foto: Democracy for Brazil
A PGR, Raquel Dodge, esteve em Londres no fatídico dia 24 de janeiro, dia da confirmação da condenação de Lula pelo TRF4, para falar sobre Escravidão Moderna
A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, esteve no Reino Unido esta semana para discutir a questão do trabalho escravo, justamente na semana em que o recurso de Lula seria considerado pelo TRF4 em Porto Alegre.
O trabalho escravo é algo que motiva a Procuradora Geral já faz muitos anos e também tema prioritário para a Conservadora Primeira-Ministra, Theresa May.
Os britânicos se encantaram com uma mulher engajada na luta contra a escravidão moderna, como ficaram impressionados com uma comitiva totalmente feminina.
Um contraste aos ‘homens brancos’ de Temer.
Raquel Dodge é pequenininha e dá a impressão de ser uma mulher humilde e retraída.
Não conhecendo os bastidores de Brasília e os círculos pessoais de Temer, me arrisco a dizer que não me surpreenderia se Temer a tivesse escolhido da lista tríplice, em parte, por machismo, isto é, pelo desprezo geral que ele e seus comparsas já demostraram tantas vezes ter pelas mulheres.
Desprezo este que se faz ainda maior se os interesses destas mulheres sejam aqueles denominados “soft”, “femininos” ou “periféricos” como as questões indígenas e o trabalho escravo, num mundo onde sabemos que é a economia e outras teorias apartadas da realidade do dia a dia que valem, e tanto ocupam as mentes masculinas.
Afinal, que risco poderia trazer uma mulherzinha que se interessa mais pelo trabalho escravo do que pela “corrupção geral da nação”?
Na verdade, o interesse pelo trabalho escravo, seria uma cereja, dando um je-ne-sais-quoi civilizatório ao bolo velho e impalatável que é este governo.
E aqui nós entramos em águas escuras.
Qual seria o verdadeiro norte do mandato de Raquel Dodge para além de fazer prioridade matérias que são normalmente relevadas a segundo plano?
Estivéssemos nós em uma democracia que funcionasse, tendo como chefe de estado uma presidenta eleita, de popularidade alta ou não, estaria aqui aplaudindo Raquel Dodge abertamente.
Exatamente como fiz no comecinho do governo Lula, quando as ações sociais, que mais tarde dariam lugar ao bolsa-família, deixaram de ser ações para aliviar o ócio das primeiras-damas (por mais eloquentes e intelectualmente aptas que fossem) e se transformarem em políticas de Estado.
Tal qual com Raquel Dodge.
Suas prioridades complementariam, no nível jurídico, as de um governo voltado para a erradicação da pobreza e o bem-estar social da população mais vulnerável com um apreço aos direitos humanos.
Entretanto, este não é o mundo em que vivemos.
Temos um executivo assaltado por bandidos e um judiciário que se acha Deus.
E aí está o cerne dos problemas que nos assolam.
O Ministério Público brasileiro tem total independência. E sua missão vai muito além de processar criminosos.
Esta seria a atividade principal da maioria das procuradorias do mundo: um órgão do estado, sob o controle do executivo, agindo para processar aqueles que infringem as leis.
Certamente, no Reino Unido, o Crown Prosecution Service (que, aliás, está sendo severamente criticado por ajuizar casos sem os fundamentos necessários), só tem este objetivo.
Esta instituição está sujeita à Advocacia Geral da União, cuja função principal é aconselhar o governo. Portanto, a ideia de que esta poderia vir a processar o Estado é remota.
Isso não quer dizer que o judiciário não exerça controle sobre o executivo britânico.
Mas, com certeza, é um sistema muito menos judicializado, onde a teoria da ‘soberania parlamentar’ é tão predominante que embasa a visão pró-Brexit de muitos Conservadores.
Voltemos ao nosso Ministério Público.
A primeira coisa que disse Raquel Dodge em sua palestra para professores e estudantes do King’s College foi que “as instituições brasileiras estão funcionando normalmente” e que “o Brasil experimenta o seu mais longo período de estabilidade desde a proclamação da República”.
Talvez ela estivesse se desculpando frente a uma plateia mais interessada em saber sua posição sobre Lula do que o trabalho escravo.
Mas parte do que disse é sincero.
Dentro da lógica bitolada dos agentes do judiciário, que têm total liberdade de ação, tudo está funcionando a mil maravilhas.
Pouco importa se o país esteja passando por uma de suas maiores crises.
Crise esta que se dá justamente pela falta de controle sobre o judiciário que, de tão poderoso, começa a violar a própria constituição do qual são guardiões e os direitos dos indivíduos, para os quais a independência do Ministério Público foi concebida.
Não sou a primeira a alertar aqui sobre os problemas que a chamada independência destes órgãos está causando, inclusive à nossa soberania nacional, quando uma instituição como o Ministério Público e outras partes do judiciário se acham no dever de ser mais leais ao combate à “criminalidade internacional” do que ao próprio país.
Ou quando começam a ver os políticos em geral como criminosos que precisam ser combatidos nacional e internacionalmente.
Diz a BBC que a Procuradora Geral firmou termo de entendimento com o SFO (Departamento de Investigação de Fraudes) britânico, como seu predecessor teria firmado com outros países.
Os poderes ilimitados do Ministério Público poderiam ter nos parecido salutar pela sua função de fazer valer a Constituição, com a ideia de ajudar resguardar os direitos dos mais fracos contra os mais fortes, mesmo se este ‘mais forte’ fosse o Estado.
Mas o que acontece quando os poderes deste órgão vão para além da Constituição e atacam o Estado e a nação em nome da luta contra o crime organizado em conjunto com agentes internacionais?
Se os nossos procuradores e outros membros do judiciário se acham “Cavaleiros contra o Crime”, o que dizer de seus pares estrangeiros?
Será que os membros do Serious Fraud Office britânico teriam a independência para fazer investigações em conjunto com as forças brasileiras que tivessem impacto deletério ao estado britânico?
Sinceramente não acredito.
Mesmo porque acordos maiores teriam que ser firmados a nível ministerial, o que não é o caso nem do Crown Prosecution Service ou do Serious Fraud Office, que lida com os casos graves de fraude e corrupção.
E o que dizer da total falta de controle democrático de tais ações conjuntas?
Se na segunda metade do século XX a luta era contra o ‘comunismo’ em nome da ‘liberade’, no século XXI parece ser contra a corrupção.
Sem querer aqui julgar a procedência dos casos, o fato é que mais de uma dezena de líderes mundiais estão ou já foram acusados (e alguns derrubados) sob a bandeira da corrupção.
Afetando países extremamente diferentes, governos de esquerda e de direita. Do Brasil à Arábia Saudita, passando por outros países latino-americanos, africanos e asiáticos.
Sim, estes países se encontram na África, Ásia e América Latina – o teatro de operações quentes da chamada ‘guerra fria’.
Nenhum destes países são do chamado “Norte” ou “desenvolvidos” ou “países do primeiro mundo”.
Façam deste fato o que quiserem.
Mas a maioria, como o Brasil, a África do Sul, Coreia (e até a Arábia Saudita!!) são países de porte médio, vistos com potencial para crescimento e liderança mundial.
De novo, não conheço nenhum destes casos e tampouco me interessa a procedências deles. O fato é que a ‘corrupção’ se tornou a nova bandeira mundial.
E se nós não conseguimos a atenção devida dos países chamados desenvolvidos para as aberrações que estão acontecendo no caso de Lula, é porque a maioria das pessoas aqui – quando sabem alguma coisa ou demonstram algum interesse – tendem a aplaudir o Brasil pelas suas ações “anti-corrupção”.
Elas não se debruçam sobre o caso e as questões de direito da defesa, imparcialidade, etc.
Porque tudo é muito simples: Brasil, país periférico, conhecido por sua corrupção.
Líder esquerdista que aparentemente ‘ajudou’ os mais pobres é depois flagrado por corrupção.
Como se diria em inglês “What’s new?” O que há de novo nisso?
Não é isso que esperamos destes paisécos? Não é isso que está acontecendo em vários outros cantos do mundo?
E a luta contra a corrupção não é digna de ser aplaudida?
Pois é.
Como mesmo finalizou Raquel Dodge quando perguntada sobre as provas contra Lula: “Prova é tudo aquilo que o juiz aceita”.