Por Bajonas Teixeira
A morte de Marielle Franco não será em vão. Muito menos satisfará os objetivos dos que a executaram. Seu assassinato regou com sangue o terreno da história de onde outras mil Marielles vão florescer para continuar o que ela semeou. Não foi, como gostariam, a morte de uma mulher negra, pobre e periférica, mas o nascimento, para a política, de milhares de mulheres negras, pobres e periféricas. E todas armadas com a sua voz, que não silenciará. Não foi à-toa que sua luta começou quando uma amiga morreu, vítima de bala perdida, em um dos incontáveis tiroteios entre a polícia e o tráfico na Maré. Ela incorporou essa vítima, e a manteve viva e mais forte através da sua voz. E assim acontecerá com Marielle.
E com muito mais força, porque ela sabia que corria riscos, e se manteve firme até o último instante na sua missão de representante. E isso não em um lugar qualquer, mas numa cidade onde o inferno cospe fogo e labaredas sobre as mais de mil favelas – em 2010 já eram 1.025 – que pontuam as suas margens.
E onde é que a violência opera absoluta? A filósofa Hannah Arendt nos responde: é nos campos de concentração dos regimes totalitários, onde não só as leis, “mas tudo e todos devem quedar em silêncio”. Para isso, para esse serviço, é que servem os silenciadores. Na política, ao contrário, o teor de violência tem que abrandar, porque a voz e a fala estão à postos para quebrar o silêncio. (Arendt, H., Da revolução, p. 44)
Quem assassina uma representante da democracia, a quinta mais votada da cidade, quem mata 46 mil votos, como disse sua filha, quer mais do que tirar uma vida, quer aniquilar um projeto que sente como ameaça. O pesadelo de assassinatos, chacinas, opressões, barbaridades praticados por forças do estado nas periferias e nas favelas não é um fato da natureza, uma lei irreversível, mas um dispositivo social construído há séculos. Antes, essa violência se abatia contra os quilombos nos ermos da cidade, hoje, e esse hoje já dura uma eternidade, ela cai sobre as favelas.
Por que as forças do estado martirizam essas populações? Por que elas devem ser mantidas como populações excluídas, confinadas e barbarizadas, como uma casta maldita, em território estrangeiro, para que se reproduza o conjunto das relações sociais em que “o país branco” quer se reconhecer. A violência policial serve para produzir apátridas, estrangeiros na própria casa, sem direitos, embora essa seja a sua cidade e esse seja o seu país. Negar a nacionalidade, a lei, os direitos humanos, as garantias fundamentais a essas populações é reproduzir o legado da escravidão, o estatuto do escravo privado de tudo que o escravizador possa tirar dele, até a vida. Ou, principalmente a vida. É ao neoescravismo que servem as forças de repressão.
Quando retiraram a vida da Marielle era exatamente isso que queriam. Reeditar o espectro do escravo, sem voz, sem política, sem insurgência. Relançar a favela na terra de ninguém, cortar o caminho que leva dela até a cidade, até a Câmara dos Vereadores, até à ousadia de fazer leis e redigir projetos. Especialmente de mobilizar para “mover as estruturas”. Um país da morte que hoje, com o golpe, quer recuperar pela guerra sanguinária a paz dos cemitérios de uma sonhada bucólica ditadura.
A periferia deve continuar na periferia. Essa é a lei básica. Os mudos devem continuar mudos, os silenciosos devem continuar calados, os invisíveis devem continuar na obscuridade. Ninguém deve dar voz a esses mortos in sursis, a esses cadáveres de sorte, ainda não enterrados, ninguém deve profanar os princípios sagrados da pátria, dando voz, atitude, brilho e dignidade a esses condenados da terra.
E o fundamento de tudo isso é semelhante ao que Hannah Arendt percebia em relação aos judeus: a sociedade desintegrada deve se cristalizar ideologicamente em torno de um massacre (Ver As origens do totalitarismo). Numa sociedade e num estado assentados sobre a rapina dos recursos públicos, nutrido pelas relações econômicas sem limites para a exploração, montando todo tipo de parceria espúria entre os “poderes” e os interesses privados (veja-se os grupos de extermínio e seus vínculos com os patrões das periferias), a figura do bandido, e da população bandida, é peça essencial. Só criando esses fantasmas com uma violência férrea e implacável, pode a ficção ganhar realidade e, assim, ocultar aquilo que todo mundo sabe: que é na outra ponta, na Zona Sul e não na favela, na Avenida Atlântica e não na Maré, que está o território dominado do crime.
O genocídio brasileiro, com meio milhão de homicídios a cada década, é a prova contundente disso tudo.
A execução de Marielle Franco foi calculada para atingir alguns objetivos, e isso não é coisa de milícia. Em primeiro lugar, e rigorosamente dentro do clima potencializado pela intervenção, de um suposto “descontrole da criminalidade” no Rio, o assassinato foi calibrado para desmoralizar o exército e a intervenção. E, contudo, a vítima escolhida, foi uma que era crítica feroz da intervenção, de forma que o envio da sua cabeça em uma bandeja para os interventores pudesse soar como uma ironia brincalhona, quase que uma afronta cordial. Em segundo lugar, calando uma voz de contundência e rigor inusitados saída da favela, como já dissemos acima, se buscou recolocar as coisas nos eixos, a periferia na periferia, instaurando uma regressão de mais de dez anos (o tempo de militância da Marielle) na maturidade política e na história das periferias do Rio. Em terceiro lugar, se quis satisfazer, locupletar, todos os apetites de maldade e de vingança contra alguém que somava tantos atributos simbólicos sobre os quais o fascismo lança seu ódio: mulher, periférica, militante de esquerda, lésbica, brilhante, combativa.
Em quarto lugar, se cometeu um atentado, na pessoa de Marielle Franco, contra a democracia, no holocausto de 46 mil votos. Em quinto lugar, o assassinato, por sua ousadia bem meditada, cuidadosamente calculada, destinou-se a infundir terror de massa, um elemento novo, na cena do crime, isto é, na cena da segurança do Rio. (Mas ninguém cogita em aplicar aqui a Lei do Terrorismo, LEI Nº 13.260, DE 16 DE MARÇO DE 2016)
O que esse exímio planejador não contava é que a política do assassinato só cabe, só é eficaz, no submundo confinado em que suas forças estão habituadas a se impor à bala. Fora daí, a política pode falar mais alto. E o fato de o Brasil inteiro ter se levantado em solidariedade a Marielle Franco mostra o fracasso dos cálculos do assassino. Não importa, é claro, se algum dia o executor que puxou o gatilho será apanhado. Pode até mesmo já ter sido eliminado. O importante é que o efeito de terror despertou uma onda de indignação e resistência. Essa já é a vitória da vida contra a morte.
Por trás disso tudo, levanta a cabeça o espectro da boçalidade sem limites. Essa cidade que precisa do turismo porque quase não tem mais nada, dá ao mundo o espetáculo do pavor e da violência ano após ano. Não há verão em que a truculência não promova as correrias na Zona Sul, simplesmente porque não querem que adolescentes negros dos confins da cidade tomem um ônibus e sejam visto na praia. Para o turista, essa tolice é dispensável, porque ele está bem informado de que a maioria da população do Rio é negra e parda. Mas para o brasileiro inseguro da sua cor ‘branca’, o exercício dessa perseguição anual tem serventia, traz prazer e conforta.
Enquanto isso ocorre, uma cidade com uma enorme orla marítima, conhecida no mundo inteiro por sua incomparável beleza natural, fica em 88ª lugar entre as cidades do mundo mais visitadas, recebendo, mesmo com um crescimento de 12,6% no turismo, devido aos Jogos Olímpicos, apenas 2.3 milhões de turistas em 2016. Compare-se com Paris, que recebeu 14.4 milhões, Londres, que teve 19.2 milhões e Hong Kong, com 26.5 milhões.
Enfim, a bestialidade da violência, que é um fato político antes de tudo, serve de vitrine para debilitar o turismo, e, junto com ele, muitas outras atividades econômicas que viriam junto. O efeito disso é a ampliação da miséria pelo desemprego, o subemprego e a favelização. O que deságua nos verdadeiros campos de concentração desterritorializados, apátridas, sem justiça nem lei, em que todas as forças organizadas da violência, com ou sem o monopólio do estado, podem dar livre curso às suas iras alucinadas.
Era contra isso que Marielle lutava, sem carro blindado e sem ignorar onde pisava, afinal seu trabalho de mestrado versava exatamente sobre as orgias de violência institucional nas favelas – UPP – A favela reduzida a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Heróis são os que vivem para a luta e, sobretudo, os que morrem pela luta. Da favela da Maré até a universidade, da graduação ao mestrado, da massa anônima até a posição de quinta maior votação para a Câmara da cidade do Rio de Janeiro. O intenso brilho do heroísmo de Marielle iluminará as gerações de Marielles que estão à caminho. Nenhum silêncio se fará ouvir, muito pelo contrário. Sua voz não se calará tão cedo.