A resposta à empáfia judicial deve ser uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita
Por Wadih Damous
O Sr. Michel Temer, como é costume na época natalina, editou decreto de indulto, obedecendo ao esforço de reduzir a população carcerária do país, hoje entre as três maiores do mundo, sendo superada, apenas, pelas da China e dos Estados Unidos da América do Norte. Foi por essas e outras que apresentei, à Câmara dos Deputados, um conjunto de 11 projetos de lei com vistas ao desencarceramento.
O indulto natalino é resultado de estudos empreendidos no Departamento Penitenciário do Ministério da Justiça e submetidos ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, da mesma pasta. Não se trata, portanto, de deliberação arbitrária, sem escopo definido. Cuida-se de por em prática política pública de redução de custodiados pelo Estado, para cumprir minimamente com as exigências de dignidade humana que inspiram a Lei de Execuções Penais.
O judiciário brasileiro é tradicionalmente cego para as condições carcerárias no Brasil. Pouco se lixa. Enche as prisões, supondo-as sacos sem fundo. Lava as mãos para as condições dos internos do sistema, verdadeiro aterro sanitário de uma sociedade que desperdiça seres humanos, vidas e destinos. E isso não se muda com iniciativas burocráticas de presidentes do Conselho Nacional de Justiça, de visitar aqui e acolá unidades penitenciárias problemáticas e, depois, dar entrevistas em tom preocupado.
É só lembrar que, por força de ato conjunto do então Ministro da Justiça, Eugenio Aragão, e o Ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do CNJ, ficou estabelecido que a alocação de recursos do Fundo Nacional Penitenciário ficaria condicionada a aprovação prévia por meio de parecer técnico do CNJ. Este ato de profundo significado para a corresponsabilização do judiciário na política penitenciária foi solenemente ignorado pela atual presidente, Ministra Carmen Lúcia, que preferiu fingir que não reparava no desvio de finalidade no uso do fundo praticado por Alexandre de Moraes, quando titular da pasta da Justiça. Esse senhor, em mais um arroubo populista, resolveu usar o fundo para a segurança pública – e isso no meio de mais uma séria crise no sistema que implicou a morte de dezenas de presos no norte do país. A reação do CNJ foi o total silêncio.
Agora, com a pasta da Justiça em mãos do Doutor Torquato Jardim, propõe-se decreto de indulto a beneficiar presos com mais de setenta anos ou que hajam cumprido um quinto da pena, sem restrições sobre a pena aplicada na condenação. Como sempre, ficam excluídos os condenados por crimes praticados com violência e outros classificados como hediondos. Pelo decreto, resolveu-se, também, indultar penas de multa, por certo perseguindo dar condições melhores aos beneficiados de recomeçarem sua vida civil sem o peso de graves dívidas.
Trata-se de decisão política, como lembrou o Doutor Torquato Jardim, tipicamente dentro da competência do poder executivo, que presumivelmente deve ter legitimidade para isso. Digo “presumivelmente”, porque foi essa a intenção do legislador constituinte, a de prestigiar a soberania popular, ainda que, na prática, isso possa não se aplicar ao governo do Sr. Temer, instalado através de um golpe de estado que fez troça do voto de centenas de milhões de brasileiras e brasileiros. Mas esta é outra questão que sequer pode ser levantada pelo judiciário como restrição de validade do indulto, já que coonestou o golpe e hoje se recusa a julgar o mandado de segurança que o coloca em cheque.
Pois bem. Apesar de a Constituição entregar ao chefe do executivo a prerrogativa exclusiva de conceder graça ou indulto, a Sra. Presidenta do STF, Ministra Carmen Lúcia, se deu ao direito, nesta semana, de fazer pouco caso do princípio pétreo da separação de poderes, para suspender, a pedido do Ministério Público Federal, benefícios do decreto presidencial. Desrespeitou, também, seu colega Luís Roberto Barroso, que, instantes antes, havia aplicado o decreto em sua plenitude, reconhecendo o indulto sem restrições ao Senhor Henrique Pizzolato. Sem qualquer apego à lei maior que jurou observar e defender quando tomou posse, a ministra justificou seu ato com a pérola de que o poder de indultar presidencial não seria ilimitado e não poderia implicar impunidade.
Impunidade. A palavra da moda em nossos dias. Tem-se por detrás a ideia de que a punição tudo resolve e a falta dela é sinal de decadência, destruição e perdição. Um ótimo conceito para empoderar corporações de burocratas no complexo judicial-policial. E a gente sabe que o resultado disso tem sido o esgarçamento do tecido institucional do Estado e a deslegitimação da política e, com ela, da própria democracia.
O moralismo punitivista não convive bem com o clamor por justiça e liberdade. É seletivo e discriminatório. O moralista sempre divide as pessoas em boas e valiosas por um lado e em depravadas e más, por outro. Justiça é só para as boas e, para as más, só resta o rigor da expiação. As boas justiciam as más. E quem é bom ou mau fica a critério das corporações musculosas que não têm voto popular.
A punição é instrumento para aprofundar clivagens sociais e aplicá-la constitui poder enorme de submissão de pessoas e grupos. Não resolve as grandes contradições na sociedade, nem diminui problemas de violência, antes os torna mais visíveis. Quem se agarra no poder de punir estigmatiza e exibe o apenado como troféu de pacificação social. Uma enorme hipocrisia. Mas, com ajuda da comunicação de massa, oferece a ilusão da retribuição justa.
É isso que torna, hoje, delegados, promotores e juízes tão prestigiados. A ilusão de fazerem justiça numa sociedade profundamente injusta. Só que a maioria não se dá conta de que eles são a fonte das maiores injustiças. Não são melhores que ninguém. Dão jeitinhos de se locupletarem com facilidades, na forma de prerrogativas, vantagens e remuneração. Acham que parte – uma boa parte – do Estado lhes pertence. Não aceitam críticas nem permitem ser controlados. Acham-se acima do bem e do mal.
O que controla o complexo judicial-policial em qualquer democracia consolidada é a ideia de serviço público. Lá, juízes, promotores e delegados são servidores públicos e administrativamente subordinados aos Ministérios da Justiça e do Interior. Os magistrados têm independência para julgar e, os demais, têm sua autonomia de ação balizada pelos controles jurisdicional e disciplinar. Em última instância, o poder é do povo e em seu nome é exercido: o parlamento pode chamar a dar explicações juízes, promotores e delegados. Isso não implica redução de sua independência no julgamento de condutas e conflitos, mas impede o excesso verbal, o abuso de autoridade e o tangenciamento do interesse nacional.
Aqui no Brasil, esses atores não devem explicação a ninguém. Não são do povaréu e não lhe reconhecem qualquer poder. Ao invés do solene “em nome do Povo” que encabeça as sentenças alemãs, em Pindorama juízes usam o vazio e burocrático “vistos, etc.”. Qualquer crítica a sua atuação é recebida como apoio a criminosos corrompidos. Afinal, eles são anjos e anjos são a pureza imaculada. Só decaídos criticam anjos. Seus órgãos de “controle” são majoritariamente compostos por anjos-colegas escolhidos por colégios de anjos. Não controlam anjos, antes os blindam. Só os anjos decaídos – isto é, os que traíram a causa da corporação angelical – é que sofrem o rigor de punições. Anjos chutam o balde e falam o que querem e ninguém tasca, pois são anjos.
O ato da Ministra Carmen Lúcia foi uma dessas angelicadas. Impunidade. Enche a boca com essa palavra, tão destrutiva e afiada quanto a espada flamejante do Arcanjo Miguel, a expulsar os pretensiosos peladões do Jardim do Éden. O Ministério Público Federal pediu e pronto: já foi atendida a demanda, irrespectivamente da gravidade da ruptura do modelo constitucional de convívio harmônico entre os poderes.
O que se segue na motivação do ato é uma sopa de letras, sem pé, nem cabeça. Puro achismo, sem qualquer profundidade doutrinária. A única certeza é a inconformação de sua autora e de quem a provocou com a possibilidade de condenados se livrarem soltos. Impunidade.
Essa impunidade que se estabeleceu como alvo da tal Operação Lava-Jato, a que tudo pode, àquela que é permitida qualquer ilegalidade, como tornar pública gravação ilegal de conversa telefônico da Presidenta da República. O STF não reagiu. Moro virou um patrimônio intocável do conservadorismo punitivista que pulula no judiciário. É anjo. É dos bons. Para ele, criminosos são sempre os outros. Vale rasgar a Constituição para preservar sua sacrossanta operação de lustração política. Ainda que haja, entre seus condenados, poucos potenciais beneficiados pelo indulto do Sr. Temer, já que, para a maioria, a sentença condenatória não transitou em julgado, impõe-se se impedir, a todo custo, que se livrem soltos. A Sra. Presidenta do STF não teve pejo de motivar sua decisão com essa barbaridade.
Ora, é da essência do indulto permitir que condenados se livrem soltos. Todo indulto confronta a punição e a desconstitui. É um poder que a lei fundamental deu ao magistrado maior do país, a quem senta na cadeira de eleito pelo povo, coisa que ministras e ministros do STF não são (aliás, a rigor, o Sr. Temer ali se aboletou ilegitimamente, mas com apoio do STF, sempre é bom lembrar).
E, sim, Ministra Carmen Lúcia, o poder de indultar é, de certa forma, ilimitado sim. É exercido por quem também pode conceder graça, o perdão total da pena. Ora, se o presidente pode agraciar, pode, por indulto, perdoar tudo também. É um poder politicamente motivado. Tem caráter discricionário e seu exercício só exige que seja balizado criteriosamente, dentro dos parâmetros de conveniência e oportunidade. Uma vez estabelecidos esses parâmetros, não podem ser objeto de revisão judicial, porque compõem mérito administrativo e, para defini-lo, há que se ter a legitimidade política que um escriba burocrata de tribunal não tem, por mais alta que seja sua corte.
A suspensão parcial do indulto presidencial foi uma violência. Mais uma, dentre as inúmeras que nosso Estado de Direito vem sofrendo pelo abuso judicial de uns anos para cá. Mais precisamente, desde a famigerada Ação Penal 470, que permitiu ao STF julgar por suposições moldadas com base num quadro teórico a priori, sem qualquer consistência empírica séria. Foi aplaudido, encheu ego de magistrados e promotores e serviu de exemplo para outras aventuras persecutórias na chamada Operação Lava-Jato. Agora só faltava proibir o presidente de indultar.
É a reprodução da experiência protagonizada por Roland Freisler no tribunal popular do Reich nazista: o julgamento dos inimigos pelo “sentimento são do Povo”. Tristes tempos, em que Carl Schmitt encontra novos adeptos entre sedizentes constitucionalistas pátrios. É a valorização do estado de exceção como demonstração “mais sublime” da soberania estatal.
A recuperação de nossa democracia passa pela necessidade de desarmar essa bomba fascista. Não se pode admitir, num Estado democrático de Direito, que um poder sem voto se sobreponha aos demais, sem quaisquer limites e controles e queira ditar toda a agenda política do país, com canhestra visão punitivista. Não se vai a lugar nenhum deslegitimando a política feita pelos políticos. Por pior que sejam, esses políticos podem ser destituídos pelo voto popular, enquanto os anjos jurisdicionantes não o podem.
A melhor forma de colocar os pingos nos “i”, de reagir à empáfia judicial e restaurar o legítimo embate democrático no governo e no Congresso é uma anistia ampla, geral e irrestrita, que ponha fim às práticas de juízos politizados e deem aos atores do complexo judicial-policial um recado claro: quem manda é o Povo através de seus representantes. Anistiados, todos os políticos – os “bons” e os “maus”, assim classificados pelos anjos togados – poderão participar da grande festa democrática da eleição de 2018 e o eleitor que julgue quem é e quem não é digno de seu voto. O judiciário deveria tratar, depois, de respeitar a soberania popular.
Wadih Damous – Deputado Federal pelo PT/RJ. Ex Presidente da OAB/RJ