(Obra de Thomas Barbey)
Uma nova Idade Média e o seu fim inevitável
por Fábio de Oliveira Ribeiro
SEG, 18/12/2017 – 08:55
Um dos aspectos mais curiosos da crise brasileira é a aparente unidade das Forças Armadas do Brasil. O programa de modernização da Marinha, baseado na construção de submarinos nucleares, foi abortado pela Lava Jato com a condenação e prisão do Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. O projeto de renovação da Força Aérea está sendo ameaçado pelo MPF. Mesmo assim, os almirantes e brigadeiros sempre aparecem sorridentes ao lado do comandante do Exército.
Dentro do Exército as coisas são ainda mais estranhas. Num dia centenas de generais se reúnem reforçando o discurso oficial de preservação da democracia (muito embora ela tenha sido atropelada por um golpe parlamentar/judicial). No outro, um general falastrão vai à imprensa cogitar a possibilidade de intervenção militar (eufemismo utilizado para disfarçar o aprofundamento do golpe de 2016). A estranha tranquilidade que reina entre os militares, não pode ser vista nem no Legislativo nem no Supremo Tribunal Federal.
No Legislativo o mal-estar é provocado pelo crescimento da candidatura de Lula e pela proposta do ex-presidente petista de realizar um plebiscito para revogar todas reformas neoliberais impostas ao Brasil pelos golpistas. No STF, que certamente será convocado a decidir sobre a possibilidade e/ou validade do resultado do plebiscito desejado por Lula caso ele seja realizado, as acusações e ofensas trocadas por membros Corte durante sessões de julgamento se tornaram mais frequentes, bizarras e desagradáveis. Todavia, as discussões entre os Ministros do STF não resultaram em rompimento (ou seja, nenhum deles convocou militares para prender seus adversários).
Tudo isso, parece confirmar a opinião de professor da Faculdade de Direito de Lyon que tentou interpretar o Brasil:
“A solução de um conflito entre o Exército e a Marinha poderia ter conseqüências mais perigosas. O Govêrno dos Juízes pode ser meio durável de governo, porque no interior de tribunais imiscuídos na política, a lei da maioria permite suprimir os conflitos ou sumprimi-los de maneira muito mais segura e pacífica do que em outras assembléias. Quando os chefes de um Exército são levados a tomar decisões políticas, a lei da maioria dificilmente pode evitar os conflitos de opinião e, mesmo conseguindo impor-se, o espírito militar sairia enfraquecido.” (Os Dois Brasis, Jacques Lambert, Brasiliana – volume 335, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 273/274)
Lambert, porém, não deixou de fazer uma advertência importante. Quando os juízes assaltam o poder político “… a diversidade de opinião dêstes últimos não oferece grandes perigos, a não ser talvez, para a serenidade da justiça.” (Os Dois Brasis, Jacques Lambert, Brasiliana – volume 335, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 273). O estudioso francês, porém, não foi capaz de perceber o verdadeiro alcance de um regime político centralizado nas mãos do Poder Judiciário.
Os juízes brasileiros constituíram casta e vem sua atividade como uma espécie de sacerdócio que passa de pai para filho. Eles preferem se manter apartados da população e cultuam uma exagerada fidelidade corporativa. No Brasil, o corporativismo dos juízes chega a ser tóxico. Tanto que eles defendem um privilégio que não existe em nenhum outro lugar: a aposentadoria remunerada compulsória como maior punição imposta a um juiz que comete crimes no exercício da função.
Ciosos dos privilégios senhoriais que desfrutam, os juízes alimentam a crença de que pertencem a uma elite, de que eles são o que existe de melhor intelectual e moralmente na sociedade. Em razão de sua origem familiar e econômica, os juízes brasileiros demonstram arraigada aversão à Política e ódio à Democracia. Eles desejam limitar o espaço da primeira e controlar a livre expressão da segunda, pois no imaginário deles ambas (Política e Democracia) são ou podem ser fontes daquilo que eles mais temem: uma inversão na hierarquia social. Eles gostam de julgar, mas detestam ser julgados. Não foi por acaso que eles apoiaram o golpe de 2016.
A mim parece evidente que, com exceção da hereditariedade, os juízes se assemelham, de certa maneira, aos clérigos da Idade Média. Isso explica os métodos medievais que alguns deles passaram a usar para destruir lideranças petistas e interromper programas de inclusão sociais criados pelo PT. E já que estamos falando desse assunto nunca é demais lembrar as palavras de outro estudioso:
“… a próxima Idade Média deveria durar cerca de um século. A duração deveria ser ligeiramente maior nos Estados Unidos, onde a nova era se iniciará antes do que outros lugares. O renascimento seguinte poder-se-ia iniciar quase que em qualquer lugar – no Brasil, no México, na Argentina, na China, no Japão, na Suécia – mas parece mais provável que se verifique uma convergência de fenômenos similares em lugares muito distantes uns dos outros, já que, verossimilmente, um dos frutos da presente civilização que não se desperdiçará será o das comunicações rápidas, pelo menos, por via do rádio (ainda que não por meio do satélite, porque não mais existirá uma organização capaz de assegurar a periódica substituição dos satélites ‘estáveis’ para telecomunicações). E se as idéias poderão ser comunicadas rapidamente, a nova civilização poderá surgir com aspectos uniformes em países diversos e longínquos, visto que o único renascimento que poderemos imaginar deve implicar necessariamente na existência de um movimento de idéias novas.
Nos primeiros meses de 1971, algum indício econômico sugeriu que a retração experimentada em grande parte do Ocidente poderia encaminhar-se para o seu final: se, em lugar disso, o slump continuar, a crise final poderá ser retardada por alguns anos. Após a retração, ver-se-á um novo boom e isso (o que se verificará a seguir) poderá levar à instabilidade e ao abalo.
Entre 1985 e 1995, a Idade Média já estará se iniciando.” (A Próxima Idade Média, Roberto Vacca, Pallas S/A, Rio de Janeiro, 1975, p. 128)
A nova Idade Média chegou, mas pelas mãos do neoliberalismo e não por causa da crise sistêmica do capitalismo imaginada por Roberto Vacca. A catástrofe que nós vivemos não é fruto de uma hecatombe econômica e sim do colapso da idéia da igualdade social. A desigualdade crescente entre ricos e pobres começou nos EUA durante o governo Ronald Reagan (anos 1980) e de lá se espalhou pelo Ocidente. Nos países em que essa desigualdade já existia e começava a declinar (caso do Brasil), a chegada da nova Idade Média ocorreu pelas mãos dos juízes: foram eles que em 2016 se encarregaram de apoiar e legitimar a interrupção do processo de inclusão social e de construção da igualdade social por intermédio da Política e da Democracia.
Toynbee acreditava o o homem “…deveria viver para amar, compreender e criar.” (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 13) e que o “… amor verdadeiro é um sentimento que supera o egocentrismo, que se expressa numa atividade extrapessoal em benefício dos outros.” (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 15). Mas ele também sabia que o “…sentimento racial é uma ameaça à paz mundial e um obstáculo à unidade da humanidade.” (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 160).
Movidos pelo egoísmo, os juízes brasileiros criaram um regime infame que se apóia tanto no racismo criminoso quanto no ódio à igualdade social manifestado pelos neo-escravocratas que apoiam as reformas neoliberais. A guerra movida aos pobres e aos seus líderes fica mais evidente quando prestamos atenção na maneira como os juízes se posicionam. Lula foi condenado por um crime que ele não cometeu e não poderia ter cometido (o Triplex era da construtora e havia sido dado em garantia a CEF), os juízes delatados como beneficiários de propinas pagas no âmbito da Lava Jato nem foram investigados. Os juízes apoiam a reforma da previdência, desde que os benefícios previdenciários deles (que já são maiores do que os dos demais cidadãos) não sofram qualquer corte.
A presidenta do STF disse há algum tempo que um estudante custa 13 vezes menos do que um preso. A racionalidade do argumento econômico que ela utilizou em favor da educação esconde algo importante. Se não existisse uma guerra movida contra a juventude brasileira pelas gerações mais velhas (inclusive e principalmente a dos juízes) os jovens não seriam vistos como um peso para a sociedade. Advogado, jornalista, professor e político, Freitas Nobre disse que:
“O jovem vive da esperança e do ideal.
Não matemos nele o que a juventude sempre traz de melhor, para que a sociedade não venha a morrer de tédio nem afogar-se na melancolia do arrependimento tardio.
Ou compreendemos o jovem na sua função renovadora e nas responsabilidades de todas as épocas pelas mais justas mudanças da estrutura social, ou estaremos matando na sua fonte, o espírito de atualização que é a característica dos moços de todas as épocas.” (Constituinte, Freitas Nobre, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978, p. 120)
A nova Idade Média imposta ao Brasil pelos juízes adeptos do neoliberalismo é ainda mais cruel em relação aos jovens pobres. Os investimentos em educação foram congelados e as universidades públicas estão sendo sucateadas, mas os empregos criados após a Reforma Trabalhista não proporcionam e não proporcionarão renda suficiente para que eles possam pagar universidades privadas. Vítimas do racismo e da violência policial e ruralista, os jovens de origem indígena, mestiços e negros são os que se tornaram mais vulneráveis após o golpe neoliberal legitimado por juízes medievais. Eles não tem mais o direito de sonhar com a libertação através da educação.
Abandonados à própria sorte pelo regime neoliberal infame criado com ajuda dos juízes medievais, os jovens brasileiros que recorrerem à violência serão processados, condenados e encarcerados por homens brancos, cultos e bem-sucedidos de meia idade. O perfil socioeconômico da magistratura brasileira (transcrito abaixo) revela um dado importante: gostemos ou não, no Brasil a guerra entre o Judiciário e a sociedade é sobretudo uma guerra racial e programaticamente racista.
“A magistratura brasileira é composta majoritariamente por homens. Segundo os números preliminares do Censo dos Magistrados, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no final do ano passado, 64% dos magistrados são do sexo masculino. Eles chegam a representar 82% dos ministros dos tribunais superiores. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (16/6), no Plenário do CNJ, durante a 191ª Sessão Ordinária do Conselho.
Realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) entre 4 de novembro e 20 de dezembro de 2013, o levantamento também aponta que a maioria da magistratura é casada ou está em união estável (80%) e tem filhos (76%). A idade média de juízes, desembargadores e ministros é de 45 anos. Na Justiça Federal estão os juízes mais jovens, com 42 anos, em média. Em geral, a carreira dos magistrados começa aos 31,6 anos de idade, enquanto a das magistradas começa aos 30,7 anos.
Em relação à composição étnico-racial da carreira, juízes, desembargadores e ministros declararam ser brancos em 84,5% dos casos. Apenas 14% se consideram pardos, 1,4%, pretos e 0,1%, indígenas. Segundo o censo, há apenas 91 deficientes no universo da magistratura, estimado em pouco mais de 17 mil pessoas, segundo o anuário estatístico do CNJ Justiça em Números, elaborado com base no ano de 2012.”
O que fazer? A resposta dos golpistas ao previsível aumento da criminalidade juvenil nos próximos anos será o aumento da repressão policial e do encarceramento. A supremacia do Direito Penal do Inimigo sobre os princípios constitucionais do Direito Penal e do Direito Processual Penal já era uma triste realidade antes do golpe de 2016. Tudo indica que isso vai piorar, razão pela qual segue sendo relevante a advertência feita por um eminente político norte-americano:
“Alguns – talvez já agora uma maioria de americanos – apregoarão que a resposta ao nosso problema criminal está em ‘ser duro’ com os criminosos, voltando aos tempos em que os métodos de repressão estavam inteiramente fora do âmbito da supervisão judicial. Há uma crença amplamente difundida que ‘tribunais estão mimando os criminosos’ e que os ‘direitos do indivíduo estão destruindo os direitos da sociedade’. êstes pontos de vista, por mais preponderantes que sejam são errôneos e perigosos. São errôneos porque consideram a relação entre liberdade individual e crime; são perigosos porque ameaçam direitos constitucionais vitais, sem fornecer nenhuma solução real ao aumento do crime.” (Decisões para uma década, Edward M. Kennedy, Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1968, p. 81/82)
A única solução viável para o Brasil é resgatar a dignidade da Política e da Democracia proporcionando inclusão social inclusive e principalmente pela expansão e melhoria do sistema público de educação. E o sistema de justiça brasileiro – notoriamente caro, ineficiente e programaticamente racista – terá que ser obrigado a ajudar a pagar esta conta. A guerra movida aos pobres, pardos, índios e negros com ajuda dos juízes tem que necessariamente resultar numa ampla reforma do Poder Judiciário, com a extinção de privilégios, redução dos salários nababescos, equivalência previdenciária entre as autoridades judiciárias e os demais servidores públicos e a punição efetiva e dura dos abusos que foram e que serão praticados pelos sacerdotes togados da nova Idade Média brasileira. Mas para que isso ocorra, a esquerda terá que contar com o apoio das Forças Armadas ou, pelo menos, da maioria dos oficiais das três armas.