Por Roberto Bueno
13 de Dezembro de 2017
Em apertada síntese podemos assumir que há, pelo menos, duas grandes possíveis caracterizações da organização da vida política e jurídica ordinária, a saber, os tempos de normalidade e os de exceção, e não é necessário optar pelo segundo para encaminhar os dilemas e desequilíbrios do primeiro. Os primeiros tempos diferem conceitualmente de modo radical dos segundos pelo fato do funcionamento e aplicação das normas de modo equânime, geral e indiscriminado, sem pessoalidade, favorecimento nem seletividade, mas também se diferencia pelo ordinário funcionamento das casas legislativas com nível aceitável de influência da generalidade dos cidadãos sobre as decisões tomadas, sendo que nenhuma destas características pode ser compartilhada pelos tempos excepcionais.
Malgrado a essencialidade das caracterizações, todavia restam grandes contingentes de homens e mulheres no Brasil que não terminam de ser convencidos de que o país vive em um Estado de exceção, suplantando os termos pactados em um já deficitário Estado-democrático-álibi. Homens e mulheres estão envoltos em um mundo de aparências manipulado para que não emerja a realidade, aprisionada em uma torcida representação imagética, tal como em um hábil jogo de espelhos, um atraente e persuasivo revestimento de sempre renovadas fantasias, distinção que ainda está por ser realizada pelos destinatários da retórica e da manipulação que interessa ao poder, inversão que é o pressuposto para a reação a este mundo de sombras e enganosas sujeições.
À parte um considerável conjunto de transgressões à ordem legal, articuladas pela 13ª Vara Federal e o Ministério Público Federal (MPF) Lava-Jatista curitibano, de ordem constitucional inclusive, é notável o desdém com que os atores judiciais da Magistratura e do MPF curitibano tratam a matéria legal, o descaso e desprezo com que operam no mundo jurídico. Sob tal égide cultural-jurídica o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF–4) logo consolidaria que o Estado de exceção estava mesmo instaurado no Brasil. O relator do recurso feito ao Tribunal em face de decisão do Juiz Moro, Des. Rômulo Pizzolatti, terminou por referir-se aos autos da Reclamação no. 23.457 relatado pelo Ministro Teori Zavascki de modo enviesado, disposto a comprometer o seu conteúdo crítico, malgrado tímido em sua necessária função punitiva finalmente esquecida.
O voto do Des. Pizzolatti retomou a teoria do Estado de exceção de fonte indireta, o Ministro Eros Roberto Grau, e não a Schmitt nem seu atento leitor Agamben. Pizzolatti elabora um texto bastante débil em que afirma com Eros Grau que a “[…] norma jurídica incide no plano da normalidade, não e aplicando a situações excepcionais […]”,mas não é capaz de justificar por qual motivo seria válida a afirmação de que a norma jurídica não transcende ao plano da normalidade e nem por qual motivo ela deveria ser aplicada a situações excepcionais e, ainda muito menos, de caracterizar devidamente a situação em que a norma jurídica deveria ser suspensa e, portanto, delineada a moldura de aplicação do conceito de Estado de exceção. Sem embargo, mesmo quando tivesse proposto tal desafio e o tivesse levado a sério, o resultado seria absolutamente ilegal do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, que de forma alguma admite que os órgãos do Poder Judiciário transijam com seu dever legal de aplicar a legislação.
O acolhimento da tese de Pizzolatti foi acolhida pelo TRF–4 resultou na declaração judicial do Estado de exceção sob o pífio pretexto de que a Operação Lava-Jato constituía um “[…] caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. A exceção é sempre trazida à tona sob pretextos históricos vários mas em todo o caso com a pretensão de salvação em face de um grande mal que justifica a agressão à ordem jurídica, e o grave problema é o nefasto ataque que concretiza a uma ordem política assentada no princípio da representação em face de que o poder togado não dispõe de qualquer representatividade.
Sob tal ordem argumentativa Pizzolatti dá lugar a transformação e posterior compreensão implícita do ordenamento jurídico como bifronte, como se estivesse composto por duas ordens em uma só, uma para os casos comuns e outra para os casos excepcionais, quando, então, o próprio direito seria suspenso pelo guardião, não mais político, mas jurídico. Sobre esta frágil base argumentativa Pizzolatti pretendeu justificar que a gravação da conversa entre a Presidente da República, Dilma Rousseff, amparada por proteção judicial e de competência do Supremo Tribunal Federal (STF), fosse tornada pública pela 13ª Vara Federal quando tampouco competência tinha para apreciá-la, o que tampouco era o caso, mesmo que fosse legalmente obtida, o que também não ocorreu. Rigorosamente, a decisão do TRF–4 esteve perpassada pelo reconhecimento implícito das ilegalidades cometidas pelo Juiz Moro, não restando outra opção para evitar a sua punição senão suspender o Estado democrático de Direito e mobilizar discreta mas eficazmente o conceito de Estado de exceção.
Sorrateiramente o TRF–4 rasurou e definitivamente maculou os princípios políticos embasadores do acordo constitucional de 1988 sem autorização nem mandato político expresso para tanto. É perceptível o deslocamento do poder para a instauração do Estado de exceção desde os clássicos dos séculos XIX e XX, Carl Schmitt incluído, em que a competência era exercida pelo Poder Executivo, enquanto no novo e emergente modelo o poder é formalmente exercido pelo Poder Judiciário em associação com o Ministério Público cujo processo de unificação umbilical leva a que o qualifiquemos como um poder único, o poder togado, cuja comum falta de moderação e contenção permite que invadam e destruam a soberania política popular, inexpugnável fundamento da democracia.
Esta é uma leitura que precisa ser feita neste momento crucial da vida política nacional, eis que, quando já é passado mais de ano desta citada decisão do TRF-4, encontramos as marcas do alargamento e agravamento de seu alcance, sendo clara a percepção da situação em que vivemos em que as violências recrudescem, a exemplo do recentemente ocorrido na UFMG sob o patrocínio conjugado de autoridades públicas. O tétrico cenário da condução coercitiva sem prévia citação de Reitor e ex-Reitores assim como de professores bem caracteriza o cenário excepcional cujo acabamento foi desenhado pelo TRF–4, em autoritária desautorização e substituição do poder constituinte popular, consolidando o Estado de exceção até então não declarado.
A honrar ao menos alguns breves trechos de seu artigo publicado em 2004, o Juiz Moro deveria vir a público uma vez mais, mas agora para repelir os abusos, posto que naquele ano ao analisar o caso Miranda elogiava o fato da Suprema Corte dos EUA ter apoiado “[…] coibir a extração forçada, por meios físicos ou psicológicos, de confissões em casos criminais”. Ao menos neste trecho encontramos o que poderíamos designar como um Moro contra Moro, que então revelava disposição para reconhecer o alto valor do avanço da jurisprudência norte-americana em matéria garantista, concluindo, assim, “O fato de que a Corte agiu bem”. Aplicássemos o elogiado caso Miranda às decisões do próprio Moro e a manutenção de suas decisões pelo TRF–4 e logo depararíamos com profunda contradição.
Ao decidir sobre recurso impetrado no bojo da operação Lava Jato contra decisão do Juiz Moro, arguia-se o fato de que os limites da mais estrita legalidade haviam sido transgredidos pelo titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, no caso, quando autorizou a instalação de grampos telefônicos em escritório de advocacia ligado à defesa de um dos principais alvos da referida operação, o Presidente Lula. Em si, a interceptação telefônica de um advogado de defesa já consistiria um fato gravíssimo que violaria as prerrogativas do profissional mas também o direito de ampla defesa do seu cliente, mas a isto ainda se somariam outras tantas procedentes queixas sobre ilegalidades na produção de provas no curso do citado processo. Juntamente a ofensa pontual sobre as prerrogativas do advogado e o amplo direito de defesa de seu cliente foi desrespeitado um dos fundamentos das garantias da democracia previstas na Constituição Federal, e isto sem que os passos fundantes do regime de exceção dados pela ação conjugada da referida Vara e do MPF-PR fossem enfrentados e devidamente punidos pelo STF, senão o contrário, a omissão de seus ministros apenas reforçaram a anomalia.
Gravíssima e indiscutível violação legal da 13ª Vara Federal curitibana decorreu da gravação de conversa entre o então ex-Presidente Lula e a última Presidente legítima da República brasileira, Dilma Rousseff, que sabidamente foi realizada fora do prazo previsto para que fosse realizada a interceptação, ademais contendo conversas de pessoas alheias a investigação e, por fim, ao envolver a Presidência da República, o juízo federal curitibano perde competência para tratá-la, sendo dever a imediata remessa para o STF, o que tampouco foi realizado. Claramente foi transgredida base legal pela Vara curitibana conduzida pelo Juiz Moro, em especial o art. 102, inc. I, “a” e “b” / CF-88.
Não apenas o contexto político da época sentiu os efeitos das decisões e das omissões do Poder Judiciário e do Ministério Público como até hoje elas se fazem sentir. A citada violação foi agravada pela manutenção da decisão da primeira instância tomada pelo Juiz Moro por parte do TRF–4, cuja decisão colegiada foi pelo arquivamento da densa e muitíssimo consistente representação elaborada pela defesa do ex-Presidente. As feras foram libertas de suas jaulas naquele momento em que o TRF–4 e o STF decidiram não punir o Juiz Moro mesmo quando violou à luz do dia a competência do STF no que concerne a gravação da Presidente da República. O STF apresentou publicamente toda a sua debilidade e enfraqueceu a jurisdição constitucional quando de suas respectivas “[…] recusa[s] das Cortes no enfrentamento dos problemas constitucionais mais sérios”. Esta recusa foi explicitada quando o Plenário do STF seguiu entendimento do ministro Teori Zavascki de ser completamente descabida a justificativa do Juiz Moro quando invocou o “interesse público” para divulgar o conteúdo das gravações ilegais envolvendo a Presidente Dilma e o então ex-Presidente Lula.
Foi no dia 22 de setembro de 2016 que o TRF–4 decidiu por 13 votos a 1 – explicitou em sua decisão que o Brasil vivia um momento excepcional e que, portanto, também as soluções precisariam ser excepcionais, com o qual, vale dizer, reconhecia abertamente a ilegalidade das decisões tomadas pelo Juiz Moro mas, ainda assim, as mantinha, e isto em face da excepcionalidade do momento, vale dizer, organizando uma argumentação teleológica que, rigorosamente, definitivamente acasalaram o referido TRF–4 à lógica jurídica de tribunais operantes nos mais diversos períodos ditatoriais conhecidos. Assim, o TRF–4 assumia a versão togada da posição do soberano político schmittiano, reconhecível como aquele que decide sobre o Estado de exceção, sendo assim implicitamente reconhecido (por ser suportado) ilimitado poder jurídico.
Esta é a aplicação concreta da regra schmittiana de que as normas jurídicas válidas e ordinariamente aplicáveis não podem nunca assimilar uma exceção absoluta e, portanto, nunca é capaz de justificar a decisão tomada sobre a exceção. Portanto, uma decisão sobre o Estado de exceção não precisa estar deslocada do ordenamento jurídico, pois é um poder oscilante entre a sua inserção no ordenamento jurídico e a sua posição externa ao mesmo em face de seu poder de suspendê-lo assim como se reafirmá-lo. É necessário compreender que haverá um salto lógico nos documentos que o instaurem, pois, como diz Schmitt valendo-se de Mohl, que a “[…] prova da existência de um Estado emergencial não pode ser jurídica [e], então ele parte do pressuposto de que uma decisão, no sentido jurídico, deve ser totalmente afastada do conteúdo de uma norma”.
Foi assim, então, que aquele dia 22 de setembro de 2016 pode ser recordado como o momento em que a versão jurídica do soberano schmittiano emergiu no cenário moderno da política brasileira dentro do período do golpe de Estado de 2016, deslocando a intensidade do poder concentrado na figura do Poder Executivo para as sombras, para a obscuridade das ações e inspirações que movem o mundo togado, unificador do poder político para reafirmar a supremacia de seu poder. A nova face do Estado de exceção despreza a soberania popular em que o poder político deve estar calçado, senão que estimula a sua corrosão pública para que os atores togados possam assumir a condição de legitimidade negada ao político, e sob tal luz e visão casar ao seu poder oligárquico a densidade e o reconhecimento público de sua função de estabilizador social através da aplicação da legalidade.
A partir de então, é ele quem decide sobre a vigência do Estado de exceção, tanto de seu início como de seu final – algo que não se encontra em nosso horizonte imediato –, a partir do que podemos compreender que esteja nas mãos do Poder Judiciário as possíveis interdições, alvos que nas próximas eleições presidenciais no Brasil são bastante bem definidos.
Naquele momento o notável e corajoso voto de dissenso do Des. Rogério Favreto, divergindo de que a referida operação não precisaria seguir as regras processuais comuns, vale dizer, que a básica compreensão do direito formado por normas abstratas e gerais, válidas para todos, sem exceção, não se aplicariam no âmbito da Lava Jato. A noção básica do direito como igualdade em face das regras imponíveis a todos também de forma igual estava sendo gravemente violada naquele momento e, por conseguinte, inaugurando técnico-juridicamente o momento do Estado de exceção no Brasil e formalizando uma prática que já era constante no âmbito da referida operação declaradamente endereçada a eliminar a corrupção do mundo.
Via inversa, o Des. Rômulo Pizzolatti tangenciava reconhecer qualquer ilegalidade nos atos do juiz Moro, justamente pelo ineditismo da situação enfrentada pelo juízo curitibano, como se se tratasse de uma nova versão do ocasionalismo jurídico-político, necessário para apoiar a implementação de uma ordem em que os princípios fundamentais da ordem democrática seriam dispensáveis em face de um bem superior, no caso, identificado com o declarado combate à corrupção, então, como hoje, colocada no foco da atenção pública e como elemento mobilizador para justificar quaisquer medidas. É desprezado o conhecimento ordinário de que a teoria jurídica confirma ser o direito incapaz de completa previsibilidade dos fatos e eventos futuros e, portanto, certamente sempre existirão lacunas, e desta forma mesmo quando problemas inéditos se apresentem, não estarão a permitir soluções inéditas para além dos limites da legislação democraticamente constituída. Portanto, isto não autoriza o argumento do Des. Pizzolatti de que a excepcionalidade das circunstâncias não permitiria mesmo que o direito disponibilizasse opções normativas ao juízo, e neste aspecto reforça a visão do decisionismo schmittiano indicativa de que “Toda decisão jurídica concreta possui um momento de conteúdo indiferenciado, porque a conclusão jurídica não é deduzível até a última de suas premissas, e a circunstância da necessidade de uma decisão continua sendo um momento determinado, independente”.
Esta a centralidade do argumento do Des. Pizzolatti em que engendra o decisionismo judicial onde deveria encontrar alternativas na teoria jurídica e em seus argumentos mais sofisticados, e nem sequer submetida aos limites e critérios menos sofisticados que a hermenêutica possa apresentar, o que pode ser resumido na afirmação schmittiana de que “Naquele momento a decisão torna-se independente da fundamentação argumentativa e passa a ter um valor independente”. A opção de desvincular a decisão de referenciais argumentativos ancorados no arcabouço normativo vincula a decisão ao que Schmitt qualificou como valor independente, e este é momento que marca o descolamento e derradeiro desprezo pela teoria democrática do direito, e foi com uma tosca alternativa que o voto do Des. Pizzolatti remeteu à revogação da ordem democrático-constitucional supostamente redentor dos supostos males da sociedade brasileira através da decisão jurídica que representaria uma espécie secularizada do milagre na terra.
Esta é a fotografia mais precisa e bem acabada do momento em que o emergente poder togado formalmente desprezou o núcleo duro da democracia, vale dizer, da vontade popular concretizada no arcabouço jurídico, a despeito dos seus vícios institucionais. A isto o poder togado se encontra formalmente vinculado em suas atividades funcionais, mas que encontra atores jurídicos centrais dispostos a, como Moro, apoiar o libertarismo aristocrático-autoritário dos juízes, reconhecendo que “O fato é que não é viável a interpretação da Constituição sem o recurso a elementos fora do Texto, o que autoriza atividade mais criativa por parte do juiz Constitucional”. O alargamento da hermenêutica para limites voluntaristas insondáveis abre as portas para o decisionismo jurídico.
Esta perspectiva demolidora da democracia e dos avanços para além da legalidade foram levados a termo por parte do poder togado já era defendida pelo Juiz Moro há quase 15 anos. Assim, em artigo publicado em meados de 2004, atacava os críticos da jurisdição constitucional, ao tempo em que sublinhava o papel do ativismo e das excessivas funções dos juízes, subliminarmente compreensível como extra-legal mas que, como veríamos posteriormente, adentraria no pantanoso campo da ilegalidade no desempenho de suas funções. Naquele momento, para Moro, “[…] de todas as críticas que podem ser feitas a tal argumento ele perde força quando a atividade da jurisdição constitucional é justificada em vista do mau-funcionamento da democracia e orientada a eliminar obstáculos ao seu ótimo funcionamento”. Moro não manteve qualquer preocupação com a proteção da democracia, senão ao contrário, ao adentrar no pantanoso e letal território ao emascular o poder político e o atribuir para operadores jurídicos concursados sem qualquer representatividade popular. Em seu texto não há qualquer preocupação com a delimitação dos níveis de ativismo ou intervenção apoiada, que em nenhum caso uma democracia madura poderia admitir a ponto de que pudesse alcançar os termos de sua própria revogação expressa.
Quando o tão acertado quanto corajoso voto do Des. Favreto foi vencido contra a afirmação de outros 13 foi colocada pá de cal no Estado democrático de Direito, e a Constituição Brasileira de 1988 foi atacada em seu cerne, descolada de seus preceitos basilares, hipotecando o futuro através do desencorajamento de homens e mulheres a submeter-se e acreditar na validade das normas jurídicas para todos os cidadãos. Mesmo que em sentido diverso da citação de Schmitt, continua muito atual ter presente que soberano é quem decide sobre o Estado de exceção, e hoje, conforme vimos, este poder foi deslocado da esfera da política para a esfera do poder togado que agora pretende determinar quem exercerá o poder político através do exercício efetivo do poder de agenda. Mas se esta é uma derrota da democracia, é preciso entender que tal perda não é definitiva, pois o tempo aliado à ação serão os mais eficazes dissolventes contra a instituição do Estado de exceção.
* Doutor em filosofia do direito e colunista do blog Cartas Proféticas