Denise Assis*
Para os que não se lembram, no dia 21 de fevereiro de 2017, Michel, acompanhado do ministro Raul Jungmann e do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Etchegoyen, além do comandante da Marinha, almirante Bacellar, esteve no Quartel-General do Exército, Forte Caxias – mais conhecido como Forte Apache – prestigiando a 310ª edição da Reunião do Alto-Comando do Exército Brasileiro.
Na ocasião, ele recebeu, das mãos do comandante, o general Villas Boas, um bastão de comando, simbolizando o comando supremo das Forças Armadas, atribuição constitucional do Presidente da República.
“O artefato” – segundo definição de um site de militares (montedo.blogspot.com.br) que reúne casos, memórias e notícias da caserna – “é confeccionado em pau-brasil”, sendo “um dos símbolos perenes do posto de Oficial-General juntamente com a Espada e a Carta-Patente de Oficial-General. É um símbolo de autoridade e insígnia de comando que vem de tempos remotos. Tinham-no os reis, assim como os grandes capitães. Em campanha, as batalhas só se iniciavam quando o monarca ou o general-em-chefe fazia o sinal com o bastão. No Exército, é de posse exclusiva dos generais da ativa e seu uso é obrigatório para aqueles que estejam em função de comando”.
Conforme a praxe, Michel discursou em agradecimento. Suas palavras publicadas na página oficial do Exército foram as seguintes:
“Ao receber esse bastão de comando, eu tenho uma responsabilidade maior. Ao dizer ‘muito obrigado’ aos senhores, digo no sentido literal. Com essa simbologia que me foi entregue, eu me sinto mais obrigado a cumprir, adequadamente, as minhas funções, como o fazem permanentemente as Forças Armadas do País”, declarou.
Numa interpretação posterior aos fatos de sexta-feira (16/02), dia do anúncio, pelo Planalto, de que haveria a intervenção militar no Rio de Janeiro, o que de fato Michel quis dizer foi: “de hoje em diante eu me sinto como um de vocês e o chefe de todos vocês”. Naquele momento, no calor do pós golpe, o recado do Exército para ele, por sua vez, foi: “embora a sua chegada à cadeira, tenha se dado por linhas tortas, nós o estamos reconhecendo como o nosso comandante-em-chefe”.
Para os conhecedores das regras e ortodoxias militares, a cerimônia teve peso e simbologia fortes. O Exército estava, naquele ato de entrega do bastão, lhe dando aval.
Vida que segue, Michel não emplacou. Pelo contrário. Seu índice de rejeição em outubro bateu em quase 80% e sua margem de aprovação travou na casa de um dígito.
Eis que um ano e alguns dias depois da cerimônia, chegou o carnaval. A impopularidade de Michel desfilou por uma avenida repleta de protestos contra a sua permanência num cargo que, na verdade, nunca lhe pertenceu, de fato. Ademais, correndo em paralelo, os fatos da vida política não o deixavam esquecer que ele perdia em todos os quesitos. A harmonia com o presidente da Câmara desandava; o ritmo da propalada recuperação da economia não era sentido nos lares dos desempregados; as alegorias saudavam o candidato adversário para 2018 que, nas pesquisas de apuração, digo, de opinião, só mostravam Lula, na frente, enquanto Michel era chamado pelo povo de “Vampirão”.
A farsa do seu golpe era cantada em samba a plenos pulmões e traduzida, não só para todo o país, como para todo o planeta onde TVs estivessem ligadas no “Carnaval Globeleza”.
Inconformado, Michel não permitiu o desfile do “Vampirão”, com a faixa de “Vampirão”. Dono do bastão, usou o artefato tal com o Harry Potter. Fez desaparecer a faixa que ornava o personagem que o identificava, na avenida. Enquanto isto, a TV tratava de exibir a violência carioca. A mesma que há anos explodiu no estado. Só não ia para as telas com toda a crueza porque até então não convinha.
Ao provar o poder do bastão fazendo desaparecer a faixa “presidencial” na avenida, Michel descobriu que podia mais que isto. Era a hora de fazer valer o seu poder também sobre as tropas. Afinal, não foi para isto que lhe concederam o mimo? Sem pestanejar, ou comunicar a sua decisão ao Comandante do Exército, o mesmo que lhe passou o bastão, fez cair sobre a cidade/sede dos protestos zombeteiros a mão pesada da intervenção.
Com isto, jogou todas as fichas numa cartada decisiva de: “ou vai ou racha”. Ir, até agora, ele não foi a lugar nenhum do nosso interesse. Rachar, ele já rachou. A opinião nas fileiras militares. Ficou evidente a posição contrária do comandante Vilas Boas com relação à medida. Também o interventor nomeado por ele, o general Walter Bravo Neto, chegou cauteloso, sem muita certeza das motivações. “Muita mídia”, deixou escapar. Em palestras ano passado, já havia se manifestado contra inserções militares na vida urbana.
Enquanto isto, no palácio do Planalto, ao lado do ilegítimo, o general Sergio Etchegoyen cresceu em entusiasmo e atribuições. Cotado para assumir o Ministério Extraordinário de Segurança pública, a mais nova invenção de Michel, não esconde os seus aplausos de apoio absoluto a tudo o que está sendo feito.
Sabemos que tradicionalmente as fileiras do Exército enfrentam disputas entre lideranças, egos inflados e disparidades ideológicas. Uma das mais gritantes foi entre o ex-presidente Ernesto Geisel e o general de linha duríssima, Sylvio Frota, que tramava a sua queda. Tal cabo-de-guerra acabou levando Geisel a tirá-lo do comando do 2º Exército.
A exoneração de Sylvio Frota ocorreu em 12 de outubro de 1977. Eram tempos decisivos para a abertura de um regime já claudicante e a intensificação das movimentações pela anistia. No depoimento para Maria Celina D’Áraujo e Celso Castro (CPDOC), Geisel relata as disputas nas tropas:
“Quando verifiquei que tinha a maioria dos generais comigo, pelo menos os generais mais graduados, senti que era a hora de afastá-lo. Senti também que não podia demorar mais porque o problema ia ficar mais difícil, com as adesões que ele iria ter. Não pude tirá-lo antes porque eu não sabia, ou não tinha ainda a certeza, de que o Exército ficaria comigo. Com a avaliação que fiz, foi aquele o momento que achei mais adequado.”
Em seu livro “A Política nos Quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira”, a historiadora francesa, Maud Chirio, reproduz um discurso do ex-ministro do Exército, Orlando Geisel (irmão do ex-presidente), feito em 1969, com o objetivo de “conciliar exigência disciplinar e ação política dos militares”.
“Queiramos ou não, estamos metidos na política. O general muitas vezes é obrigado a aparentar que não está metido em coisa alguma, que cuida apenas da parte profissional, mas o general, evidentemente, tem que se meter na parte política; mete-se pelos bastidores…Capitão, major, coronel e o próprio general de brigada devem deixar de fazer política; política é só nos altos escalões. Comandante do Exército faz política”, determinou Orlando.
Seguindo o combinado, o comandante Vilas Boas fez política em fevereiro de 2017. Hoje, talvez esteja arrependido. Michel segue usando o seu bastão e, tal qual Harry Potter, é possível que queira usá-lo, num gesto de mágica, para se manter lá, onde ninguém o colocou. *Jornalista e colunista de O Cafezinho
Referências:
http://montedo.blogspot.com.br/2017/02/michel-temer-o-bastao-de-comando-e-uma.html,
CHIRIO Maud, “A política nos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira”; Rio de Janeiro, 2012; Editora Zahar