Brasil e a distopia horrível da desigualdade

[Este é o segundo e último artigo de uma série sobre a desigualdade de renda no Brasil. Leia o primeiro aqui].

No artigo anterior, eu cometi um erro estratégico.

Comparar os níveis de desigualdade entre Brasil e EUA não é uma boa ideia, por várias razões.

Piketty, em seu clássico Capitalismo no Século XXI, estuda em profundidade a questão da desigualdade nos Estados Unidos, que é particularmente chocante, sobretudo se comparada àquela verificada na Europa, no Japão e no mundo desenvolvido em geral.

Enquanto os 10% mais ricos da França, por exemplo, amealham 30%, nos EUA, os mesmos 10% controlam 47% da riqueza nacional.

Entretanto, mesmo dentro dos 10% mais ricos, há níveis de desigualdade que são muito diferentes entre as nações.

Na França, por exemplo, os 1% mais ricos detêm 8,8% da riqueza nacional, enquanto nos EUA, os mesmos 1% desfrutam de 20,20%.

A desigualdade no Brasil figura num outro patamar, distante da verificada em qualquer outro lugar do mundo, incluindo o super desigual Estados Unidos: nossos 1% mais ricos detêm quase 30% da riqueza nacional.

Na Coreia do Sul, os 1% mais ricos controlam 12% da riqueza do país. No Japão, os 1% mais ricos ficam com 10% da renda somada da população.

Outro erro  que cometi, ao comparar Brasil e EUA, é que os EUA são uma exceção: por razões históricas, tornaram-se o maior império econômico de todos os tempos. A desigualdade nos EUA, apesar de seus efeitos dramáticos na vida de muitos americanos, não atinge os mais pobres, nem de longe, com a mesma força que o faz no Brasil.

Os 50% mais pobres no EUA, que controlam 19% da riqueza nacional, tem uma renda média, depois dos impostos, de 25 mil dólares por ano. Já o mesmo segmento no Brasil (os 50% mais pobres), que detêm 12% da renda nacional, recebem apenas 3.400 dólares por ano, ou seja, uma renda mais de sete vezes menor do que seus primos norte-americanos.

A questão tributária é outro fator que se deve considerar, sempre que se compara o Brasil e outros países.  O gráfico abaixo (fonte: World Wid) mostra as alíquotas máximas de imposto de renda em alguns países desenvolvidos, ao longo dos últimos cem anos.

Observe que o processo de desenvolvimento das nações ricas foi marcado por uma tributação profundamente progressiva. O Reino Unido, por exemplo, nas décadas que antecederam a gestão de Margareth Tatcher, aplicava alíquotas de imposto de renda que atingiam 90% da renda em alguns casos. É evidente que isso foi fundamental para equalizar a distribuição de renda, oferecer educação e saúde de qualidade à população e desenvolver a economia.  A partir da década de 80, há queda acentuada nas cargas tributárias de vários países, de que resulta, aponta o estudo de Piketty, baixo crescimento econômico e elevação das desigualdades sociais.

Outros números para os quais os economistas do grupo de Piketty chamam muito atenção são os impostos sobre herança (inheritance tax). O século XX é marcado, nos países ricos, por impostos sobre herança extremamente pesados, que ajudavam a capitalizar o Estado e a reduzir as iniquidades sociais. Japão, EUA, Reino Unido, em particular, registram, desde a década de 30, impostos que oscilam de 70% a 80% sobre a herança legada a um cidadão. Até hoje esses impostos são muito relevantes, em geral acima de 40%.

No Brasil, segundo o mesmo estudo, o imposto sobre herança é de 4%.

Nos EUA, o imposto sobre herança, após decisão de Franklin Roosevelt, manteve-se em 77% de 1941 a 1976! O imposto sobre herança nos EUA irá cair somente após a era Reagan, quando terminam em 55%. A era Bush promoverá novo abatimento do imposto sobre a herança.

O governo Trump vem falando em cortar ainda mais esse imposto, o que faria com que a desigualdade nos EUA desse um novo grande salto.

Segundo o grupo de Piketty, o imposto sobre herança em países como o Brasil poderia fazer diferença:

“De fato, impostos adicionais cobrados através de taxas aplicadas sobre a herança poderiam ser usados para financiar programas de educação e saúde, e dar alívio à classe média no Brasil e em outros países emergentes”, diz o estudo, em sua conclusão.

 

 

No gráfico abaixo, os economistas fazem algumas projeções para o nível de renda dos 50% mais pobres do mundo, até 2050, usando três cenários: 1) se seguirem o padrão europeu, a renda média dos 50% mais pobres do mundo chegará a 9,1 mil euros/ano em 2050; 2) se seguirem seus próprios padrões, essa renda ficará em 6,3 mil euros;  3) se copiarem o padrão dos EUA, a renda média dos 50% mais pobres ficará em apenas 4.500 euros.

Como se vê, o mundo deve procurar se afastar ao máximo do padrão norte-americano de distribuição de renda, o pior, o mais cruel do mundo desenvolvido.

Quanto ao Brasil, é um caso monstruoso. A desigualdade no Brasil é absolutamente infame, vergonhosa, humilhante, superando o nível de países que vivem, há décadas, guerras civis, golpes e revoluções, como os países do oriente médio.

Considerando a magnitude do nosso país, que tem uma população de quase 210 milhões, temos uma desigualdade de renda não apenas monstruosa em termos de qualidade. Em quantidade também: um percentual importante da raça humana sofre as consequências do atraso mental de nossas elites.

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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