Após poupar Aécio e Temer, consórcio midiático-policial avança sobre Pimentel

A notícia, em área nobre da capa do jornal O Globo de hoje, e ocupando a página 3 inteira de alto a baixo, com direito a infográfico encabeçado por Pimentel, não deixa dúvidas: o consórcio midiático-policial (que inclui um judiciário transformado também em polícia), permanece eufórico com a musculatura adquirida após o golpe.

Após Aécio e Temer serem preservados, a mão invisível do golpismo avança contra o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel.

O show, afinal, tem de continuar.

A reação de Pimentel tem sido a pior possível, em se tratando de um petista, ou seja, em se tratando de alguém do “grupo de risco”.

Um Aécio ainda consegue escapar do laço judicial permanecendo muito quieto, escondido em casa e longe dos holofotes. Isso porque o “establishment”, comandado por aiatolás de mídia e barões do judiciário (chamá-los-ei agora assim) é organicamente tucano.

Um petista pode ser salvo exclusivamente pelo povo. Esta é a dura lição que deveria ter sido aprendida após o suicídio político de Dilma Rousseff, que tentou fugir da crise transformando o Palácio do Planalto num “aparelho”, deixando que a mídia massacrasse diariamente, sem contraponto, o seu governo e o partido que o sustentava.

Se o governador quiser fugir do script que a Globo já começou a escrever para ele, e que termina invariavelmente com longas temporadas na prisão, ele precisa descer à arena de luta e mostrar suas armas. Pimentel é um governador com boa avaliação popular, que, no entanto, irá se esfarelar rapidamente caso ele não ofereça sua própria narrativa à população.

Confiar na justiça, a esta altura do campeonato, não é mais apenas estupidez. É resignação com a própria morte. É suicídio. Parodiando Carmen Lucia, o cinismo do sistema brasileiro de justiça venceu o escárnio.

Até o momento, porém, a única reação de Pimentel parece ser dar entrevistas montadas à Globonews. Ou seja, dar mais força ao adversário.

Não sou contra políticos progressistas darem entrevistas à imprensa conservadora. Muito pelo contrário: acho que deveriam dar muito mais entrevistas. Porém: 1) as próprias entrevistas deveriam ser mais ousadas; 2) deveriam ser equilibradas com entrevistas para outros órgãos alternativos.

O preconceito de alguns figurões do PT com a imprensa alternativa é inexplicável. O partido apenas tem sobrevivido, nos últimos anos, porque essa outra imprensa pôs em cheque, em parte importante da opinião pública, a narrativa única da grande mídia.

Esse questionamento às verdades midiáticas deu todas as vitórias que a esquerda conheceu nos últimos anos. Se Dilma tivesse montado uma sofisticada estratégia de comunicação desde o início da primeira gestão, talvez não fosse derrubada por um golpe cuja principal força veio dos velhos e tradicionais meios, porta-vozes da elite mais retrógrada e egoísta do planeta.

Por isso mesmo, há uma espécie de “justiça poética” também por trás de todas as agruras vividas pelo PT: o partido não lutou.

Em muitos aspectos, não luta até hoje.

Não há nenhuma estratégia organizada entre governadores, prefeitos e parlamentares petistas, para reagir ao avanço do golpismo, que precisa silenciar e intimidar todas as forças políticas que discordam das ações do novo regime liderado apenas pró-forma por Michel Temer, mas que, na verdade, é comandado de fora do país, pelas forças do mercado financeiro internacional.

Nessa conjuntura, um dos fatos mais espantosos não é somente a destilação, pela Globo, de um cinismo tão absoluto, tão puro, que faria inveja ao mais rigoroso produtor de uísque escocês: me parece igualmente espantosa a facilidade com que a Globo engambela tantos setores sociais, da esquerda à direita.

A esquerda ainda acreditou que a Globo queria “derrubar” Temer, esquecendo que Temer é apenas um fantoche do mercado financeiro que pode ser substituído facilmente por qualquer outro. Quando critica Temer, ou Aécio, a Globo (que pauta o comportamento de todo o sistema nacional de comunicação) apenas produz a dramaturgia necessária para haver ao menos um simulacro de democracia. Para a Globo e seus tentáculos judiciais, é muito conveniente que o presidente seja fraco o suficiente para que não ouse ir além dos limites demarcados por suas diretrizes macro-econômicas e políticas, embora forte o bastante para aprovar as reformas que deseja no Legislativo e enterrar investigações contra si.

Para alcançar esse objetivo, o consórcio midiático-policial cercou o castelo onde se alojou o novo regime (implementado lá por ações do próprio consórcio) com canhões semióticos de onde dispara, diariamente, ataques contra todas as forças organizadas que poderiam impedir ou atrasar as iniciativas do novo regime.

A direita também é ludibriada pela Globo, mas de uma outra forma. A postura “liberal” da Globo, na acepção norte-americana, é uma máscara para encobrir uma filosofia profundamente antiliberal, trevosa, baseada na repressão policial e judicial contra dissidentes políticos, na ausência de limites a estes aparelhos de repressão, na concordância com todas as teses de que o Brasil sofre com “excesso” de garantias individuais. É o liberalismo à brasileira. No passado, nossos liberais professavam a fé na liberdade durante o dia e açoitavam seus escravos à noite. No presente, os mesmos liberais discorrem sobre as maravilhas da liberdade econômica durante o dia e aplaudem, à noite, notícias de que a “luta contra a corrução” não vai mais respeitar as liberdades políticas.

A direita xucra, por sua vez, acredita que a Globo é “do mal” porque põe, uma vez por ano, um gay dando uma bituquinha em outro gay. É claro que esses são adversários que interessam imensamente à Globo. A melhor coisa para um grupo fascista que não quer ser visto como tal é receber críticas de grupelhos ainda mais fascistas. É o mesmo tipo de confusão que assistimos, nos últimos anos, com radicais de direita chamando Aécio e tucanos de “comunistas”.

Em Estado Pós-Democrático, seu último livro, Rubens Casara se refere constantemente ao “psicopoder”, que é, entre outras definições, o poder opressivo que se internaliza dentro da cabeça dos cidadãos, e que eles acabam usando contra si mesmos, autocensurando-se o tempo inteiro, intimidados com as intermináveis novelas político-judiciais que assistem na televisão. Isso quer dizer que os ataques midiáticos ao PT não visam somente o partido e seus filiados, mas toda a população, que se sente ameaçada, direta ou indiretamente, por conta de suas próprias opiniões, que precisa esconder, adaptar ou transformar completamente, para se sentir mais segura no trabalho, em casa, junto à família.

Para completar o quadro de caos institucional (caos que interessa ao grande capital, porque um sistema político organizado não permitiria uma “experimentação” tão irresponsável como a que vivemos no Brasil), o ministro Marco Aurelio Mello, do STF, acaba de autorizar que a Polícia Federal também possa fechar acordos de delação premiada.

Ou seja, mesmo com todas as denúncias, o Estado policial ganhou mais uma poderosa arma.

A PF agora poderá emular o jogo sujo do Ministério Público e pressionar indivíduos, fragilizados e apavorados (independente se são ricos ou pobres, quase todos se intimidam ao se verem nus e vulneráveis diante do aparelho repressor do Estado, ainda mais quando sabem que este conta, invariavelmente, com o apoio da grande mídia), a corroborarem narrativas e powerpoints pre-escritos com objetivos políticos minuciosamente calculados.

A decisão do STF pode deflagrar ainda uma outra crise institucional, que poderíamos chamar aqui de “guerra dos delatores”. MP de um lado, intimidando réus a falarem uma coisa, e PF de outra, chantageando e torturando gente para afirmarem outra coisa.

Mais caos, mais abusos, mais autoritarismo.

Enquanto isso acontece, a imprensa mancheteia que os hospitais do Rio estão cancelando a maior parte das cirurgias não emergenciais. A gente sabe o que isso significa: morte.

Isso é resultado direto da Lava Jato e da insanidade judicial e política que tomou conta de todo país. Com a criminalização de tudo, da política, das empresas, dos processos eleitorais, a economia é paralisada. Sem crédito no BNDES, nem em lugar algum, os empresários buscam preservar seu capital de giro simplesmente não pagando os impostos, quebrando as finanças públicas.

Ainda na grande imprensa, leio que o “Fisco vai bloquear cem mil empresas”, a maioria micro e pequenas empresas. Quebrado, acéfalo, dominado por corporações estrangeiras e interesses do mercado financeiro, o governo perdoa dívidas bilionárias de latifundiários e banqueiros e avança, rosnando e babando, para cima dos pequenos empresários, já imensamente fragilizados pela crise.

Ah, mas não tem problema. O Financial Times, quando aborda o Brasil, não está preocupado com a crise nos hospitais do Rio, nem com a quebradeira das empresas, e sim, exclusivamente, com o sucesso das iniciativas federais para entregar o pré-sal às petroleiras multinacionais. Estas fazem lobby para sequer pagarem impostos no Brasil. Querem explorar o nosso petróleo, contratar engenheiros estrangeiros, e só.

Há uma articulação no congresso que poderá significar mais de um trilhão de reais em isenção fiscal para as petroleiras operantes no país.

Diante deste cenário, só nos resta lutar por mais conscientização política do povo. Este é o trabalho mais importante e mais difícil, já que o processo de golpe do qual fomos vítimas ancorou-se justamente no mais concentrado sistema de mídia do planeta.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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