Por Marcos Ribeiro Ferreira
A conhecida frase “só Freud explica” pode não se aplicar ao caso do Palloci. Nesse caso vale a pena buscar explicação em George Orwell, no seu livro 1984.
Na ditadura imaginada por Orwell*, quase todos nós colocamos nossa atenção no engenhoso aparato tecnológico que ele chamou de tele tela. Um aparelho pelo qual cada cidadão podia ser vigiado pelo Grande Irmão e receber ordens personalizadas. Divulga-se quase sempre que o foco do autor seria a vigilância permanente sobre as pessoas.
Mas Orwell focou muito mais nos processos psicológicos envolvidos na manipulação de seres humanos do que na possibilidade de uma observação contínua sobre os fazeres das pessoas. A vigilância seria o mecanismo de identificação de sujeitos a serem molestados, mas sozinha, não produziria os fins pretendidos pelo Grande Irmão.
Vale a pena considerar que a atribuição de sentido a qualquer evento ocorra sempre por meio de um alinhamento entre passado, presente e futuro. Ninguém atribui sentido a algo, sem que estabeleça conexões com uma compreensão de como isso ocorria no passado, somada a uma visão prospectiva de como deverá ocorrer no futuro.
Para o Grande Irmão, a opressão no presente tinha insuficiente serventia, se descontextualizada. Aí é que ganha sentido o mote que conduzia as ações do Ministério da Verdade (que consiste em uma verdadeira pérola orwelliana): “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. A opressão no presente tem o sentido de definir como o passado será considerado e, com isso, delimitar os possíveis desenhos de futuro (desejados por quem impõe uma visão do passado).
Daí que o procedimento mais importante utilizado pela ditadura imaginada por Orwell parece ter a ver mais com a Psicologia do que com as tecnologias de comunicação e vigilância. A libertação do personagem alvo da repressão (Winston Smith) somente acontece quando ele pede que aquela mesma ameaça, que para ele era insuportável, fosse imposta à mulher que ele amava. A ditadura imaginada por Orwell tinha o objetivo claro de levar o próprio Winston a romper, renegar, destruir os vínculos que poderiam servir de raiz para alguma disposição de escapar dos controles impostos a que estavam submetidos.
Na lógica do aparato estatal imaginado por Orwell o resultado desse rompimento seria maior do que a interrupção do relacionamento com a namorada. O processo de destruição pessoal, iniciado na negação de si ao trair seu afeto pela mulher amada (vale dizer, da negação de si mesmo), somente se completa quando ele chega a amar quem lhe impusera a tortura.
A manipulação desse processo psicológico pela ditadura imaginada por Orwell é o cerne, é a base do controle sobre mentes e corações. Não bastaria impedir que o casal se encontrasse. Não bastaria fazer com que ambos desistissem da relação amorosa. Não bastaria convence-los a se comportarem como os demais membros da comunidade. Na lógica do sistema organizado em torno ao Grande Irmão era fundamental fazer com que cada um deles aniquilasse em si mesmo a possibilidade de qualquer hipótese de rebeldia contra aquele sistema.
* Só para ajudar a lembrar: no modo como eu me lembro do livro, Winston Smith se apaixona por sua namorada em um país onde as relações amorosas estão proibidas. Apesar de saberem da tele tela (dispositivo presente em todos os cômodos) eles são levados a crer que conseguiram escapar da vigilância e que estavam até contando com apoio de agentes do aparelho do estado que estariam “livres” do controle imposto a todos os cidadãos. Vivem um romance impensável para seus dias.
Presos, são separados e recebem um tratamento que culminava em frequentar uma local onde cada pessoa encontrava aquilo que mais a atemorizava. No caso de fulano, a pior ameaça era ser atacado por ratazanas. Para ele, no “quarto 101” havia umas gaiolas que se ajustavam ao redor de sua cabeça onde seu rosto ficava separado das ratazanas por uma portinhola que podia ser aberta a qualquer momento, por algum de seus torturadores. Essa ameaça persiste até que ele diga: “ponham essa gaiola nela” (isto é, na pessoa amada). De imediato a tortura é interrompida e a seguir ele é liberado.
Nesse contexto, o final do livro consistir em uma situação onde Winston chora afetuosamente ao olhar para uma imagem do Grande Irmão não é um simples detalhe.
Doutor Marcos Ribeiro Ferreira
Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Brasília (1984) e doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997).