonistas e antagonistas da história) são descritos com dignidade. Ao evitar os clichês baratos de apresentar russos como vilões rústicos e maus, a série ganha uma dimensão mais humana e universal.
A dramaturgia tem sistemas de autodefesa naturais contra a tentativa do pensamento político de manipular e distorcer a verossimilhança na ficção, que tem suas próprias regras. A ficção tem liberdade para distorcer à vontade a realidade na qual se baseia, mas a verossimilhança impõe limites às vezes ainda mais rígidos do que a realidade. Há licença poética para se fazer um filme sobre um Hitler que ama os judeus, mas todos acharão ridículo.
O principal erro do “realismo socialista” foi submeter a estética aos objetivos políticos do partido, o que acabou por matar a própria criatividade. O Mecanismo de Padilha é uma experiência de “realismo socialista” às avessas: seu objetivo é legitimar a narrativa oficial, que hoje não é mais imposta por um “governo autoritário”, mas pelo “mercado”, ou pela “grande mídia”, que se tornou um Leviatã muito mais perigoso e violento do que qualquer Estado.
Sendo a arte um instrumento de catarse, é muito difícil construir uma narrativa atraente em que a autoridade seja tratada com tanta deferência e pusilanimidade como na série de Padilha. Para que a empatia do telespectador se reúna em torno da autoridade é preciso que o “inimigo” não admita contradições: uma catástrofe da natureza, uma invasão alienígena, um ataque de nazistas… Tentar associar políticos como Lula e Dilma a vilões de história em quadrinho soa simplesmente como mau caratismo. Não cola.
A tendência da dramaturgia contemporânea, aliás, tem sido oposta às fórmulas oficialescas de Padilha: o superpoder dos Estados dito democráticos, os quais, ao contrário das promessas neoliberais, nunca foram tão violentos e invasivos (a lorota do Estado mínimo serviu para reduzir o número de professores e médicos, mas apenas para substituí-los por juízes, procuradores, militares e policiais), tem gerado uma nova mitologia na ficção, de resistência civil ao Estado e à autoridade. De um lado, o Estado, as Máquinas, a Autoridade, a Mídia, que concentram armas, dinheiro, poder político e simbólico; de outro, grupos humanos esparsos, vulneráveis, mas insubmissos e determinados a manter, até o fim, sua luta de resistência.
Diante do marketing massacrante, O Mecanismo poderá obter um bom público, mas a série vem marcada por um autoritarismo simbólico demasiado evidente. É uma série “Deles”, produzida por e para “Eles”. Quem são “Eles”? Ora, a mesma elite rentista que controla o país desde sempre, e que também, desde sempre, usou o poder simbólico de seus jornais, novelas, livros, programas de rádio, tudo o mais que o dinheiro pode comprar, para corroborar e legitimar a sua dominação.
Há uma outra história, muito mais emocionante, por trás do Mecanismo, que a engloba, e a transforma em mero elemento de uma trama maior. É como se estivéssemos, desde já, em nossa imaginação, escrevendo um “Mecanismo do Mecanismo”, ou seja, uma outra história, uma outra série, em que um diretor brasileiro, embriagado de ideias fascistoides sobre política, ideias estas que são muito uteis aos interesses do rentismo, da Globo, do imperialismo, é pago regiamente para escrever mais uma versão “oficial” da Lava Jato, uma versão ainda mais “oficial” do que a história oficial, já que, conforme relatos, as distorções narrativas se dão sempre no sentido de corroborar a tese fundamental por trás da história, de que os políticos são os vilões e os policiais e donos de mídia, os mocinhos.
A consciência desse ataque resulta, portanto, num efeito contrário ao desejado pelos produtores do Mecanismo: a nossa resistência ganha densidade crítica, unifica-se, e rouba as próprias armas semióticas usadas contra ela, para usá-las contra seus próprios opressores.
Pensando bem, essa não é a história da luta de classes, desde seus primórdios? Uma história contra imperadores, reis, czares, e suas narrativas de dominação, seus “Mecanismos”, com os quais tentam submeter os povos?
Ou antes, não é uma história da própria cultura? A história, talvez, da própria arte?
Esta reação simbólica e política à opressão, que caracteriza a história da cultura moderna, não foi, desde sempre, um contra-ataque narrativo à eterna tentativa, por parte dos poderosos de todos os tempos, de nos escravizar mentalmente?
Quem são os “poderosos”, a força invisível, por trás do Mecanismo? Serão mesmo os políticos caricaturizados, vilanizados, simplificados, desumanizados, ou as forças sinistras do grande capital internacional, multinacionais do petróleo, concorrentes estrangeiras de nossas empresas de construção civil, além dos interesses políticos do governo americano?
Afinal, qual é a lição do Mecanismo? Que devemos nos submeter à polícia federal, ao MPF, à Justiça, à mídia, ou seja, a todas as instâncias autoritárias do Estado?
Se José Padilha está ao lado do autoritarismo, se é um mero escriba das narrativas patrocinadas pelos bilhões do imperialismo, nós, do campo popular, estamos ao lado das forças rebeldes da democracia e da resistência ao golpe.
Pensando nisso, tive uma ideia: escrever também uma série, como forma de ironizar e criar um contraponto ao trabalho de José Padilha.
Preparem-se, portanto, que vem aí a nova série do Cafezinho: A Resistência. Abaixo, uma apresentação breve.
Título: A resistência
Sinopse (ainda em aberto): Um diretor de cinema, tendo acabado de lançar uma série chapa-branca sobre a Lava Jato, tem uma crise de consciência sobre o trabalho sujo realizado. Chega à conclusão que ele mesmo é corrupto. O produtor da série, grande amigo desse diretor, é investigado e preso, num processo pouco transparente. Em seguida, um primo do diretor, blogueiro político de esquerda, é também preso, igualmente num processo obscuro, sem provas. O país vive momentos políticos sombrios, autoritários. Toda semana, a PF faz uma grande operação, nem sempre baseada em investigações sérias. Professores, intelectuais, empresários, são presos ou conduzidos coercitivamente num frequência cada vez mais alarmante. Ao mesmo tempo, o governo baixa medidas para reduzir salários e direitos sociais. O país se empobrece, aumentam os índices de criminalidade e a direita prega que o Estado se militarize e promova execuções em massa como forma de resolver o problema da segurança pública. O governo faz intervenção militar em vários estados. Surgem grupos de extermínio de extrema direita, um dos quais executa uma vereadora de um partido de esquerda. O mesmo grupo fascista, talvez de maneira confusa, sequestra o diretor da série, que, por ignorância, consideram “esquerdista”, porque não teria vilanizado, na série, o presidente Lula da forma como eles queriam. Um grupo de intelectuais, estudantes e juristas organizam um movimento de resistência contra o avanço do fascismo, e promovem manifestações cada vez maiores nas ruas, apesar dos riscos crescentes.
Se quiser ajudar o blogueiro a ir adiante com a ideia, você pode fazer uma assinatura do blog ou qualquer outra forma de contribuição, clicando em nossa página de Crowdfunding.