Leia a transcrição completa da conversa entre o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) e o Almirante Othon Pinheiro.
O vídeo da conversa segue abaixo:
Wadih Damous: Olá, pessoal! Amigos e amigas, vamos fazer uma transmissão extraordinária. Extraordinária, porque eu estou ao lado de um homem extraordinário. Eu estou ao lado do Almirante Othon Pinheiro, um cientista brasileiro de renome mundial, um herói brasileiro (assim eu o reputo), a quem vim visitar, e ele aceitou conversar conosco. Ele está no Brasil, país que tanto ama e para o qual tantos serviços prestou, ao país e ao povo brasileiro. Isso não sai no Jornal Nacional, não sai no Fantástico, no Estadão, na Folha de São Paulo. Isso aqui é o ambiente da democracia. Infelizmente, a democracia, hoje, foi relegada a um plano menos que secundário, no Brasil. E o que nós estamos fazendo aqui é um diálogo com todos os democratas, com todos aqueles que amam o Brasil, que querem um desenvolvimento brasileiro, econômico, político, social, autônomo, todos que querem um Estado brasileiro forte para seu povo, que seja capaz de prover, de suprir as necessidades básicas de seu povo. E eu estou aqui com um homem que sempre idealizou isso. O Almirante Othon Pinheiro.
Então, Almirante, antes de mais nada, eu quero agradecer a sua gentileza em aceitar conversar conosco. Então, Almirante, até para que os jovens, que apenas o conhecem pelo nome, o conhecem até por lenda, seria importante o senhor falar quem é o senhor, enfim, o que o senhor fez, o que o senhor pensa, é importante esse cartão de apresentação.
Almirante Othon Pinheiro: Bem, em primeiro lugar, eu quero agradecer suas palavras, que são muito mais bondosas do que eu mereço. Eu sou um brasileiro que nasceu no que eu chamo de Brasil profundo. Eu nasci no interior do estado do Rio. Os primeiros anos da minha vida foram nas margens do São Francisco, lá no nordeste, filho de um médico que era pesquisador e foi fazer pesquisas sobre doenças tropicais lá. Então, um brasileiro que vem do Brasil profundo e ama esse país e quer dele não uma potência no sentido de fortaleza militar, uma potência de bem-estar, um país em que a gente conviva bem com os vizinhos de uma forma boa e seja um país que participe do jogo mundial, com uma contribuição positiva. A gente tem condição de fazer isso, mas, evidentemente, tem que trabalhar muito, desenvolver nossos produtos aqui, não achar que os outros vão pegar a gente pelas mãos e conduzir até a felicidade, a felicidade a gente conquista, ninguém concede. Dentro dessa maneira de pensar, que eu tive a sorte de ter pessoas que pensavam nisso até com muito mais fervor do que eu. Eu acho que a gente não faz nada sozinho e tive a oportunidade de trabalhar em equipes fantásticas.
WD: Qual é a sua formação acadêmica?
OP: Eu fiz, primeiro, a escola naval, depois eu fiz um concurso que me levou à escola politécnica de São Paulo. Então, eu tive curso de engenharia naval, acabei fazendo as duas especialidades: propulsão naval e arquitetura naval.
WD: E o senhor entrou para a Marinha com que idade?
OP: Eu entrei para a Marinha com 15 anos de idade. Em 1955. Fazendo 15 para 16. A USP (Universidade de São Paulo) foi muito boa, aqueles anos, eu fiz muitos amigos. Mais tarde, eu não esperava, mas voltei para USP, depois de cursar tecnologia nuclear lá no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Na realidade, eu não planejava isso, mas eu fui preterido por um colega meu que era menos graduado e o curso dele tinha tido menos nota do que eu tive, mas ele tinha boas credenciais políticas e me preteriu em um curso de pós-graduação em engenharia naval. Mas, como eu trabalhei alguns anos no arsenal de Marinha e trabalhava com muito afinco, tinha um diretor que era muito severo, foi uma época pujante do arsenal de Marinha…
WD: Isso, nós estamos falando de que época, mais ou menos que ano?
OP: Isso foi na década de 70.
WD: Então, nós já estávamos, no Brasil, sob ditadura militar.
OP: Exato. Mas ele era um camarada fantástico. Primeiro, o seguinte: era de uma bondade completa.
WD: Quem era?
OP: Era o Almirante Arnaldo de Negreiros Januzzi. Era muito bravo com quem não trabalhava, mas tinha um coração fantástico. Era um sujeito fantástico. Eu soube que mentiram pra ele dizendo que eu tinha escolhido trabalhar na Inglaterra, na construção de fragatas. Porque eu era muito novo, ele me deu a missão de implantar o programa de construção de fragatas nacional. Eu trabalhei dois anos em reparo de navio. Ele falou “eu não quero navio parado”. Passamos dois anos sem um navio da Marinha parado. Ele dava a missão, era curto e grosso. Depois, ele me passou para a construção, porque tinha prometido ao ministro dois navios de patrulha no Amazonas – que estão funcionando até hoje.
WD: Agora, essa sua ligação já na Marinha com o setor nuclear, como se deu?
OP: Foi por acaso. Muito por acaso. Como disse, eu pretendia fazer pós-graduação em engenharia naval e fui preterido. Eu acredito que tem certas coisas que o destino programa pra gente. E foi mais ou menos assim. Quando estava nascendo a primeira fragata, no primeiro ano do presidente Geisel, 1974 – o lançamento foi em setembro de 74 – e nós estávamos com uma dificuldade pelo seguinte: aquela bacia em que eles lançavam o navio estava com 80 centímetros só, na maré alta, e o encarregado do lançamento é uma coisa engraçada, a gente assina os cálculos de lançamento e, no momento em que assinou, a gente já é responsável. Eu estava lá controlando o negócio, chegou um coronel da presidência e me chamou e falou: “oficial, o presidente chegou mais cedo, o senhor abrevia a cerimônia”. Eu falei: “coronel, aqui tem duas coisas. Uma, é a cerimônia, como o senhor disse. A outra é o lançamento do navio, do qual eu sou responsável, eu assinei um termo de responsabilidade. A cerimônia, se alguém tiver que abreviar, não sou eu, é o diretor nacional ou o ministro. Se o presidente está aí, o ministro da Marinha certamente está. Outra coisa é o lançamento do navio. O lançamento do navio, nem ele, o presidente, me faz antecipar. Ele pode me tirar daqui e botar outro pra lançar, mas eu não vou antecipar. Antes de 15:26, que é o ponto alto da maré, é muito perigoso. Mas o coronel, com essa autoridade toda que o senhor manifesta, se conseguir manobrar com a lua, a lua mexe com a maré…”
WD: O senhor estava gozando com ele.
OP: Isso me prejudicou muito ao longo da vida, porque eu sempre fui irreverente e essa é uma coisa que não é muito aceita no meio militar. Eu sobrevivi porque tive chefes tolerantes. Mas ele saiu bravo e meu chefe de arsenal disse: “poxa, ele deu azar de falar com o cara mais irreverente que tem na Marinha”. Mas quando eu estava vindo, tinha um senhor de cabelo branco, que me perguntou: “o senhor Almirante Álvaro Alberto está muito doente, está naquela cadeira de rodas” -e mostrou, ele estava em uma sombra – “mas está muito quente, o senhor não arranja uma água gelada, um refresco pra ele?”. Eu falei “deixa comigo”. Aí cheguei para o segundo tenente, que estava comigo e falei: “me vê uma jacu (água fresca, na Marinha, a gente chama de jacu) para o Almirante Álvaro Alberto. Mas eu ouvi falar muito bem desse camarada quando eu estava na escola naval, então, você faz o seguinte: quando chegar, se tiver um jeitinho, eu mesmo vou lá entregar”. E estava uma confusão lá com o presidente da República e eu encarregado do lançamento, por isso que eu acho que há uma certa predestinação. Aí cheguei lá pra ele com aquela bandeja, e falei pra ele: “Olha, Almirante, eu soube que o senhor estava aqui, ouvi falar muito bem do senhor quando eu era aluno da escola naval, eu sou encarregado do lançamento, mas eu dei um jeitinho e trouxe aqui para o senhor o seu refresco”. Ele falou: “puxa, meu filho, você é encarregado do lançamento, é? É uma coisa complicada, o lançamento. Desejo boa sorte no lançamento, Deus te ilumine, meu filho”. Até aquele momento, eu nem imaginava. Dois meses depois de ser preterido, eu nem pensei muito nisso, mas o diretor de Marinha chegou lá e disse: “você não vai ser preterido assim, um cara que trabalha muito. Você escolhe a escola e o curso e, no ano que vem, eu te mando. Você está novo ainda”. Aí, já que ele me deu essa chance, eu escolhi nuclear. Também, eu achava, naquela época, que eu tinha começado a fazer os cursos básicos da escola de guerra naval, que, com um mundo de satélites, a única arma efetiva para um país mais fraco, como o nosso, era o submarino. E o submarino pra valer é com propulsão nuclear. Os outros são subversíveis, não são submarinos. Naquela época, eu pensei: “vou me formar nesse negócio, porque aí eu começo a formar gente pra um dia…”. Não tinha pretensão de eu mesmo conduzir um programa. Foi uma surpresa pra mim, mais tarde, quando eu recebi essa missão.
WD: Mas, até chegar lá, o senhor se especializou nisso?
OP: Foram dois anos e meio. Eu já não era um aluno mais, eu tinha nove anos de formado, já tinha passado por experiências em engenharia, talvez o cara mais demandado, naquela época, tenha sido eu. As missões mais espinhosas, eu tinha tido.
WD: Normalmente, quando se fala no senhor, se fala “pai do programa nuclear brasileiro”. Por quê?
OP: É porque nós tínhamos tido a experiência de fazer um acordo Brasil-Alemanha…
WD: Isso, ainda no governo Geisel?
OP: É. Foi uma coincidência do destino. Eu iniciei meu curso lá no MIT no mesmo mês em que ele assinou o acordo Brasil-Alemanha. E no curso, eu vi que aquele [acordo] não serviria pra nada, porque o Brasil precisava de uma estratégia que não teria. Nesses dois anos e meio, eu via muitas críticas. A intenção do Geisel até que foi boa, ele queria autonomia nuclear brasileira, mas na negociação, quem negociou…
WD: O que nós podemos chamar de autonomia nuclear brasileira? O que significa isso?
OP: É o seguinte: o reator é como um automóvel. Se você tem um automóvel sem gasolina, não adianta. Então, é fundamental que o carro tenha combustível. Nós tínhamos optado por um reator que é muito bom para produzir energia, mas era preciso urânio enriquecido. Na época, os americanos tinham feito um tratado de 30 anos para fornecimento do combustível. Aquilo, logo depois foi revisto, uma série de exigências. Aí o Geisel quis o seguinte: comprar um monte de centrais, para estimular os alemães a ceder tecnologia do ciclo do combustível. Então, lá no curso, eu comecei a imaginar o que fazer, porque era uma coisa que não servia para nada.
WD: Mas, isso lá atrás, ainda no governo Geisel?
OP: É. Coincidiu com o governo dele. Quando eu cheguei do curso, estava terminando o governo dele.
WD: 1978?
OP: É, 78. Tinha o Almirante Maximiano…
WD: Que era ministro da Marinha?
OP: Ele não era ministro da Marinha, ele ia ser.
WD: Ia ser, com Figueiredo.
OP: É. Entrou o Figueiredo, ele foi ministro do Figueiredo. Mas era uma época especial, basta ver que eles criaram base na Antártica, eles tinham uma visão diferente. Uma organização militar é como uma empresa, como um time de futebol: tem direções muito boas e outras não tão boas.
WD: Mas, naquele momento, já podíamos dizer que o Brasil possuía um programa nuclear? Quando nasceu o programa nuclear?
OP: O programa nuclear nasceu quando um colega nosso da força aérea…
WD: Quem era?
OP: Era o José Alberto Amarante, um grande cientista, que demonstrou para o presidente Geisel que o processo de enriquecimento de urânio que ele tinha comprado, provavelmente, não funcionaria direito. E conseguiu a permissão do presidente para começar a tentar fazer enriquecimento por laser. E, quando eu vim, eu sugeri a ideia da centrífuga. Mas eu sugeri, ao invés de começar com a centrífuga, primeiro avaliar se o laser dava resultado a curto prazo e, caso não desse, a gente se juntava para fazer a centrífuga.
WD: E não dava?
OP: Não dava. Foram quatro meses meus, eu consultei os melhores físicos brasileiros e cheguei à conclusão de que não dava. E, junto com o Almirante – ele é um cara fantástico – começamos e dois anos depois tinha o primeiro resultado. Não tinha pressa de ter o resultado, porque a gente ficar toda vida prometendo, as coisas se degradam. Então, nós trabalhamos dia e noite para lançar um tipo revolucionário de centrífuga. E era, realmente. Até hoje é, na época, muito mais.
WD: Na época, o senhor pensava em um artefato nuclear?
OP: Não. Eu focava em produzir o combustível para o submarino, porque ninguém forneceria combustível para submarino. E, também, eu achava que nós tínhamos uma riqueza mineral em urânio muito grande. Que aquilo que nós fazíamos ia acabar resolvendo o problema.
WD: Cientificamente, o senhor dominou ou domina o ciclo de urânio?
OP: O Brasil domina. Desde setembro de 1982…
WD: Pra deixar claro: para fazer a bomba atômica?
OP: O Brasil domina completamente.
WD: Eu não sou especialista em relações internacionais. Eu apenas sou quem lê jornal, quem vê televisão, mas enfim, o que eu percebo, como cidadão comum, é que os países detentores de arsenal nuclear são mais respeitados.
OP: Eu sou um cara latinista. Tem gente que tem vergonha de ter nascido na América do Sul. Eu, não. Eu tenho orgulho de ter nascido na América do Sul. Eu acho que a gente tem todas as condições para rapidamente ter bomba, porque quem vem nos ameaçar não vai ser ninguém da América do Sul. Não vai ser difícil de a gente ter. Mas, se a gente tiver, de certa forma, vai desbalancear o equilíbrio de forças aqui. Então, eu sempre fui favorável a ter…
WD: A capacidade de ter.
OP: Tem que ter. Os países centrais chamam a bomba nuclear de arma de destruição em massa, porque ela é usada para destruir em massa. Hiroshima e Nagasaki foram dois holocaustos, têm que ser cobrados. Mas ela é também uma inibidora de concentração de forças. Vê o caso do Iraque: foram três pinças, uma que veio pelo Kuwait, uma pelo Mar Vermelho e outra pelo Mediterrâneo. Ninguém concentra forças se o outro tem o artefato. Então, o artefato nuclear, o nome dele é: arma de destruição, vírgula, inibidora de concentração de forças.
WD: Podia ser “ou” inibidora, né? Ao invés de “e”.
OP: É, “e/ou”. Então, o Brasil, é importante que tenha essa capacidade, para usá-la, caso precise, como inibidora de concentração de forças de quem vem atacar a gente. Então, eu acho que, estrategicamente, a gente tem que ter a capacidade e, se o cenário mudar, tem que ter a capacidade de fazer rápido. Mas não precisa fazer, porque desbalancearia o continente e a gente convive muito bem com os vizinhos. Eu acho que conviver bem com os vizinhos é uma graça.
WD: Agora, Almirante, pelo que eu sei da sua trajetória, do seu currículo, da sua história, ao longo do tempo, o senhor se tornou uma referência mundial na área nuclear. O senhor recebeu convite de outros países – e sendo bem explícito – para construir artefatos nucleares?
OP: Não. Eu recebi da Agência Internacional, logo que eu me aposentei da Marinha…
WD: O senhor se aposentou quando?
OP: Em 1994. Eu recebi de um alto funcionário lá, o convite para trabalhar na Agência. Aí eu falei: “se não for para inspecionar o Brasil…porque não tem sentido eu ter trabalhado em um programa secreto no Brasil, que não é inspecionado”. O emprego era muito bom, mas eu abri mão. Eu disse: “se for pra inspecionar todo mundo, menos o Brasil, eu topo. Agora, lá no Brasil, eu não topo, não”.
WD: Agora, Almirante, o senhor estava…e o desdobramento disso acabou por ter um desfecho infausto na sua vida. O senhor estava com um projeto de uma centrífuga?
OP: Quando eu me aposentei na Marinha, eu fiz um concurso para ser pesquisador da Comissão Nacional de Energia Nuclear, lá em São Paulo. Foram 16 doutores em Ciência, eu tirei o primeiro lugar. Mas nós estávamos na fase de globalização, que era década de 90 (1990 até 1994). Então, só tinham duas vagas e, naquela época, não havia obrigatoriedade de chamar o primeiro do concurso. Então, o segundo, que era meu amigo, estava sendo prejudicado. Quando eu entrei com a desistência, ele foi chamado no mês seguinte. Aí que eu resolvi iniciar minha vida em consultoria, tive firma de geofísica. Ou seja, eu tive muito trabalho naqueles anos em que eu tive a empresa. Nunca me faltou trabalho. Tinham alguns trabalhos que até me entusiasmavam bastante, por exemplo: um sistema de navegação de cabotagem para sobrecarregamento da BR 101.
WD: A BR 101, qual é?
OP: É essa que vai do Sul até o Norte, que a gente usa para tudo. E não usa o sistema de cabotagem, aqui no Brasil. Mas depois, em 2001, o professor Rolemberg pediu que eu fizesse uma avaliação, com um grupo da FUSP, sobre a verba de um projeto ambientalista. Eu fiz pra ele, ele gostou muito do trabalho. Eu coordenava um grupo de engenheiros da Fundação da Universidade de São Paulo. O único trabalho que eu fiz na área nuclear, depois da Marinha, foi esse para o professor Rolemberg. Quando eu estava estudando lá no MIT, eu me preocupei muito com a parte de energia de países, o que chamam de “balanço de energia para países”. E eu achava – e acho, até hoje – que nós estamos usando mal o nosso país. Nós estamos pagando um preço na eletricidade absurdo. E a gente pode usar com mais lógica aquilo que nós temos no país: temos um sistema limpo, nós estamos usando mais térmicas a gás (ou, até, importando gás do exterior, gastando uma fortuna, com o preço da eletricidade lá em cima). E a gente pode usar com mais inteligência, o nosso sistema. Eu acho que a modelagem do nosso sistema, feita na década de 90, foi feita por um grupo de empresas, que foi contratado, e eles modelaram tendo como referência o sistema inglês, que só tem térmicas. E térmica, é o homem que controla. O nosso sistema, a maior parte dele, não é o homem que controla, é a natureza. Então, o sistema não pode ser como o sistema inglês. Não pode ser a mesma lógica, nem econômica, nem de aproveitamento. Então, eu acho que a gente está usando mal nosso sistema, está deixando de usar melhor e o povo está pagando mais do que precisa.
WD: O senhor elaborou um projeto alternativo em relação a essa opção?
OP: Foi um estudo que eu fiz em 2004, por encomenda, porque tinha uma empresa que tinha ganho a concorrência, na década de 80, para construir Angra 3 e Angra 3 estava começando a mexer na escavação. Então, eu estava lá na fila de consultoria, apareceu um camarada lá…
WD: Qual era a empresa?
OP: Andrade Gutierrez. O camarada disse: “o senhor, que é militar, sabe que uma central nuclear é uma coisa estratégica”. Eu falei: “olha, sob o ponto de vista militar, essa central não é estratégica, porque o combustível que entra nela é de baixo enriquecimento e o combustível queimado sai queimado demais. Não dá pra fazer bomba. É impossível fazer bomba, se alguém está controlando com um reator desse tipo. Agora, ela é estratégica, do ponto de vista econômico e energético”. E isso, acho que eu tenho condições de provar, porque veja: o que ocorreu com o sistema nosso, é que a gente vem baseando fortemente no sistema hidrelétrico, que é muito bom, é o melhor sistema, mas o volume de água do nosso reservatório parou de crescer no final da década de 80. Então, eu propus esse estudo, disse qual era o preço. Eu sempre trabalhava, na reserva, o seguinte: eu tinha um salário pequeno, mas sempre tinha, então, eu fazia propostas técnicas para essas companhias – o que eu fazia era técnico, não entrava na parte econômica – e fixava um preço, no caso de sucesso. E fizemos um contrato. Pedi para fazer um contrato, eles falaram: “não, nem pode. Porque, se sair outro mais tarde, baseado em outra razão qualquer, sua família…o senhor pode não estar presente, nós somos uma empresa alto nível…”. Aí, realmente, eu perguntei lá em São Paulo, tinha um amigo meu – que ficou amigo, porque eu trabalhei para ele algumas vezes – perguntei: “eu posso confiar na palavra desse cara?”. Ele falou: “é firma grande, os contratos são de alto nível”. Então, foi confirmado. Eu fiz um bom trabalho, que seria baseado no sucesso, entreguei o trabalho.
WD: Era baseado no êxito?
OP: No êxito, é. Mas eu entreguei esse trabalho em dezembro de 2004. Eu fui para a Eletronuclear em 2005, final de 2005. Então, é um trabalho…eu registrei até, tem na revista da empresa, pediram que eu publicasse e eu publiquei por uma ONG, cujo presidente era o professor Rolemberg (nós temos uma amizade pessoal muito boa, apesar de discordar em ideias)…
WD: E esse contrato foi criminalizado?
OP: Foi criminalizado. Na verdade, é um acordo, não é nem um contrato. Se fosse hoje, eu até pediria um contrato com confissão de dívida pelo sucesso. Mas eles não queriam fazer, porque podia sair por outra razão. Porque aquele contrato deixou clara a situação: o Brasil, ou tem térmica de base ou nós vamos pagar caro. É duro como o sistema não entendeu isso até hoje. Hoje, o brasileiro está pagando um preço fabuloso pela eletricidade, desnecessariamente.
WD: Almirante, me diz uma coisa: tudo isso que aconteceu com o senhor, a prisão, esses percalços, que eu considero – eu sou amigo do seu advogado, Dr. Fernando Fernandes, eu li o seu processo, li as provas – aquilo ali uma absoluta aberração jurídica, a sua condenação. Mas, como o senhor se sente? Na sua opinião, há um interesse aí escondido em tirá-lo de circulação, em tirá-lo do debate da política nuclear brasileira? O senhor acha que existem interesses, inclusive, estrangeiros?
OP: De minha parte, não. Eu acho que têm alguns fatos. Eu vou me basear em fatos, porque opinião, cada um tem a sua. Então, fato: eu estava preso em Curitiba, dez dias depois veio uma comissão dos Estados Unidos para discutir de novo o acordo adicional do tratado de não proliferação [Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares], porque, com o ministro Jobim, no governo Lula, o Brasil recusou assinar. E recusou assinar porque era um tratado que feria a nossa Constituição e permitiria que a casa de qualquer brasileiro ou qualquer firma, a qualquer momento, sem mandato judicial, fosse inspecionada. Na época, eu atuei muito nisso, até fui a Washington, em uma reunião, para assessorar, com 70, 80 presidentes de Repúblicas.
WD: Isso no governo Lula?
OP: É, em 2010, se não me engano. Ou 2009. Eu acompanhei o ministro Jobim no Pentágono.
WD: Nelson Jobim era o ministro da Defesa?
OP: Defesa, é. Eu saí do Pentágono com uma certa premonição. Eu falei: “vão cobrar caro isso, um dia, e acho que cobraram”.
WD: O senhor afrontou, na verdade?
OP: Eu não afrontei. Eu não sou anti-americano. Eu separo as coisas. Acho que tem um povo americano e tem um sistema, que hoje está instalado nos Estados Unidos – já esteve instalado na Inglaterra – um sistema internacional que se alimenta muito na indústria bélica e na indústria do petróleo. Mas o povo americano, eu não tenho nada contra, eu morei lá. Nesse momento, em que nós estamos conversando aqui, lá na Federação tem um rapaz de 24, 25 anos jurando que está defendendo os interesses dos Estados Unidos, quando, na verdade, ele está defendendo os interesses de grupos aí. Então, eu separo o povo americano, que é povo como a gente, de um sistema (que, se explora até o povo de lá, imagina a gente). Esse é meu raciocínio. Então, esse sistema, tudo que a gente fez, de certa forma, não que a gente quisesse afrontar, que eu nunca quis afrontar ninguém, a gente quis dar meios para o Brasil.
WD: Mas eles, provavelmente, se sentiram afrontados?
OP: Certamente. Isso é fato. Eu tive um camarada da CIA que morava no andar de baixo, no edifício em que eu morava em São Paulo, e tinha mais outro, que morava no mesmo edifício. Então, a vida toda eu sentia que…mas eu acho que a gente, mesmo sem querer afrontar, não pode se intimidar.
WD: Almirante, o que aquilo que o senhor pensa de um programa nuclear brasileiro não é de aceitação dos Estados Unidos?
OP: Olha, primeiro, é o seguinte: energia é uma coisa séria. O país que tem energia mais barata, tem um desempenho de sociedade melhor. E não precisa de muita Nuclear, tem que ter uma fatia para equilibrar o sistema. Se a gente usar com racionalidade os nossos meios, a gente tem energia mais barata. E energia mais barata, dá uma competitividade. Internacionalmente, se o povo tem competitividade, desequilibra. Por exemplo, a China, de certa forma, está desequilibrando o mundo, ela passou a ser mais eficiente, vendendo produtos. Então, o fato de se tornar uma sociedade mais eficiente, querendo ou não, não querendo afrontar ninguém, tira da zona de conforto determinados grupos. Então, isso afronta. E eu sempre trabalhei pensando naquilo, não querendo afrontar ninguém, não tenho inimizade com ninguém.
WD: Possivelmente, isso foi decisivo para o que aconteceu com o senhor?
OP: Eu não tenho a menor dúvida. Tem alguns fatos na vida que se dão. Teve várias coincidências. Também, determinadas coisas que são feitas são ditatoriais, por exemplo, foi negado o habeas corpus, porque eu tinha um telefone na minha cela. Era uma cela com grade, lá no corpo dos fuzileiros. Nunca tive. Tem um regulamento de Marinha que permite para quem tem pessoas doentes em casa, ligar, não do seu telefone, do telefone de um oficial de lá. E era o telefone do oficial de serviço. Tinha meios de verificar e eu fui acusado, foi negado o habeas corpus com o argumento de que eu tinha telefone na minha cela. O que é uma grande mentira!
WD: O senhor tinha uma pessoa doente em casa?
OP: Minha esposa tem Alzheimer. Ela pede para telefonar para saber como ela está, como passou o dia, para cuidar dela. Foi negado [o habeas corpus] baseado numa mentira. Disseram que, quando eu estava preso em casa, tive contato com a empresa. Mentira! Nunca tive contato algum. O sujeito escreve que é aquilo e fica.
WD: Vira verdade.
OP: Vira verdade. É muito difícil ver um sistema em que o camarada diz uma coisa e vira verdade.
WD: Almirante, nessa injustiça que se abateu sobre o senhor, eu o considero – e não só eu, milhares de pessoas – um perseguido político. O que mais o indignou? O senhor está com quantos anos?
OP: Agora, quase 79. Estou com 78.
WD: O senhor foi condenado a 43 anos de prisão, né? Veja só: o Brasil é um país em que nem 8% dos homicídios são apurados…
OP: Uma das coisas que mais me indignou…você tocou em um ponto. Quando eu estava preso em Curitiba, são cinco dias de prisão temporária para depois converter em prisão preventiva. Foi consultado o Ministério Público, eu tinha sido convidado duas vezes pelo senhor Janot, quando ele era da Escola Superior do Ministério Público, eu fui convidado duas vezes para painel de debates, em uma das vezes, ele me chamou de cidadão ilustre. Pois é, no parecer dele, ele me conhecia, me conhecia tanto que já me chamou de “cidadão ilustre”. O parecer dele foi o seguinte: que eu, nas ruas, representava um maior perigo para a sociedade do que o criminoso comum. Quer dizer, eu fiquei indignado. Eu tenho esse parecer guardado. Dizer que eu, na rua, sou mais perigoso que um criminoso comum é uma atitude midiática e desonesta.
WD: Uma das coisas que falam acerca dessas acusações é envolver familiares para pressionar o preso, para pressionar o acusado. Aconteceu isso com o senhor, né? Com a sua filha?
OP: Sim, uma menina de 14 anos. Ou seja, é um absurdo. Mas como não tem nada, o que eu fiz é o que eu disse.
WD: Almirante Pinheiro, o senhor, provavelmente, acompanhou o que aconteceu com o reitor da Universidade de Santa Catarina. O senhor não me pediu reserva em relação a isso e isso foi noticiado na imprensa, o senhor tentou a mesma via. Assim, o senhor faz um paralelo…
OP: Tentei. Eu fiquei indignado com o caso da minha filha. Eu pensei em tirar cordões de três calções, achando que estava escondido, mas teve um oficial que observou pelas câmeras e foi lá revistar. Mais dez minutos e ele chegava atrasado. Não foi vergonha, foi revolta. Eu queria chamar a atenção. Revoltado querendo dizer que fizeram uma indignidade.
WD: O senhor é um homem com uma folha de serviço impecável, inclusive, de serviços prestados ao país. Essa folha de serviço virou um agravante, no fim. Eu não sou penalista, não sou criminalista, mas o pouco que eu me lembro das aulas de Direito Penal que eu tive, isso deveria servir de atenuante. Até para o cidadão comum. Vamos imaginar, o que não é verdade, que o senhor tivesse culpa comprovada nesse processo (coisa que não aconteceu e que não acontece, trata-se de perseguição mesmo). Como é para o senhor pensar “poxa, tudo aquilo que eu fiz para o país, na hora da fixação da pena, é usado contra mim como agravante”?
OP: Está escrito que eu influenciei gerações de oficiais novos e de engenheiros. Então, na opinião dele, eu devia fazer o certo e isso eu fiz de errado, então, isso foi um agravante. Primeira vez que eu ouvi falar disso na história. O sujeito reconhece que tem bons antecedentes…
WD: Não são bons antecedentes, Almirante, é uma folha de serviços prestados ao país.
OP: Eu não chego a dizer que foi a folha, porque, da equipe em que eu trabalhava, civis e militares trabalhavam com tanto fervor, que eu fico até com vergonha de dizer que é uma folha de serviço, porque eu acho um desrespeito até com o engajamento deles também. Foi uma experiência de vida fantástica trabalhar com aquelas pessoas. São pessoas que, até três anos atrás, nós tínhamos dois almoços em São Paulo. Iam 80, 120 pessoas, porque a gente sentia, naquela época, um clima de engajamento, de desafio, pelo país. E aquilo unia muito a gente.
WD: Para encerrarmos nossa conversa, o senhor está vivendo a liberdade nesse momento, graças, em larga medida, ao trabalho competente do seu advogado. O senhor está tendo a oportunidade de cuidar da sua esposa?
OP: Estou. Ela está mais calma. Segundo a cuidadora e minha filha, ela deu uma estabilizada. Uma coisa que me indignou muito foi o seguinte: o Ministério Público ir no médico da minha esposa para pegar os dados. Pra mim, o sigilo médico é sigilo. Eles foram lá e obrigaram a enfermeira a dar a ficha da minha esposa. Até depois, quando eu estava preso em casa, o médico perguntou: “escuta, ela deu a ficha, não era pra dar, porque a lei…o que eu faço, despeço ela?”. Eu disse: “não despede ela, porque ela é uma moça, não sabe a legislação, chega um camarada da Polícia Federal e a obriga a dar a ficha, ela dá. Então, por favor, não faça isso. Explica pra ela que não era pra dar, mas não despede ela, não”. Mas isso aí é uma truculência, é um absurdo! Foram lá e obrigaram a moça a dar a ficha. E também não adiantou, porque nem levaram em consideração.
WD: Isso, infelizmente, são dias que nós pensávamos que tinham ido embora, mas voltaram. Agora, Almirante, eu lhe peço permissão, mas o senhor teve um câncer, um melanoma detectado no momento em que o senhor estava confinado naquele quartel. Como o senhor está hoje?
OP: Graças a Deus, bem. Foram feitas quatro biópsias. Não teve metástase. Minha filha, todo dia, troca o curativo. Mas tudo parece estar caminhando direitinho. Eu acho que ainda tenho alguns anos pela frente.
WD: E o senhor ainda planeja alguma coisa para o país, Almirante?
OP: Eu acredito muito nesse hidrotubo gerador de baixa queda…
WD: Era nisso que o senhor estava trabalhando antes?
OP: É. Eu estou voltando a trabalhar nisso, porque eu acho que com isso aí a gente vai botar energia elétrica barata em locais isolados do país. E agora, esse meu grande parceiro – fizeram uma lista dos melhores engenheiros do país e ele entra nela – o Mauro Leone, ele viu que o miolo também serve para pequenas eólicas.
WD: Almirante, esclarece isso.
OP: É a energia eólica, com vento. Ou seja, onde tiver queda d’água baixa, a partir de um metro e dez.
WD: Essa hidroturbina permitiria…
OP: Permite aproveitar mesmo a pequena queda. Porque o material que tem no mercado é para grandes quedas. Esse é um projeto high-tech.
WD: Que beneficiaria, sobretudo…
OP: Lá na Amazônia, lá, a cada afluente, que tem uma distância de dois terços da calha central, tem água a beça. Então, no meio da floresta, o cara vive no anonimato, não tem uma energia, não tem um rádio. Então, passa a dar uma condição de vida diferente para o camarada. E também pequenos aproveitamentos.
WD: Está dando para entender porque esse homem ficou confinado? Porque ele está sendo perseguido? É um herói brasileiro. E é isso que está acontecendo no Brasil. Nós vamos ficar de braços cruzados? Quem está fazendo isso, hoje, não tem coturno, não tem baioneta calada, é o sistema de justiça brasileiro. Almirante Othon é um patrimônio do povo brasileiro. Nós não podemos tolerar isso.