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Uma resenha do novo livro de Rubens Casara: Estado Pós-Democrático

O Cafezinho está atento à repercussão do novo livro de Rubens Casara, o Estado Pós-Democrático. Trata-se de uma obra que já nasceu clássica, e que constitui uma importante arma na luta política contra os arbítrios jurídico-midiáticos que vitimam diariamente a democracia brasileira. *** No Jornal GGN O que Platão e Rufin tem a dizer aos […]

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O Cafezinho está atento à repercussão do novo livro de Rubens Casara, o Estado Pós-Democrático. Trata-se de uma obra que já nasceu clássica, e que constitui uma importante arma na luta política contra os arbítrios jurídico-midiáticos que vitimam diariamente a democracia brasileira.

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No Jornal GGN

O que Platão e Rufin tem a dizer aos arquitetos do Estado Pós-Democrático?, por Fábio e O. Ribeiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ontem fui ao lançamento do livro Estado Pós-Democrático na Livraria da Vila. Devorei meu exemplar em algumas horas.

Destinada ao grande público, a obra é solidamente ancorada numa respeitável bibliografia. Evitando citações eruditas cansativas, Rubens R. R. Casara comunica ao leitor leigo as principais características do fenômeno que estudou. O livro foi dividido em capítulos bem definidos que podem ser lidos ou não em sequencia. É possível desmontá-lo reorganizar as principais idéias do autor para dar ao leitor uma visão panorâmica da obra. É isto o que eu farei aqui antes de tecer algumas considerações.

“Para entender como a realidade do Estado Pós-Democrático é construída ou, mais precisamente, como se dá a percepção da realidade pelos atores políticos que atuam (e constroem) no Estado Pós-Democrático e no Sistema de Justiça Criminal que o sustenta, é importante, estudar esses fatores condicionantes, entre os quais destaca-se a ideologia. A ideologia, por um lado condiciona a percepção dos fenômenos e, por outro, produz uma espécie de ‘cegueira branca’, similar àquela descrita pelo escritor português José Saramago em sua obra Ensaio sobre a cegueira.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 116)

“Hoje, percebe-se claramente, que o Sistema de Justiça Criminal se tornou o locus privilegiado da luta política. Uma luta em que o Estado Democrático de Direito foi sacrificado. Não há como pensar o fracasso do projeto democrático de Estado sem atentar para o papel do Poder Judiciário na emergência do Estado Pós-Democrático. Chamado a reafirmar a existência de limites ao exercício do poder, o Judiciários e omitiu, quando não explicitamente autorizou abusos e arbitrariedades – pense, por exemplo, no número de prisões ilegais e desnecessárias submetidas ao crivo e autorizadas por juízes de norte a sul do país.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 127/128)

“O que há de novo na atual quadra histórica, e que sinaliza a superação do Estado Democrático de Direito, não é a violação dos limites ao exercício do poder, mas o desaparecimento de qualquer pretensão de fazer valer estes limites, Isso equivale a dizer que não existe mais uma preocupação democrática, ou melhor, que os valores do Estado Democrático de Direito não produzem mais o efeito de limitar o exercício do poder em concreto. Em uma primeira aproximação, pode-se afirmar que na pós-democracia desaparecem, mais do que a fachada democrática do Estado, os valores democráticos.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 21/22)

“O Estado Pós-Democrático implica um governo no qual o poder político e o poder econômico se identificam. Assim, muda-se também a relação entre a esfera pública e privada. Com isso desaparece a própria noção de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do poder econômico. O poder político torna-se subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder econômico torna-se o poder político” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 183)

“…O mercado tornou-se o eixo orientador de todas as ações, uma vez que foi elevado a núcleo fundamental responsável por preservar a liberdade econômica e política. Os bens, as pessoas, os princípios e as regras passaram a ser valorizadas apenas na condição de mercadorias, isto é, passaram a receber o tratamento conferido às mercadorias a partir de seu valor de uso e de troca. Deu-se a máxima desumanização inerente à lógica do capital, que se fundamenta na competição, no individualismo e na busca do lucro sem limites.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 39/40)

“A violação de direitos torna-se a regra em desfavor de determinadas pessoas. É assim para quem não interessa a sociedade de consumo e ao mercado (por não ser necessário ao processo de produção ou não dispor de capacidade econômica para consumir), para quem incomoda as elites (aqui entendidas como a parcela da sociedade que detém o poder político e/ou econômico) e para quem desequilibra em favor do oprimido a relação historicamente marcada pela vitória do opressor.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 71)

As virtudes do livro Estado Pós-Democrático são evidentes. O autor abordou as principais questões ligados ao objeto de estudo: os contornos ideológicos da nova realidade estatal, suas consequencias na esfera pública e privada, a consolidação de um apartheid entre os donos/beneficiários do Estado privatizado e aqueles que são excluídos dele e submetidos à opressão de maneira ilegal. Apesar da profundidade e seriedade do tema, a leitura é agradável.

O brilhantismo da obra me parece evidente, a influência platônica na sua composição também. Rubens R. R. Casara saiu da caverna (a realidade em que vivemos mergulhados) e conseguiu enxergar a natureza do que está sendo construído e mascarado pela tóxica contaminação da esfera pública por interesses privados. Após capturar um pouco de luz na sua biblioteca, ele humildemente retornou para comunicar suas descobertas àqueles que ele julga seus iguais e que, no entanto, estão sendo transformados em “menos iguais” pelo Sistema de Justiça criminosamente politizado.

É, portanto, em Platão que encontrei uma referência teórica para discutir aqui o trabalho do juiz escritor. Casara fala do Estado Pós-Democrático como se ele fosse uma nova modalidade de tirania imposta pelo neoliberalismo. Esta degeneração da esfera pública (e do regime político/jurídico) por causa de sua submissão ao mercado pode, portanto, ser comparada ao fenômeno descrito pelo filósofo grego:

“O livro VIII de A República estabelece, por sua vez, que o desequilíbrio das funções da alma e das funções da cidade, em que consiste a injustiça, acarreta fatalmente o ciclo dos cinco regimes políticos e dos cinco tipos humanos por meio de sua gênese mútua até o seu termo: o mundo do apeiron, marcado pela esterilidade absoluta da tirania.” (Platão, Jean-François Mattei, editora Uniesp, São Paulo, 2010, p. 145/146)

A julgar pelos fragmentos do livro Estado Pós-Democrático que foram acima transcritos a tirania, a desigualdade, a injustiça e a esterilidade são características comuns ao mundo do apeiron platônico e ao Estado Pós-Democrático. O fato de Rubens R. R. Casara não ter explorado esta dimensão filosófica no seu livro é irrelevante. A obra dele generosamente se abre para esta questão, sugerindo indagações muito relevantes. Como puderam os juristas, juízes e desembargadores brasileiros, muitos dos quais acostumados a mencionar as lições platônicas sobre a Justiça nas suas obras e decisões, renunciar ao seu poder/dever de cumprir e fazer cumprir fielmente a Constituição para construir entre nós um mundo do apeiron?

Ao ler Estado Pós-Democrático lembrei-me também de outro livro: “O Império e os novos bárbaros”, de Jean-Christophe Rufin, Bibliex, Rio de Janeiro, 1996. Após delinear a ruptura Norte/Sul e a ideologia da fronteira, Rufin delineia três futuros para a humanidade:

“A ideologia do desenvolvimento mantinha um vínculo entre os dois mundos. Postulava uma comunidade de natureza e, para quem estivesse atrasado, a possibilidade de alcançar quem estivesse mais à frente. A ideologia da fronteira rompe com essa unidade. Separa, de um lado, o mundo histórico, onde se aplicam categorias universais e, de outro, o mundo dos novos bárbaros, onde reina o relativismo cultural, isto é, as divisões étnicas, os ódios intercomunitários e o particularismo violento.” (O Império e os novos bárbaros, Jean-Christophe Rufin, Bibliex, Rio de Janeiro, 1996, p. 202).

Os três caminhos abertos para a humanidade seriam o de Marco Aurélio “…aceitação do pacto, escolher a segurança em detrimento da justiça, pensar que, para durar a civilização do Norte deve renunciar a ser universal.” (O Império e os novos bárbaros, Jean-Christophe Rufin, Bibliex, Rio de Janeiro, 1996, p. 203), o de Cleber “…Os que se distinguem devem combater para que os outros se elevem até eles. Nenhuma segurança justifica, a seus olhos, a renúncia à justiça.” (O Império e os novos bárbaros, Jean-Christophe Rufin, Bibliex, Rio de Janeiro, 1996, p. 207) e o de Von Ungeln “… inverter o pacto, afirmar que apenas a insegurança, a desestabilização do Norte podem levar a justiça.” .” (O Império e os novos bárbaros, Jean-Christophe Rufin, Bibliex, Rio de Janeiro, 1996, p. 211). O Estado Pós-Democrático está introduzindo dentro do nosso território e, principalmente, dentro do Estado brasileiro, a ideologia da fronteira que separa os Estados desenvolvidos do Norte dos Estados fracassados ou fadados ao fracasso do Sul.

A submissão do poder público aos interesses do mercado e a corrupção ideológica do Sistema de Justiça, inevitavelmente condenarão mais de 100 milhões de brasileiros à barbárie: exclusão social, desprezo político, acesso precário à educação e saúde, redução de direitos trabalhistas e previdenciários, sujeição a novas modalidades de escravidão e servidão, abusos processuais intencionalmente cometidos por autoridades judiciárias etc…

Diante do panorama traçado por Rubens R. R. Casara os brasileiros serão doravante forçados a optar por um dos três caminhos oferecidos aos Estados na década de 1990 por Jean-Christophe Rufin em razão da disseminação da ideologia da fronteira. Devemos, pois, escolher entre aceitar, reagir ou desestabilizar o Estado Pós-Democrático. A primeira opção o fortalece, a segunda o enfraquece, mas apenas a terceira tem potencial para possibilitar a reconstrução do Estado democrático de direito.

Uma última observação. Durante o lançamento do livro resenhado tive o imenso prazer de encontrar José Genoino na Livraria da Vila. Fiquei feliz ao vê-lo alerta, saudável, coerente e conversando sobre a realidade brasileira. Ao cumprimentá-lo disse-lhe que ele já foi e continua sendo meu deputado e que a vitória dos golpistas é transitória, pois nós nunca desistiremos dos nossos ideais. Atento ao que acontecia, Rubens R. R. Casara autografou meu livro com uma pergunta “Vamos resistir ao Estado Pós-Democrático?”. Que ele considere esta resenha como minha resposta.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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