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Tradução exclusiva! The Great Leveler: a história da desigualdade da idade da pedra ao século XXI

Um internauta amigo, que assina sob o pseudônimo Yorkshire Tea, nos enviou uma tradução exclusiva de um capítulo importante do livro – The Great Leveler – Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, de Walter Scheidel, publicado pela Princeton University Press. A tradução segue abaixo. Obrigado, Yorkshire! A […]

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Um internauta amigo, que assina sob o pseudônimo Yorkshire Tea, nos enviou uma tradução exclusiva de um capítulo importante do livro – The Great Leveler – Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, de Walter Scheidel, publicado pela Princeton University Press.

A tradução segue abaixo. Obrigado, Yorkshire!

A desigualdade no mundo, da idade da pedra ao século XXI

Por Yorkshire Tea, especial para o Cafezinho

Recomendação de leitura: The Great Leveler – Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, de Walter Scheidel, publicado pela Princeton University Press. (1) A obra retrata o modo como o problema da desigualdade tem sido resolvido ao longo da História. Basicamente, a violência, ou a ameaça de violência, é o grande nivelador, o principal fator por trás da resolução do problema da desigualdade. Scheidel analisa inúmeras sociedades e países, desde as tribos de caçadores-coletores da Pré-História até as sociedades pós-industriais da atualidade. Segundo ele, a concentração de renda costuma acontecer em períodos prolongados de paz, quando as elites econômicas e políticas conseguem se organizar melhor e fazer valer seu poder de extração de valor da população de um modo geral. E a desconcentração ocorre em períodos nos quais acontecem grandes rupturas. Os quatro cavaleiros do apocalipse nivelador seriam: as guerras envolvendo grandes mobilizações de massas, as pestes catastróficas (pandemias), as revoluções transformadoras e o colapso estatal.

Uma das primeiras consequências dessas situações cataclísmicas é a morte de um grande número de trabalhadores, que se reflete imediatamente nas sociedades afetadas por meio da escassez de mão de obra por períodos prolongados. Isso faz com que os salários aumentem, reduzindo, assim, parte da desigualdade. Além disso, em períodos de guerras, os Estados tendem a concentrar todo o capital disponível no esforço de guerra. Isso é feito por meio de confiscos, criação ou aumento de impostos, regulação de preços, inflação, etc. O resultado é que, de modo geral, aqueles que detém o capital acabam sendo os mais afetados. E as revoluções (ou o medo delas) também contribuem para que as sociedades busquem maneiras de diminuir a desigualdade. Um dos exemplos mais claros desse mecanismo foi a criação do estado de bem-estar social na Europa Ocidental e no Japão no pós-Segunda Guerra Mundial.

No Japão, medidas tomadas pelo governo militarista (ainda durante a guerra) foram aprofundadas pelo General MacArthur no período de ocupação. Hoje, seriam consideradas iniciativas “comunistas revolucionárias” por muita gente. No entanto, eram (e continuam sendo) extremamente lógicas: reforma agrária abrangente, congelamento de preços e aluguéis, tributação da renda e do capital, fortalecimento de sindicatos, aumento de salários, investimentos em educação e saúde públicas, etc. A ideia por trás dessas medidas das forças de ocupação era reduzir as tendências expansionistas do país.

“Deverá ser dada preferência a políticas que permitam um ampla distribuição de renda e da propriedade dos meios de produção e do comércio.” (2)

Alguém consegue imaginar uma liderança de algum país capitalista fazer uma declaração dessas atualmente e ser levado a sério? Pois bem, essa afirmação faz parte de um documento aprovado por Harry Truman, presidente dos EUA, no qual se elencavam as medidas a serem tomadas pelas forças de ocupação após a rendição japonesa. Até onde eu saiba, esse documento parece ter tido sua circulação limitada (há pouquíssimas referências na Internet, e o meu conhecimento da bibliografia específica é muito limitado). Talvez isso (essa ausência de referências on-line) se deva ao tom “perigosamente” intervencionista para os gostos atuais. De qualquer modo, a intervenção na economia japonesa foi radical. Os EUA viam como um grande problema os baixos salários dos trabalhadores e o acúmulo de grandes lucros por parte de conglomerados empresariais. Entendiam que a concentração da propriedade da terra era uma grande mal a ser eliminado. Para tanto, ela deveria ser radical, pois só assim seria bem-sucedida. Eis alguns trechos do livro, ilustrando esses pontos de vista:

“As autoridades de ocupação tinham uma opinião desfavorável em relação aos zaibatsu, conglomerados empresariais familiares, vendo-os como parceiros da liderança militarista dos anos da guerra e, de modo mais geral, como uma força que perpetuava relações semifeudais entre a gerência e os trabalhadores, o que deprimia os salários dos empregados e ajudava os capitalistas a acumularem lucros gigantescos.”

“Finalmente, a reforma agrária foi outra meta importante das autoridades de ocupação: num raro acordo com os maoístas que estavam tomando o poder na China à época, eles viam a concentração da propriedade da terra como um mal enorme que deveria ser erradicado.”

“Um projeto de lei de reforma agrária concebido pelo Ministério da Agricultura japonês e aprovado no final de 1945 foi rejeitado pelos Estados Unidos por ser muito moderado, e uma versão revisada tornou-se lei em outubro de 1946.”

“Com a modéstia característica, o General MacArthur considerava o sistema como sendo ‘possivelmente, o programa de reforma agrária mais bem-sucedido da história’.”

Alguém concebe autoridades norte-americanas defendendo isso nos dias de hoje? No entanto, foram essas medidas que permitiram ao Japão se desenvolver como uma sociedade relativamente homogênea, apresentando baixos níveis de desigualdade econômica e social.

Feito este longo introito, apresento aqui, para quem tiver tempo, curiosidade e paciência, um trecho do livro (Capítulo 4 – Guerra Total – páginas 120 a 129). Até onde eu saiba, ainda não há tradução dessa obra para o português, pois sua publicação é relativamente recente (janeiro de 2017). A tradução é de minha lavra. Portanto, eventuais erros de tradução e interpretação são todos meus:

(***)

Uma série de intervenções durante o período de beligerância já antecipava a reforma agrária abrangente realizada mais tarde sob a ocupação norte-americana. Antes da guerra, os proprietários de terra – a maioria dos quais de posses modestas – eram donos de metade de todas as terras aráveis, e um terço de todos os agricultores trabalhava como seus arrendatários. A pobreza rural havia resultado em disputas e conflitos durante o entre guerras, mas tentativas de reforma haviam permanecido frágeis na melhor das hipóteses. Isso mudou com a Lei de Ajuste das Terras Aráveis de 1938, que forçou os proprietários a venderem as terras arrendadas e permitiu a compra compulsória de terras não cultivadas. Em 1939, a Lei de Controle de Arrendamento de Terras (3) congelou os valores em níveis correntes e deu ao governo o direito de ordenar reduções nos preços dos arrendamentos. A atualização dessa lei em 1941 fixou o preço da terra em valores de 1939, e a Lei de Controle da Terra (4) do mesmo ano deu ao governo o poder de decidir quais culturas deveriam ser plantadas. Com a Lei de Controle de Alimentos de 1942, as autoridades começaram a determinar o preço dos alimentos. Todo o arroz que ultrapassasse a quantidade requisitada para consumo pessoal deveria ser vendido ao estado, e toda a renda obtida do arrendamento de terras além das necessidades pessoais seriam transferidas para o tesouro. Subsídios crescentes eram transferidos aos plantadores de arroz, para encorajar a produção na ausência de incentivos na forma de preços. Isso permitiu que a renda dos principais produtores acompanhasse a inflação, ao passo que a renda dos proprietários de terra fosse solapada, uma divergência que produziu uma equalização considerável no campo. O valor real dos arrendamentos caiu quatro quintos entre 1941 e 1945, e de 4,4% da renda nacional em meados da década de 1930 para 0,3% em 1946. Mas o resultado para os proprietários de terra poderia ter sido ainda pior, uma vez que várias propostas de confisco foram sugeridas, mas jamais implementadas.

“Os trabalhadores se beneficiaram não somente do controle de aluguéis, subsídios estatais e uma crescente intervenção governamental na gestão dos negócios, mas também de uma expansão dos dispositivos de bem-estar social que foram criados com base na preocupação com a condição física dos recrutas e trabalhadores e no propósito expresso de reduzir a ansiedade entre a população. Em 1938, foi criado um Ministério do Bem-Estar Social, que imediatamente se tornou uma das principais forças motrizes por trás de políticas sociais. Seus encarregados deram início a sistemas de seguro-saúde parcialmente financiados pelo estado, que foram amplamente expandidos a partir de 1941, assim como o alívio à pobreza. Vários sistemas de pensão pública voltados ao controle do consumo, e os primeiros projetos de habitação social foram lançados em 1941.

A segunda força niveladora, a inflação, experimentou uma aceleração durante a guerra. Os preços ao consumidor subiram 235% entre 1937 e 1944, e, somente de 1944 a 1945, deram mais um salto de 360%. Isso reduziu sensivelmente tanto o valor dos títulos de dívida pública quanto os dos depósitos bancários, ao mesmo tempo em que os controles sobre o arrendamento atingiram a renda real dos proprietários de terra.

Diferentemente do ocorrido na Europa, o terceiro fator, a destruição física do capital no território japonês, somente ocorreu nos últimos estágios da guerra, embora a navegação comercial já tivesse começado a ser atingida bem mais cedo. Até setembro de 1945, um quarto do estoque de capital físico do país havia sido aniquilado. O Japão perdeu 80% de suas embarcações mercantes, 25% de todos os edifícios, 21% de bens pessoais e ferragens e mobiliário residencial, 34% de equipamento industrial e 24% de produtos acabados. O número de fábricas em operação e o tamanho da mão de obra nelas empregada foram praticamente reduzidos pela metade durante o último ano da guerra. Os prejuízos variaram muito, dependendo do setor: embora as perdas tenham sido mínimas na metalurgia, 10% do setor têxtil, 25% da produção de máquinas, e de 30% a 50% da indústria química desapareceram. A grande maioria dessas perdas foi diretamente causada por ataques aéreos. Segundo a Pesquisa de Bombardeios Estratégicos dos EUA de 1946, os aliados haviam soltado 145.875 toneladas (5) de bombas no Japão, menos de um oitavo do volume despejado sobre a Alemanha, mas com maior sucesso contra alvos menos protegidos. O uso de bombas incendiárias em Tóquio durante as noites de 9 e 10 de março de 1945, que mesmo usando estimativas conservadoras matou cerca de 100.000 habitantes e destruiu mais de 250.000 edifícios e lares numa área de pouco mais de 41 km2, foi apenas um episódio significativo; assim como a aniquilação de Hiroshima e Nagasaki cinco meses mais tarde. Os pesquisadores estimaram que cerca de 40% da área construída de 65 cidades que haviam sido bombardeadas foi destruída e que aproximadamente 30% de toda a população urbana do país perdeu sua moradia. No entanto, apesar das perdas que isso causou aos proprietários de imóveis e investidores, o efeito geral não deve ser superestimado. Graças à expansão agressiva das indústrias pesada e química durante a guerra, o volume de equipamentos de produção que sobreviveu ao conflito em 1945 excedia o disponível em 1937. E, com a exceção das embarcações navais, a destruição física foi largamente comprimida nos últimos nove meses da guerra, bem depois que a participação dos detentores de grandes fortunas e alta renda na economia já havia entrado em queda livre. O bombardeio aliado apenas acelerou uma tendência já existente.

Os ganhos de capital praticamente desapareceram durante a guerra: a participação da renda de aluguéis e juros na renda nacional total caiu de um sexto em meados da década de 1930 para apenas 3% em 1946. Em 1938, a renda somada de dividendos, juros e aluguéis representava cerca de um terço da renda do “1%”, com o restante dividido entre a renda de empresas e do trabalho. Em 1945, a participação da renda do capital havia caído para menos de um oitavo e a dos salários para um décimo; a renda de empresas foi a única fonte de receitas significativas deixada para os (anteriormente) ricos. Em termos absolutos e relativos, dividendos e salários, que passaram a estar sujeitos cada vez mais a controles governamentais rígidos, foram os que mais sofreram. Esse declínio foi desproporcionalmente severo entre as camadas superiores do “1%”.

Ao mesmo tempo, isso não foi acompanhado por nenhuma compressão comparável entre os próximos grupos de maior renda. A participação da renda de domicílios entre o 95º e o 99º percentis (os 4% mais ricos imediatamente abaixo do “1%”) praticamente não diminuiu durante a guerra e, depois disso, experimentou por um longo período uma estabilização ao redor do mesmo nível que no início do século XX, ou cerca de 12% a 14% da renda nacional. Embora a maioria tenha sofrido perdas na renda, apenas os japoneses mais ricos também perderam em termos relativos: enquanto que antes da Segunda Guerra Mundial o “1%” tenha conquistado de maneira uniforme cerca de metade da renda dos próximos 4% combinados, depois de 1945 eles jamais voltaram a amealhar mais do que a metade da renda desse mesmo grupo. Assim, a perda total de renda do “1%” traduziu-se em ganho de participação dos 95% da população abaixo dessa elite, cuja participação na renda nacional aumentou em um quinto, passando de 68,2% em 1938 para 81,5% em 1947. Isso representou uma mudança verdadeiramente espetacular, que aumentou a participação da renda dos 95% de uma comparável à dos EUA em 2009 para uma equivalente à Suécia atualmente – no curso de menos de uma década.

“O FUTURO NÃO VAI MAIS SER DEFINIDO POR POUCOS”: A EQUALIZAÇÃO REFORÇADA E CONSOLIDADA

Porém, o que ocorreu durante a guerra foi apenas parte do processo de equalização. O Japão pode ter sido único entre os principais beligerantes no sentido de que toda a compressão observada na renda líquida desde os últimos anos da década de 1930 ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, em vez de se concentrar durante e, numa menor medida, depois da guerra, como ocorreu de maneira geral em outros lugares. No entanto, assim como nesses outros países, a desconcentração de renda e riqueza no longo prazo foi definida pelo caráter nivelador das políticas do pós-guerra. No caso japonês, todas essas políticas podem ser demonstradas como tendo sido um resultado direto da guerra. Quando o Imperador Hiroíto reconheceu, em 15 de agosto de 1945, que “a situação bélica não se desenvolveu necessariamente de modo a ser vantajosa para o Japão” e que havia chegado o momento de “encarar o impensável” – a capitulação incondicional e a ocupação pelas forças Aliadas – a economia do Japão estava aniquilada. A falta de matérias-primas e de combustível havia feito com que a produção se dissolvesse. Em 1946, o PIB real era 45% mais baixo do que o de 1937. E o volume de importações chegava a um oitavo daquele de 1935 em termos reais. À medida que a economia foi se recuperando, todo um conjunto de políticas e efeitos relacionados à guerra serviu para manter a compressão da renda que havia ocorrido durante a guerra e para pressionar a distribuição de renda ainda mais.

A hiperinflação começou assim que a guerra terminou. Depois de subir 1400% entre 1937 e 1945, o índice de preços ao consumidor disparou muito mais rapidamente entre 1945 e 1948. Embora os índices relatados variem, uma das medidas indica que os preços ao consumidor em 1948 eram 18.000% maiores do que haviam sido na época em que o Japão havia invadido a China. O pouco que havia restado de renda de capital fixo evaporou.

Tanto empresas quanto proprietários de terras se tornaram alvo de uma reestruturação agressiva. As três principais metas do governo de ocupação norte-americano eram a dissolução dos zaibatsu, a democratização do trabalho e a reforma agrária, medidas que deveriam ser implementadas em conjunto com uma tributação punitiva progressiva. O objetivo final era eliminar não apenas a capacidade material para a guerra, mas também as fontes percebidas de agressão imperialista. As reformas econômicas faziam parte de uma gama mais ampla de mudanças democratizantes fundamentais concebidas para reformular as instituições japonesas: uma nova constituição, voto feminino e uma profunda revisão do sistema judiciário e policial, apenas para nomear algumas. Tudo isso foi implementado como consequência direta da guerra, que acabou resultando numa ocupação estrangeira.

As intervenções econômicas explicitamente buscavam a equalização como um meio de alcançar os resultados desejados. A “Diretriz Básica” das autoridades de ocupação norte-americanas chamada de “Democratização das Instituições Econômicas Japonesas” insistia numa “ampla distribuição de renda e da propriedade dos meios de produção e do comércio”. Com vistas à criação de um estado de bem-estar social, as metas da política de ocupação eram intimamente associadas às do New Deal. Em 1943 e 1945, pesquisadores norte-americanos avaliaram que a baixa distribuição da riqueza para os agricultores e trabalhadores industriais japoneses havia restringido o consumo doméstico e impulsionado o expansionismo econômico no exterior. Isso agora deveria ser resolvido pela reorganização do trabalho com salários maiores que promoveriam o consumo doméstico e facilitariam a desmilitarização. A democratização e equalização econômica não eram fins em si: a meta subjacente da política era combater o militarismo pela reestruturação de características da economia que poderiam ser promotoras de agressões no exterior. Mais uma vez, na análise final, a guerra e suas consequências foram responsáveis por essas mudanças.

As forças de ocupação brandiram as armas da tributação com braço pesado. Entre 1946 e 1951, um imposto sobre bens imóveis progressivo e de alcance abrangente foi cobrado sobre o valor líquido dos ativos, com um baixo nível de isenção e uma taxa marginal superior a 90%. Aplicado a ativos em vez de à renda ou apenas ao patrimônio, era claramente confiscatório por natureza. Da perspectiva norte-americana, o imposto visava redistribuir a propriedade privada e transferir os recursos para as classes mais desfavorecidas, a fim de fortalecer seu poder de compra. No início, ele alcançava um oitavo dos domicílios e acabou transferindo 70% da propriedade das 5.000 famílias mais ricas para o estado, além de um terço dos ativos de todos aqueles sujeitos ao imposto. Essa tributação visava especificamente os ricos, num momento em que a carga tributária em geral era razoavelmente baixa. A redistribuição, em vez de maximização da receita, foi o princípio aplicável. Também em 1946, muitos depósitos bancários foram congelados e subsequentemente erodidos pela inflação, e aqueles acima de um determinado patamar foram eliminados dois anos mais tarde.

As autoridades de ocupação tinham uma opinião desfavorável em relação aos zaibatsu, conglomerados empresariais familiares, vendo-os como parceiros da liderança militarista dos anos da guerra e, de modo mais geral, como uma força que perpetuava relações semifeudais entre a gerência e os trabalhadores, o que deprimia os salários dos empregados e ajudava os capitalistas a acumularem lucros gigantescos. Os maiores zaibatsu foram dissolvidos, fragmentando seu controle sobre a economia do país (planos mais ambiciosos para a reorganização de centenas de empresas foram vítimas de mudanças nas políticas causadas pela Guerra Fria). As famílias dos zaibatsu foram forçadas a vender 42% de toda sua participação acionária, o que resultou num enorme declínio na proporção de ações detidas pelas corporações. Num expurgo nacional da alta administração em 1947, cerca de 2.200 executivos de 632 corporações foram demitidos ou optaram por se aposentar antes que fossem removidos. O sistema anterior de controle fechado das empresas por capitalistas foi, assim, desmantelado. A mensagem de Ano Novo de 1948 do General MacArthur declarava que:

A política aliada demandou a quebra daquele sistema que no passado permitiu que a maior parte do comércio, da indústria e dos recursos naturais do seu país fosse de propriedade e controlada por uma minoria de famílias feudais e explorada em benefício exclusivo delas.

Os planos iniciais de intervenção haviam sido muito duros. Em 1945 e 1946, o governo de ocupação avaliou planos para remover equipamentos de manufatura e de geração de energia, a fim de manter o padrão de vida em níveis do final da década de 1920 e início da de 1930 e absorver tudo o que estivesse acima desse patamar a título de reparação de guerra. Embora a política tenha mudado rapidamente, devido às novas realidades da Guerra Fria, muitas medidas invasivas chegaram a ser efetivamente implementadas. Fábricas de armamentos e negócios relacionados foram confiscados como reparação. Em julho de 1946, argumentando que a “guerra não é um negócio que visa o lucro”, os norte-americanos ordenaram a cessação dos pagamentos que haviam sido prometidos para compensar as perdas com a guerra; as reivindicações em aberto foram canceladas. Isso aumentou ainda mais a pressão sobre os balanços patrimoniais de empresas e bancos. Muitas empresas acabaram sendo liquidadas ao longo dos cinco anos seguintes. Outras usaram fundos de reserva, capital e participação acionária, chegando até mesmo a transferir o ônus para credores, a fim de sobreviver.

A derrota também trouxe outros prejuízos. A década de 1930 havia presenciado um fluxo considerável de capital do Japão para investimento nas colônias do país em Taiwan, na Coreia e na Manchúria. Durante os anos de guerra, empresas japonesas operaram de modo mais agressivo nas colônias e territórios ocupados, inclusive na China. De acordo com o Tratado de Paz de São Francisco de 1951, o Japão abria mão de todos os ativos japoneses no exterior – a maioria dos quais já havia sido tomada pelos vários países.

O setor financeiro foi devastado. Em 1948, as perdas bancárias haviam crescido de tal monta que só poderiam ser resolvidas pela eliminação de todos os ganhos de capital e lucros acumulados, pelo corte do capital dos bancos em 90%, além da baixa de depósitos acima de um determinado patamar. Os acionistas não apenas sofreram perdas enormes, mas foram até mesmo proibidos de adquirir novas emissões durante os três anos seguintes. Assim, a renda de capital efetivamente desapareceu. Em 1948, a renda somada de dividendos, juros e aluguéis respondeu por não mais de 0,3% da renda do “1%”, comparado a 45,9% em 1937 e 11,8% em 1945.

A participação em sindicatos tornou-se uma preocupação fundamental. Antes da guerra, a participação sindical havia sido inferior a 10%, e os sindicatos existentes haviam sido desfeitos em 1940 e substituídos por associações industriais patrióticas de trabalhadores. Essa forma de organização trabalhista foi adotada para motivar a mão de obra para o esforço de guerra e ofereceu a base para a criação de sindicatos baseados em empresas durante a ocupação. A Lei de Sindicatos Trabalhistas foi redigida imediatamente após a chegada das forças norte-americanas, no outono de 1945, com base nos planos anteriores à guerra que haviam falhado. Aprovada na virada do ano, ela deu aos trabalhadores o direito de se organizar, fazer greve e de participar de negociações coletivas. A participação explodiu: em 1946, 40% dos trabalhadores eram sindicalizados, e cerca de 60% em 1949. Os benefícios além do salário aumentaram, e os sistemas de seguro-saúde e de pensões criado durante a guerra foram ampliados. Os sindicatos provaram-se essenciais para estabelecer relações industriais cooperativas, com ênfase em salários por tempo de serviço, estabilidade de emprego – e, ainda mais importante do ponto de vista da equalização, por fomentar o consenso em relação a uma nova estrutura de salários que determinava o pagamento com base na idade, necessidade, padrão de vida, preços e inflação. Um salário de subsistência mínimo foi definido para trabalhadores nos níveis de ingresso nas empresas, o qual subia com a idade, tempo de casa, e tamanho da família. Ajustes frequentes do salário mínimo para acompanhar a inflação reduziam as diferenças de renda – inicialmente enormes – entre trabalhadores braçais e de escritório.

Finalmente, a reforma agrária foi outra meta importante das autoridades de ocupação: num raro acordo com os maoístas que estavam tomando o poder na China à época, eles viam a concentração da propriedade da terra como um mal enorme que deveria ser erradicado. Um memorando do governo afirmava que a redistribuição de terra era essencial para mover o Japão numa direção pacífica, observando que o exército japonês havia persuadido agricultores pobres de que a agressão estrangeira era a única maneira de eles fugirem da pobreza: na ausência da reforma agrária, o campo poderia permanecer sendo um foco do militarismo. Mais uma vez, a justificativa subjacente para a intervenção estava proximamente relacionada à guerra. Um projeto de lei de reforma agrária concebido pelo Ministério da Agricultura japonês e aprovado no final de 1945 foi rejeitado pelos Estados Unidos por ser muito moderado, e uma versão revisada tornou-se lei em outubro de 1946. Toda a terra pertencente a proprietários ausentes (definidos como aqueles que não residissem na mesma vila onde a terra fosse localizada) estava sujeita a venda compulsória, além de toda terra arrendada acima de um hectare detida por proprietários de terra residentes. A terra cultivada pelo proprietário que excedesse a três hectares também poderia ser incluída caso fosse considerada como sendo cultivada de maneira ineficiente. Os níveis de compensação, uma vez definidos, eram rapidamente erodidos pela inflação galopante. O mesmo valia para os aluguéis, que deveriam ser pagos em dinheiro a valores congelados nos níveis do final de 1945 e, consequentemente, gradualmente eliminados pela inflação. O declínio concomitante nos valores reais da terra não foi menos impressionante: entre 1939 e 1949, o preço real de campos de arroz relativo ao arroz caiu por um fator de 500, e em cerca de metade disso com relação ao preço dos cigarros. Um terço de toda a terra arável no Japão foi alcançada pela reforma agrária e, desse modo, transferida para metade dos domicílios rurais do país. As terras arrendadas, que representavam cerca da metade das terras antes da guerra, caíram para 13% em 1949 e 9% em 1955, ao passo que a participação de agricultores proprietários na população rural mais que dobrou, indo de 31% para 70%, e os arrendatários sem terra quase que desapareceram. O Gini da renda em cidades rurais caiu de 0,5 antes da guerra para 0,35 depois. Embora essa reforma tenha se baseado em medidas e ideias adotadas pelo Japão durante a guerra, a implementação em tamanha escala foi um resultado direto da ocupação. Com a modéstia característica, o General MacArthur considerava o sistema como sendo “possivelmente, o programa de reforma agrária mais bem-sucedido da história”.

Os anos de guerra total e a ocupação subsequente, da invasão à China em 1937 ao Tratado de Paz de 1951, reestruturaram completamente as fontes e a distribuição de renda e riqueza no Japão. O forte declínio na participação dos detentores de maior renda e o colapso dramático no tamanho das grandes fortunas observados no início deste capítulo foram causados acima de tudo pelo declínio no retorno sobre o capital, o que afetou a população muito além dos muitos ricos. A composição dos 9% dos maiores patrimônios mudou consideravelmente. Enquanto que em 1935 ações, títulos de dívida e depósitos representavam cerca da metade de todos os ativos nessa categoria, em 1950, sua participação havia caído para um sexto, e as terras aráveis haviam caído de quase um quarto para menos de um oitavo. A maioria dessas mudanças ocorreu durante a guerra: todo o declínio na participação dos detentores de maior renda e, em termos absolutos, quase a totalidade (cerca de 93%) da queda no valor real do patrimônio do “1%” entre 1936 e 1949 já haviam sido concluídos em 1945.

No entanto, o período de ocupação, como uma consequência direta da guerra, foi de importância crucial na transformação de medidas de guerra em medidas permanentes e em colocá-las em bases mais sólidas. Conforme o General MacArthur havia dito em sua mensagem de Ano Novo para o povo japonês, o futuro não seria mais “definido por poucos”. A intervenção norte-americana na economia japonesa concentrou-se na tributação, governança corporativa e na organização trabalhista, todas áreas em relação às quais a liderança do período de guerra já havia infligido enormes perdas financeiras para a elite plutocrata estabelecida. A guerra e os anos imediatamente posteriores, assim, promoverem uma mudança fenomenal, de uma classe de acionistas rica e poderosa que controlava a direção e demandava altos dividendos para um sistema empresarial mais igualitário de emprego para toda a vida, salários baseados em tempo de casa e sindicatos. Junto com a reestruturação de empresas e das relações trabalhistas, além da reforma agrária, a tributação progressiva foi um mecanismo essencial para sustentar a equalização do período da guerra. Formalizado a partir da década de 1950, o sistema tributário japonês impunha uma alíquota marginal de 60% a 75% para os detentores de maior renda e um imposto sobre herança acima de 70% para as maiores fortunas. Isso ajudou a conter a desigualdade de renda e o acúmulo de riqueza até após a década de 1990 já ter sido adentrada, do mesmo modo que fortes proteções para locatários deprimiram a renda de aluguéis residenciais e as negociações coletivas asseguravam uma compressão contínua dos salários.

A guerra e suas consequências fizeram da equalização um fenômeno repentino, de alcance maciço e sustentável. Os anos mais sangrentos da história japonesa, uma guerra que custou milhões de vidas e causou enorme destruição no país, haviam produzido um resultado nivelador único. Esse resultado foi possível por um novo tipo de guerra que requeria a mobilização demográfica e econômica total. A violência extrema solapou as extremas discrepâncias de renda e riqueza dentro da sociedade japonesa. Em sua progressão implacável de mobilização popular a destruição e ocupação, a guerra total havia equalizado totalmente o país.

Fontes:

(1) O Grande Nivelador – Violência e a História da Desigualdade da Idade da Pedra ao Século XXI

(2) Extraído do item 2, Parte IV, da Política Inicial dos EUA para o Japão Pós-rendição, documento raramente citado, aprovado por Harry Truman em 6 de setembro de 1945. O original pode ser encontrado em: https://trumanlibrary.org/publicpapers/index.php?pid=151&st=&st1=

(3) Land Rent Control Order – como essa expressão foi traduzida do japonês para o inglês, não sei exatamente o significado de ORDER aqui. Não me parece ser uma “ordem judicial”, mas sim uma lei/regulamento.

(4) Land Control Order – idem.

(5) Valor aproximado em toneladas métricas.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Jorge Milan

30/01/2018 - 21h52

Todos os cidadãos brasileiros que acham que as políticas implantadas pelo governo do PT são políticas comunistas e que prejudicariam toda a sociedade, deveriam ler este artigo. Para que consigamos que todos o brasileiros possam ter um mínimo de vida decente, o governo deve sim investir no social, investir em educação, nas empresas brasileiras, no cidadão brasileiro, como ocorreu no Japão. Lá esse investimento foi realizado pelos EUA para que o comunismo não avançasse sobre aquele país. Vale lembras que todas as políticas implantadas pelos EUA no Japão são consideradas comunistas pelos Brasileiros que são manipulados pela nossa mídia. Brasileiros que simplesmente repetem o que os donos do poder os empurram goela a baixo. Ótima reportagem.


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