Mal-estar e vergonha
Por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Um mal-estar tomou conta da sociedade brasileira. As causas imediatas são a recessão econômica, a ilegitimidade do presidente da República, a desmoralização dos políticos, a corrupção generalizada, a violência contra os direitos civis praticada por um juiz e promotores de Curitiba, e a radicalização política da classe média tradicional, ressentida por avanços políticos e sociais como a regulamentação do trabalho doméstico e a política de cotas nas universidades.
Mais profundamente, estamos envergonhados porque não soubemos honrar a democracia que nós próprios construímos. Entre 1930 e 1980, formamos nosso Estado-nação e realizamos nossa revolução industrial e capitalista; em seguida, nos anos 1980, construímos a democracia, e a tornamos social. Isso tudo era motivo de orgulho. Mas, em 2016, um impeachment arranhou gravemente essa democracia.
O impeachment de Dilma Rousseff será para sempre uma mancha na história do Brasil. Para que fosse realizado, uma quadrilha de políticos convidou ideólogos para escreverem um plano de governo neoliberal, que foi o passe para garantir o apoio das elites financeiro-rentistas, da classe média tradicional e do partido político que as representa —o PSDB.
Em seguida, o governo passou a comprar deputados para aprovar reformas radicais, que, segundo os mesmos ideólogos, levarão o Brasil ao paraíso. Uma delas, aborto jurídico e econômico –a emenda constitucional congelando a despesa pública; outra —a reforma trabalhista—, uma vitória contra os trabalhadores a partir do diagnóstico absurdo de que a falta de competitividade das empresas brasileiras não decorre do juro alto e do câmbio apreciado, mas de salários altos.
O mal-estar que atinge a sociedade brasileira é geral. Seu fulcro está no impeachment. Se o Brasil fosse um Paraguai, onde a democracia não está consolidada, não ficaríamos indignados e envergonhados. Mas não somos. O impeachment derrotou a todos —a esquerda e a direita.
A esquerda, porque os erros do governo Dilma facilitaram o impeachment; e porque o principal partido de centro-esquerda, o PT, igualou-se aos demais partidos no financiamento de suas campanhas.
A centro-direita, porque sabe que a vitória foi de Pirro; porque o governo que inventou é uma fraude; porque, após ano e meio no poder, verifica não ter apoio dos eleitores; porque, ante o ódio e a perseguição, a figura de Lula se agiganta.
Como eu, imagino que muitos brasileiros estejam hoje indignados. Mas a indignação não justifica radicalismo ou enfrentamento. A crise que vivemos nasceu do radicalismo e do ódio que, de repente, emergiram nas manifestações populares de junho de 2013. Radicalismo não se enfrenta com radicalismo, nem ressentimento com ressentimento, mas com política e negociação.
Dentro de um ano, teremos eleições presidenciais, e o que importa agora é assegurar que elas sejam democráticas, que os candidatos apresentem programas de governo claros e factíveis e que desses programas faça parte o compromisso de cada candidato de trabalhar pela pacificação dos espíritos.
Mas não estarei eu voltando à velha “conciliação das elites”? Não, porque dessa conciliação fazem necessariamente parte as classes populares. Mas o Brasil não precisa de uma liderança forte e corajosa? Sim, muito, mas não precisa de um candidato de salvação nacional.
Precisa de um presidente que reconheça as restrições econômicas e políticas e procure contorná-las na medida do possível. Precisa de elites intelectuais e políticas que também reconheçam essas restrições e, portanto, saibam que um governo de centro-esquerda não poderá ser muito diferente de um de centro-direita, e vice-versa. Que o governo é sempre um governo de todos, e não apenas dos vencedores no pleito.
Precisa de políticos e magistrados que priorizem o interesse público e combinem coragem com prudência para, assim, retomarmos a construção coletiva da nação e do Estado brasileiro.