(A ilustração acima é do artista Sama, parceiro do Cafezinho).
Relendo o Espírito das Leis, de Montesquieu, descobri uma coisa deveras interessante.
As leis humanas, desde ao menos o Código de Hamurabi, NÃO foram escritas com o objetivo de coibir crimes de roubo, corrupção, homicídio, etc.
Repetindo: NÃO foram escritas com este objetivo.
Esses crimes não precisam de leis, porque podem ser punidos pelos costumes.
Roubou? Matou? Tem que pagar pelo crime que cometeu. Não há necessidade de lei para isso. Os costumes dão conta.
A humanidade inteira sabe que roubar e matar é errado, e 99,9% nunca leu uma Constituição.
A humanidade não precisa de lei para punir o crime.
As leis nascem com outra finalidade.
Elas nascem para conter aquilo que os antigos já entendiam como o pior de todos os despotismos, que é entregar a vida de um cidadão, e de todo um povo, nas mãos de um burocrata investido das funções de juiz!
As leis foram inventadas e escritas para proteger os cidadãos da violência judicial!
Vou começar falando de Montesquieu. No livro 12 de sua obra-prima O Espírito das Leis, o francês observa que a liberdade política não pode se limitar a uma realidade abstrata constitucional. A liberdade política apenas se materializa, apenas é real, em sua relação com o cidadão. De que adianta viver numa república regida por leis democráticas, se os cidadãos estão submetidos aos arbítrios e caprichos de seus magistrados?
A liberdade do cidadão, ensina Montesquieu, apenas está assegurada quando a sua inocência não estiver ameaçada, em especial contra os “falsos testemunhos”.
Foi Carondas que introduziu os julgamentos contra os falsos testemunhos. Quando a inocência dos cidadãos não está garantida, a liberdade também não está.
Em todo o livro 12, que trata da relação entre liberdade política e leis criminais, Montesquieu insiste na necessidade de conter o arbítrio dos juízes e, sobretudo, dos falsos testemunhos.
No capítulo XX, o pensador observa que um dos maiores perigos que as democracias oferecem à liberdade dos cidadãos é falta de limites e regras nas acusações públicas.
Acontece muitas vezes nos Estados populares que as acusações sejam públicas e seja permitido a todo homem acusar quem quiser. Tal coisa fez com que se estabelecessem leis próprias para proteger a inocência dos cidadãos. Em Atenas, o acusador que não tivesse consigo a quinta parte dos sufrágios pagava multa de mil dracmas. Ésquines, que havia acusado Ctesifonte, foi condenado. Em Roma, o acusador injusto era considerado infame, e se imprimia a letra K na sua testa. Punham-se guardas junto ao acusador para que não pudesse corromper os juízes ou as testemunhas.
Alguns capítulos antes, Montesquieu já fazia um alerta contra os perigos da “delação premiada”, ao observar que o fim da liberdade política na grandiosa Roma não teve início com os Césares. Antes deles, os romanos já imaginavam leis que culminariam no despotismo.
Deve-se fazer justiça aos Césares; não foram os primeiros a imaginar as tristes leis que criaram. Foi Sila quem lhes ensinou que não se deviam castigar os caluniadores. Logo chegariam a ser até mesmo recompensados.
Em todo o volume, Montesquieu investe contra as punições excessivas, mesmo contra os mais graves crimes, como o de lesa-majestade, porque entendia que elas trariam instabilidade e violência à república, corromperiam os próprios juízes e, por fim, arruinariam a liberdade política de todos os cidadãos.
Como todo clássico, o Espírito das Leis parece falar às nossas agruras de hoje. O pensador investe diretamente contra o punitivismo histérico Lava Jato.
Não se podem realizar grandes punições, e por conseguinte, grandes mudanças, sem colocar entre as mãos de alguns cidadãos um grande poder. Logo, é melhor, neste caso, muito perdoar do que muito punir; pouco exilar do que muito exilar; deixar os bens do que multiplicar os confiscos. Sob o pretexto da vingança da república, seria estabelecida a tirania dos vingadores.
A luta humana contra a tirania, no entanto, remonta às origens mais remotas da nossa civilização.
Infelizmente, a vida é breve e, a cada geração, a humanidade precisa percorrer novamente todo o caminho trilhado desde o início dos tempos, e assimilar, em poucos anos, uma experiência milenar de luta contra o arbítrio.
Entretanto, em nenhum outro lugar, a tese central deste post fica mais clara, de que as leis foram criadas essencialmente para nos proteger dos arbítrios e violências judiciais, do que no Código de Hamurabi, uma das primeiras leis escritas do Ocidente, e que ajudou a promover uma maravilhosa estabilidade política durante a era babilônica, berço da cultura greco-judaica-cristã-persa-muçulmana (que alguns chamam, talvez com razão, de cultura ocidental).
A primeira lei do Código de Hamurabi, conforme tradução literal do francês para o português, feita por mim mesmo, vai direto ao ponto:
§ 1 Se um homem acusa outro homem e lhe imputa um homicídio, mas não pode trazer provas contra ele, o acusador será executado.
É uma interpretação jurídica impressionantemente moderna, porque desconsidera o fator metafísico ou moral da “culpa”. O que vale é a prova!
E impõe um rigor ético absoluto ao acusador: se ele não estiver sendo verdadeiro, então será ele que será sacrificado no altar da lei!
Tanto o zé do powerpoint quanto o carcereiro de Curitiba, se fossem agentes de justiça da Babilônia antiga, não sobreviveriam muito tempo a exigências tão rigorosamente democráticas!
As cinco primeiras leis do Hamurabi parecem ter sido escritas diretamente para Dallagnol, Sergio Moro, e os magistrados do TRF4.
Da primeira já falamos. A segunda lei é um texto meio complicado, meio esotérico, mas que, à luz da conjuntura brasileira, soa como uma metáfora política. É a seguinte: se alguém for acusado de magia, poderá se defender da seguinte forma. Irá se jogar no rio: se as águas o levarem, então a sua culpa estará provada. Neste caso, o seu patrimônio ficará com o acusador. Mas se não se afogar e voltar à terra são e salvo, então sua inocência terá sido atestada por Deus, então é o acusado que ficará com o patrimônio do acusador.
Como as acusações contra Lula, pela Lava Jato, tem muito de esotérico, e como a sua culpa e, sobretudo, o seu risco de prisão, parecem ser medidos não pelas provas (que não existem), mas por sua resiliência ou não em ser tragado pelas águas tumultuosas da mídia, a segunda lei do Hamurabi se aplica perfeitamente neste caso.
Essa lei tem ainda um componente moderno em termos de justiça: há risco, e grande, para a acusação, e não apenas para o acusado.
A terceira lei de Hamurabi vai na mesma linha da primeira e é outro petardo direto no sistema grotesco de delações da Lava Jato: se um homem vai ao tribunal com falso testemunho, e não prova sua declaração, então ele será executado. Ou seja, os juristas da Babilônia já sabiam muito bem dos enganos da delação premiada!
A quarta lei também é uma continuação da primeira. Passemos para a quinta lei, que atinge, desta vez, em cheio, o juiz Sergio Moro e todos os juízes que lhe imitam:
Um juiz deve julgar um caso, alcançar um veredito e apresentá-lo por escrito. Se erro posterior aparecer na decisão do juiz, e tal juiz for culpado, então ele deverá pagar doze vezes a pena que ele mesmo instituiu para o caso, sendo publicamente destituído de sua posição de juiz, e jamais sentar-se novamente para efetuar julgamentos.
Parodiando, com todo o respeito, o famoso poema de John Donne, poderíamos advertir, portanto, aos excelentíssimos ministros do TRF4, que eles não devem entender que as leis constitucionais do Brasil foram feitas para Lula, nem para punir ninguém: as leis foram escritas, prezados juízes, para vocês!
As leis democráticas da Constituição cidadã de 1988 foram criadas para nos defender, a nós, cidadãos, pobres ou ricos, trabalhadores, desocupados ou empresários, das violências e arbítrios dos burocratas responsáveis pelo sistema de repressão!
Eu fico terrivelmente agastado, por isso mesmo, quando vejo algum parlamentar ou jornalista fazendo concessões populistas ou demagógicas à Lava Jato, operação ilegal e golpista, porque ela teria prendido grandes empresários e políticos.
Ora, todos os despotismos, desde priscas eras, para se fazerem populares, agem da mesma forma! Otávio Augusto, o sobrinho tirano de Júlio Cesar, põe fim à qualquer resquício de liberdade política que ainda existia na Antiga Roma, através justamente da perseguição e assassinato de todos os romanos ricos de sua época.
O mais irritante é que se trata de uma demagogia voltada essencialmente para a classe média, porque é ela que sofre dessa inveja patológica da elite do dinheiro, tanto mais doentia quanto ela se sente próxima, por cultura e “mérito”, dessa mesma elite.
É a classe média que goza com a prisão de “empresários”, “ricos” e “políticos”.
O povão não tem essa tara.
O povão quer trabalhar, ganhar um salário decente, levar uma vida digna e sonhar com um futuro melhor para seus filhos.
A elite do dinheiro, para exercer o controle político da classe média, entendeu que é preciso satisfazer o seu fascismo congênito: daí nasce a Lava Jato.
E a elite do dinheiro entendeu que, para derrotar as aspirações da classe trabalhadora, precisava ampliar o controle político exercido sobre a classe média.
A classe média brasileira sempre foi o exército da elite do dinheiro. Para isso, a elite do dinheiro usa a mídia, que transforma a classe média numa espécie de exército de idiotas furiosos, dispostos a qualquer tipo de violência. Todos os instintos psicopatas, doentios, foram exacerbados no processo preparatório do golpe.
Todos se lembram das manifestações do impeachment em 2015. Eram moralmente monstruosas, mas a mídia tratava de ocultar ou minimizar todos os seus “excessos”.
Jamais se via, ou não eram destaque, na cobertura da imprensa, as faixas pedindo intervenção militar, fim da democracia, fim do próprio judiciário!