Direito ao esquecimento e à omissão
Por Adriano Diogo, Audálio Dantas, Camilo Vannuchi, Fermino Fechio Filho e Tereza Lajolo*
A política de direitos humanos praticada em São Paulo pela gestão João Doria parece mimetizar um verso de Caetano Veloso: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. Essa percepção foi reforçada recentemente após a publicação do decreto nº 58.079/2018, que “reorganizou” a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.
Como um presente de aniversário às avessas, o decreto foi publicado no Diário Oficial em 25 de janeiro. São Paulo merecia mais, sobretudo no que diz respeito à defesa do direito à memória e à verdade.
Uma breve retrospectiva das ações da pasta, criada por Fernando Haddad em 1º de janeiro de 2013, coloca em evidência a ruína à qual nos referimos no início. Seus escombros são visíveis na estrutura, no orçamento e no conteúdo. Comecemos pela estrutura.
Entre 2013 e 2016, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania esteve organizada em 13 coordenações: juventude, idosos, migrantes, LGBT, população em situação de rua, direito à memória e à verdade e outras sete. Igualdade racial e políticas para mulheres tinham suas próprias secretarias. No primeiro ano da gestão Doria, houve a fusão das três pastas. As 13 coordenações começaram a ser enxugadas até que, no início do segundo ano, perderam status e foram substituídas por nove departamentos, vinculados a uma única coordenação de “Promoção e Defesa de Direitos Humanos”.
A dotação orçamentária acompanhou os cortes na estrutura. O orçamento de 2017, sancionado em dezembro de 2016, reservava R$ 110 milhões para a área, considerando-se os orçamentos das três secretarias fundidas por Doria. Desses R$ 110 milhões, o novo prefeito empenhou R$ 39 milhões e liquidou apenas R$ 26 milhões. Três quartos do orçamento foram congelados em 2017. Para 2018, foram orçados R$ 85,4 milhões, 22% a menos do que no ano passado. A expectativa é de que a maior parte seja novamente congelada.
Nome de uma das 13 coordenações criadas na gestão anterior, Direito à Memória e à Verdade não aparece no título de nenhum dos novos departamentos da SMDHC. O próprio cargo de coordenador de Direito à Memória e à Verdade foi extinto. Tampouco consta no decreto qualquer projeto específico sobre o tema. Apenas três incisos, listados entre as atribuições do Departamento de Educação em Direitos Humanos, têm a ver com memória e verdade: “VIII – implementar ações e políticas que promovam a cultura de memória e verdade e a reparação simbólica às vítimas de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar; IX – apoiar a identificação de mortos e desaparecidos políticos no âmbito do Município; e X – acompanhar a implementação das recomendações do relatório final da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo.”
Autores do referido relatório, torcemos pela efetiva implementação das 36 recomendações propostas em dezembro de 2016. No entanto, entendemos que essa deferência feita no decreto não basta. O direito à memória e à verdade deve ser percebido como algo transformador para honrar dívidas históricas e corrigir a versão oficial dos fatos. Nesse sentido, o empenho das autoridades é fundamental.
O balanço das realizações no âmbito do direito à memória e à verdade na atual gestão revela que as duas titulares da pasta em 2017, Patrícia Bezerra (até abril) e Eloísa Arruda, empenharam-se em dar continuidade a compromissos firmados nos anos anteriores. Nesse sentido, a hoje extinta Coordenação de Direito à Memória e à Verdade conseguiu prorrogar o convênio com a equipe que investiga as ossadas de Perus; organizou a segunda edição do Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva (entregue, desta vez, sem a presença do prefeito); trocou as placas da Praça General Milton Tavares de Souza, rebatizada em 2017 como Praça Paulo Sella Neto (Tin Tin); fixou placas de memória (concebidas no ano anterior) em dois cemitérios municipais, Dom Bosco e Campo Grande, onde foram enterradas vítimas da repressão (a inauguração de uma terceira placa, prevista para o cemitério de Vila Formosa, foi cancelada sem explicações); imprimiu 4 mil exemplares de um livro sobre lugares de memória, também elaborado em 2017.
Para além dessas ações, o que se viu foram omissões e retrocessos significativos, que nos permitem inferir o descaso do prefeito em relação ao direito à memória e à verdade. Vale lembrar que a primeira troca no comando da Secretaria se deu em abril do ano passado, quando Patrícia Bezerra deixou o cargo em meio à truculência com que o governo Doria investiu contra a população em situação de rua e dependentes químicos na região da Luz.
Eloísa Arruda chegou em seguida. Meses depois, não evitou que a Ponte das Bandeiras fosse rebatizada em homenagem a Romeu Tuma, contrariando lei municipal que veta homenagens em logradouros a pessoas envolvidas em violações de direitos humanos. Entre 1966 e 1983, Tuma foi diretor e, em seguida, chefe do DOPS, período em que acobertou prisões ilegais e foi cúmplice nos crimes de tortura e ocultação de cadáveres. Em seguida, a Secretaria cancelou a inauguração da placa de Vila Formosa sem dar explicações à sociedade e aos familiares das vítimas que seriam homenageadas. Finalmente, em janeiro de 2018, o então coordenador de Direito à Memória e à Verdade foi exonerado durante as férias. Sua demissão significou a extinção do cargo.
Uma gestão que perde o prazo de 15 dias para vetar um projeto de lei que dá o nome de Tuma a uma ponte, mesmo após diversas entidades alertarem para a ilegalidade e o erro simbólico da homenagem, carece de legitimidade para “apoiar a identificação de mortos e desaparecidos”, como consta no decreto de 25 de janeiro. Também carece de legitimidade para promover “a reparação simbólica às vítimas de graves violações de direitos humanos” uma gestão que admite a apologia à tortura ao autorizar o desfile de um bloco de Carnaval intitulado Porão do DOPS, cujo cartaz traz a fotografia do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
A comparação com a gestão anterior é inevitável. Entre 2013 e 2016, Haddad criou o Festival de Direitos Humanos, o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos, o Prêmio de Educação em Direitos Humanos e o Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva. Esteve nas premiações. Instituiu o programa Ruas de Memória e sancionou mudanças de nomes significativas, como a alteração do Elevado Presidente Costa e Silva para Elevado Presidente João Goulart. Inaugurou o monumento aos mortos e desaparecidos políticos, assinado pelo arquiteto Ricardo Ohtake, no Parque do Ibirapuera. Criou e manteve por quatro anos o Cine Direitos Humanos, com sessões semanais e gratuitas exibidas numa das salas do Shopping Frei Caneca. O programa foi interrompido pela atual gestão. Apoiou iniciativas culturais como a Mostra de Cinema Memória e Verdade, em agosto, e uma exposição sobre o artista plástico Antonio Benetazzo, assassinado sob tortura e enterrado como indigente em 1972. Viabilizou a retomada da análise das ossadas de Perus e instituiu a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, com os objetivos de investigar e relatar violações de direitos humanos praticadas pela administração municipal entre 1964 e 1988. Por fim, instado por esta Comissão, elaborou um pedido oficial de desculpas pelos crimes cometidos pela Prefeitura durante a ditadura.
Em dezembro de 2016, a Comissão da Memória e Verdade apresentou seu relatório final com 36 recomendações à Prefeitura. Talvez a mais importante delas seja a de número 30: Institucionalizar uma política pública municipal de memória e verdade. “Os trabalhos relacionados a justiça e reparação”, diz o parágrafo 204 do relatório, “devem ser objetos de uma política pública permanente, que não esteja a reboque do bom senso ou da ideologia dos próximos prefeitos e suas equipes”. Em outras palavras, o direito à memória e à verdade deve ser objeto de uma política de Estado, não de governo, o que permitirá a ele resistir à alternância de poder e aos humores dos mandatários. Nossa esperança é que essa política ainda esteja em construção, e não em ruína.
* Os autores deste artigo compuseram a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). Adriano Diogo, 68, geólogo, foi deputado estadual (2006-2014) e presidente da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”. Audálio Dantas, 88, jornalista e escritor, foi presidente da Federação Nacional dos Jornalistas e deputado federal pelo extinto MDB (1979-1983). Camilo Vannuchi, 38, jornalista e escritor, é doutorando e pesquisador da USP sobre direito à comunicação. Fermino Fechio Filho, 73, advogado, foi ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo e ouvidor nacional dos Direitos Humanos. Tereza Lajolo, 70, professora aposentada de geografia da rede estadual, foi vereadora por três mandatos (1983-1996).