(Crédito foto: Site Diarinho)
No Diarinho
“O Brasil vive uma série de arbitrariedades feitas em nome do combate à corrupção”
Quem não é do mundo jurídico talvez ainda não conheça o desembargador catarinense Lédio Rosa de Andrade. Mas o discurso emocionado que ele fez na sessão fúnebre do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ganhou o mundo através de um vídeo postado nas redes sociais. O reitor se suicidou num grande shopping, em Florianópolis, dias depois de ser preso pela operação Ouvidos Moucos, da polícia Federal. Ele não era réu em processo algum, não era suspeito de desvio de dinheiro, mas foi acusado de ter atrapalhado uma investigação administrativa sobre supostos desvios na UFSC, que aconteceram bem antes da sua gestão. Luiz Carlos não teve direito à defesa. Foi preso, algemado, submetido a uma revista anal e trancafiado, incomunicável, numa cela. Depois de ganhar a liberdade, foi proibido de dar aulas na Universidade Federal. O reitor cometeu suicídio dias depois. O discurso de Lédio no velório fez um grave alerta. “O momento que o nosso país passa é grave, perigoso e precisa de uma ação da sociedade, porque estamos vivendo o fascismo”. Lédio afirma que os abusos de poder da polícia, do MP e do judiciário precisam ser combatidos pelos que têm apreço à democracia. Reforçou que há uma histeria coletiva em nome do combate à corrupção, o que atropela direitos e vitima inocentes e o estado democrático de direito. Lédio entendeu o suicídio do amigo como uma forma de escancarar a grande injustiça que ele estava vivendo, tal qual fez Getúlio Vargas décadas atrás.
Lédio ainda falou sobre o corporativismo de autoridades que evitam tocar na ferida do abuso de autoridade. E no final deixou um recado esperançoso, pois acredita que a maioria das instituições são formadas por pessoas que defendem a democracia.
A Entrevista é de Franciele Marcon e as fotos são de Rafael Boeira.
DIARINHO – O senhor fez uma homenagem emocionada ao reitor Cancellier durante a sessão fúnebre na UFSC. Suas palavras devem ser interpretadas como o desabafo de um amigo ou também como as observações de um juiz?
Ledio: As duas formas. Eu acho que o momento era de emoção e muito mais de amizade. Mas impossível separar o homem amigo, o homem juiz, o homem político – é tudo uma coisa só. Eu abrangeria as duas versões da minha própria pessoa.
DIARINHO – Houve arbitrariedades na operação Ouvidos Moucos, aquela que culminou na prisão do reitor e na posterior decisão que o proibiu de continuar indo à universidade como docente?
Ledio: Eu tenho uma dificuldade legal de comentar, enquanto juiz, um processo que esteja no comando de outro… O que eu posso falar é em tese. O que posso afirmar, sem nenhum tipo de dúvida: o Brasil hoje vive uma série de arbitrariedades, feitas em nome da lei, em nome da justiça, em nome do combate à corrupção. Nós temos uma história do Direito Penal, do direito de punir do estado que vem desde o Iluminismo. E toda essa história é calcada em que a prisão é o último ato. A prisão é o ato de exceção. A prisão só é usada quando não tiver outra alternativa. O que nós estamos vendo é a banalização disso. A prisão vira o primeiro ato. A cena, o teatro que se faz para começar o espetáculo que depois, normalmente, pode inclusive acabar em absolvição. Isso é fascismo! Isso é o que está acontecendo no Brasil, lamentavelmente. [Por que está acontecendo isso?] Porque a nossa sociedade, lamentavelmente, não estruturou os princípios democráticos como valores absolutos. Toda a sociedade calcada na miséria, na injustiça social, na desigualdade social, ela tende, até por uma atitude meio que de desespero, de as pessoas relevarem a democracia, porque acaba que a democracia é vivenciada por uma parte da população. Trocam os princípios democráticos por promessas vãs de justiçamento, de segurança, enfim, de uma vida melhor, quando na verdade isso só piora a vida social. O Brasil não tem na democracia um valor preponderante. Estão preponderando instituições que não merecem a confiança do povo no ranking das mais confiáveis.
DIARINHO – O senhor também disse na sessão fúnebre que estava sentindo vergonha de ser juiz. Foi uma crítica isolada pelo que aconteceu nesta operação ou o senhor está realmente desencantado com a magistratura?
Ledio: Essa expressão acabou sendo muito forte e foi bem interpretada por uns e mal interpretada por outros. A primeira coisa que quero deixar bem clara: eu não tenho vergonha de ser desembargador. Tenho orgulho de ser desembargador. A segunda coisa que posso dizer, que a minha expressão não é relativa unicamente ao que aconteceu com o reitor Cau. Eu estou envergonhado porque uma parte da magistratura, que até o momento é minoritária, mas é uma parte que vem avalizando absurdos, avalizando terrorismo de estado, avalizando práticas fascistas que estão sendo praticadas também por uma parte da polícia e uma parte do ministério público. Não não as instituições que são fascistas. Não é isso que eu estou dizendo. Felizmente, ainda, e se nós não reagirmos talvez um dia não seja mais a minoria, as instituições preservam a democracia, mas há um crescimento de um pensamento fundamentalista que está mudando as regras do jogo e parece que há uma maioria acovardada que não está reagindo. A tragédia que o nosso reitor proporcionou parece que fez que as pessoas pararem para pensar e reagirem. Ainda dá para reagir no diálogo, ainda dá para reagir na conversa, daqui a algum tempo, se eles tomarem o poder, só pela violência. Não haverá outra alternativa.
DIARINHO – O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, afirmou que o Conselho de Justiça, o Conselho do Ministério Público e o Ministério da Justiça precisam investigar as circunstâncias da morte do reitor. Muitos amigos interpretaram o suicídio de Cancellier como um ato político. Somente após a morte dele houve uma mobilização pública que questionou os supostos abusos por parte das autoridades envolvidas na operação. O senhor concorda que Cancellier tirou a própria vida porque entendia que era a única forma chamar a atenção para o que ele estava vivendo?
Ledio: Eu sou amigo dele. Ainda estou usando o verbo no presente e não no passado, desde os nove anos de idade. Convivi com ele desde a infância, nos jogos e brincadeiras de criança, depois no colégio e depois na universidade. Nós fomos líderes estudantis e lutamos contra a ditadura militar. O Cau era um homem de princípios. Não era um cara que tem medo da morte – não era isso. Ele era um homem de princípios, sempre colocou os princípios acima de tudo. Quando ele se deparou com a mais estrutural injustiça, com a mais estrutural violência vinda do próprio Estado, ele se socorreu da única forma de combate que ele tinha. Esperar o processo que vai levar anos? Esperar que a grande mídia fosse dar espaço para ele se defender? Tudo isso ele tinha plena consciência que não ia resolver nada. O Cau era um intelectual, um leitor de Shakespeare, de Machado de Assis, conhecia profundamente o que é o ser humano, a sua capacidade de maldade, a sua forma de destruir a vida alheia e conhecia o que é a tragédia também. Eu creio e, obviamente, só ele poderia responder isso com 100% de segurança, que ele tomou um ato de coragem, um ato de liberdade. Porque nós temos um horror a morte, por isso a gente sempre acha que o suicídio é um ato desatinado, de uma pessoa perdida. Muitas vezes, o suicídio é o ato de maior liberdade. Getúlio Vargas já nos demostrou isso. Tem horas que a política nos leva ao extremo, principalmente quando você combate o fascismo, o extremismo e o fundamentalismo, os extremos dão como única arma a tragédia. Me parece que, hoje, a sociedade está debatendo. Essa própria entrevista é uma prova de que nós, que gostamos da democracia, precisamos dizer: “Para! Basta! Chega!”, não pode continuar assim. Nós temos que resolver as coisas de forma democrática. A democracia não permite atos fascistas. Você prender alguém que não é réu, não é acusado de ter desviado um único real da universidade, sem direito a defesa, sem contraditório? Isso é fascismo. Fascismo não é um nome. Fascismo é uma prática, uma forma de agir. No momento que qualquer cidadão, seja qual for, pode ser preso assim porque o delegado quer, porque o juiz avaliza o que o delegado quer e pronto… Sem algo substancial, sem consistência, isso é muito forte… A vida dos outros não é brincadeira. Eu, enquanto desembargador, não posso brincar com a tua vida e nem com a vida de ninguém. Eu tenho que ter muito respeito pela vida do outro. [As pessoas pobres têm sido vítimas deste sistema desde sempre, mas neste caso a prisão foi de uma pessoa conhecida…] Eu me sinto tranquilo porque há muitos anos venho criticando a “prisão de pobre”. Tem gente que diz: “agora que estão prendendo os ricos é que estão reagindo”. Eu tenho escrito artigos há muitos anos criticando a prisão do pobre. O Brasil é um escândalo. Todo mundo diz que no Brasil há impunidade, mas isso é a maior mentira. O Brasil é um dos países que mais prende no mundo. Estamos indo para 700 mil presos. E 48% dos presos, hoje, no Brasil, são presos sem condenação. Nem nos Estados Unidos, nem na China, que são os que prendem mais que o Brasil, prendem tanto sem sentença transitada em julgado. É o que a Hannah Arendt tentou alertar o mundo e parece que não aprenderam […] O juiz tem que ser um intelectual. Ele não pode se transformar em um funcionário banalizado. Ele não pode se transformar em alguém trivializado que fica homologando barbaridades que vão pedindo por aí. O policial pode pedir o que ele quiser, o juiz antes de deferir tem que pensar muito. Não pode cair no que a Hannah Arendt falou que é a banalização da violência. Lamentavelmente é o que está acontecendo no Brasil.
DIARINHO – O desembargador Odson Cardoso Filho, presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), disse que a democracia perde quando as decisões de juízes passam a ser questionadas por conselhos punitivos. Ele frisou que decisões judiciais já passam pela revisão dos tribunais superiores e que eles têm prerrogativa de corrigir eventuais erros. Qual a sua opinião sobre a afirmação do seu colega?
Ledio: Eu acho que o desembargador Odson, que é uma pessoa decente, digna, nesse ponto se deixou influenciar por ser presidente da associação. E como presidente da associação dos juízes, ele priorizou o corporativismo e fez uma análise restrita. Ele próprio pede uma análise mais profunda. E análise mais profunda pede que você deixe de lado o corporativismo… Ninguém de bom senso quer uma democracia com juízes subjugados. A questão não é essa. A questão é quando o juiz abusa do poder. Aí, fica por isso?! Vamos ao extremo: e se um juiz hoje quiser dizer que a Constituição está errada? Ele condenar uma pessoa a pena de morte, pois tem um monte de gente favorável a pena de morte. Daí o juiz, simplesmente, condena uma pessoa a morte e diz que ela não tem direito a recurso e executa a pena de morte. Aí, o corporativismo vai dizer que esse juiz está certo? Quando chega nos extremos nós, os juízes, temos que ser os primeiros, em causa própria, em defesa da instituição, a dizer não aos extremistas. É um erro da associação, seja a catarinense ou a brasileira, defender que o juiz está acima do humano, que o juiz pode livremente praticar excessos. Nós estamos criticando o excesso, o absurdo, o fundamentalismo, a ilegalidade e até o crime.
DIARINHO – A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e a Associação dos Juízes Federais de Santa Catarina (AJUFESC) também emitiram notas repudiando as afirmações sobre eventuais exageros na Operação Ouvidos Moucos. Elas afirmam que os critérios usados para uma prisão processual, ou sua revogação, são controlados, restritos e rígidos. O senhor considera isso verdade na prática do processo penal em todo o Brasil?
Ledio: Não, não considero. A prática processual brasileira é de um punitivismo exagerado e essas ações, lamentavelmente, continuam repetindo a praga do corporativismo. É só estudar a história ocidental. O corporativismo é algo antidemocrático. O corporativismo não pode fazer que nenhuma corporação, seja a polícia, seja o ministério público, seja a magistratura, esteja acima da sociedade. Eu repito: ninguém é contra que a democracia tenha juiz forte, polícia forte e ministério público forte. Eles têm que ser fortes, mas guiados pelos princípios constitucionais. Ou a associação acha que prender uma pessoa que não está botando ninguém em perigo, que não há a mínima possibilidade de reagir fisicamente, algemar essa pessoa, levar essa pessoa acorrentada pelas pernas, levar para um presídio de segurança máxima, tirar a roupa dela, investigar se tem coisas no ânus e na genitália; presa às seis da manhã… O que ele ia fazer nesse meio tempo, se estava em poder da polícia, para esconder algo no ânus?! Tudo isso é feito, e não há abuso? O que é abuso então? Convenhamos, isso é importante que seja dito, o reitor não é réu de nada. O reitor não é acusado de ter desviado um centavo da UFSC. O crime que se diz que ele teria cometido, que é o crime de obstrução de justiça, que não é nem obstrução de justiça, porque é um processo administrativo, não é um processo judicial. Mas suponhamos que seja. É um crime no qual se fosse provado, condenado, não seria condenado à prisão. Seria uma pena alternativa. É quase uma conversa do louco. Se isso não é abuso de autoridade, não sei mais o que é abuso de autoridade…
DIARINHO – Desde o início da Operação Lava Jato assistimos muitas prisões de políticos e empresários poderosos e isso deu uma sensação de que, enfim, “a justiça seria para todos no Brasil”. Mas a operação também deu visibilidade a juízes e procuradores que passaram a ser vistos como celebridades, dando entrevistas, participando de eventos sociais e até inspirando um filme. O senhor é juiz há muitas décadas. Acha natural esse protagonismo dos juízes, delegados e procuradores?
Ledio: Eu não acho natural da forma como está sendo feito. Se um juiz ficar famoso por escrever livros fantásticos, ou porque faz um trabalho social de relevância. O que me parece absurdo, antidemocrático e perigoso é um juiz, um promotor e um policial criarem fama desrespeitando a Constituição e usando as pessoas, os corpos das pessoas, em benefício próprio. Isso não pode acontecer. Isso é fascismo! Repito: isso é fascismo – e não pode ocorrer. Não há nada demais em um juiz ficar famoso. Nós temos livros de grandes constitucionalistas, mundialmente conhecidos, que eram juízes. Foram conhecidos justamente pelo combate a qualquer tipo de fundamentalismo, pela defesa da democracia, são pessoas importantes. Nenhum deles usou quem quer que seja para se autopromover. Nós temos na Itália, por exemplo, a operação Mãos Limpas, tão fundamental. O juiz Falcone foi assassinado pela máfia. O juiz Falcone nunca usou nenhum réu em benefício próprio para aparecer. Temos que diferenciar as coisas. Se o juiz trabalha honestamente, respeita a Constituição e prende corruptos importantes, que fique famoso, não tem problema nenhum.
DIARINHO – Qual o limite ético para as manifestações públicas de um juiz que terá que julgar um processo no qual se espera que ele seja técnico?
Ledio: Isso é fundamental. Se o juiz se manifesta pré-julgando, ele tem que se dar por impedido. Tem que se dar por suspeito de natureza íntima, no mínimo, porque não tem mais condições de julgar. No momento que alguém é réu no processo, seja quem for, e já se sabe de antemão que ele vai ser condenado pelo juiz, isso já é antidemocrático. Qualquer um de nós, seja quem for, não importa a condição econômica, tem o direito constitucional de ser julgado por um juiz imparcial. O mínimo de imparcial. Porque a imparcialidade total não existe. Mas o mínimo de imparcialidade é o que se espera. Não é possível que o magistrado extrapole essa função. Cada um tem a sua função. Se eu quero ser pop star, eu vou procurar a televisão, vou ser ator, vou ser jogador de futebol, alguma coisa desse tipo. Agora, se eu optei pela magistratura, eu tenho que fazer o meu trabalho. Se o meu trabalho é bom, e a imprensa divulgar, ótimo. Agora eu usar o poder que o Estado me deu de ter que tratar com as coisas mais caras, no sentido de mais importantes para a sociedade, que é a liberdade, a vida, a democracia, e se esse poder eu uso para benefício não da coletividade, não do cidadão, mas para benefício pessoal, eu estou destruindo o meu país.
DIARINHO – Qual a sua visão sobre a operação Lava Jato?
Ledio: Eu acho a operação Lava Jato importante no sentido de que a corrupção no Brasil tem que ser atacada. Agora, lamentavelmente, durante esse processo, algumas questões foram malfeitas, sob o meu ponto de vista. Questões que desobedecem as regras democráticas e jurídicas do nosso país, que se chama o estado democrático de direito. Nós não podemos atacar o estado democrático de direito em nome de nada, nem mesmo em nome do combate à corrupção.
DIARINHO – Como o senhor enxerga o papel de parte da mídia quando ela participa ativamente das etapas da operação Lava Jato, usando critérios subjetivos para divulgar e destacar alguns assuntos e suprimir outros, por exemplo?
Ledio: Há que diferenciar mídia de mídia. Existem mídias honestas, combativas, que tentam engrandecer o papel da imprensa, o que é fundamental para a democracia. Não há democracia sem judiciário forte, sem ministério público forte e sem polícia forte – apesar de todos serem controlados pela Constituição. Assim como não há democracia sem liberdade de imprensa. Agora, lamentavelmente, tanto a liberdade de imprensa como as instituições jurídicas, muitas vezes, são desvirtuadas. A grande mídia tem feito um papel deletério no Brasil. Porque condena de antemão. É inaceitável que um processo em segredo de justiça só seja compartilhado com a mídia. Porque quando vão prender as pessoas, quase sempre de madrugada, a mídia já sabe. Mas se é um processo em segredo de justiça, quem avisou à mídia, senão exatamente as pessoas que estão comandando o processo?! Esse vínculo meio prostituído da mídia com as autoridades, um querendo se promover, os outros querendo o sensacionalismo, isso não é imprensa livre. Isso é manipulação de massa, atitude fascista e antidemocrática.
DIARINHO – A Lei do Abuso de Autoridade, aprovada recentemente no Senado, vai se chamar Lei Cau Cancellier, segundo o senador paranaense Roberto Requião [PMDB]. Ele sempre foi uma voz crítica da espetacularização da justiça e defende que todos os servidores públicos precisam ser punidos em caso de abuso de poder. Por outro lado, juízes e procuradores foram ferrenhos críticos desta nova lei, pois dizem que ela será usada com o intuito de perseguir quem processar políticos. Como o senhor analisa a lei?
Ledio: Eu acho que essa postura corporativista de dizer que a lei vai ser usada para perseguição é de uma estupidez… O parlamento vai fazer a lei, mas quem vai aplicá-la somos nós, os juízes. Quem diz isso está dizendo que nós, juízes, vamos perseguir juízes. Que nós, juízes, vamos perseguir o ministério público, porque somos nós, juízes, que vamos aplicar a lei e vamos interpretar a lei e dar a sentença, ou seja, dizer se a pessoa praticou ou não abuso de autoridade. Vou repetir: o grande erro corporativista dessas associações é confundir um ministério público livre, um judiciário livre, com abuso de poder. Todos os democratas querem instituições fortes e democráticas. Ninguém quer abuso, parece que só as associações estão defendendo o abuso, a ilegalidade. Que a população entenda: o que não se quer é quem tem o poder do Estado, use esse poder para abusar, para fazer atos que destroem a vida alheia, muitas vezes de pessoas inocentes, sem nenhum motivo. Isso que se está querendo parar. Em qualquer país democrático do mundo é assim. Você não vê na Noruega, na Finlândia, o juiz abusar do poder. Nem na Inglaterra. Eles estão controlados pela democracia. Aqui parece que falar em controlar democraticamente virou a antidemocracia.
DIARINHO – A presidente do STF, ministra Carmem Lucia, afirmou esta semana que se os “brasileiros soubessem tudo o que ela sabe não dormiriam mais à noite.” A declaração misteriosa acabou sendo criticada porque parece que há uma omissão da presidente da mais alta corte de justiça do Brasil. Até que ponto ela pode atuar para corrigir o que supostamente sabe de tão grave sobre a nossa República?
Ledio: Eu não sei o que ela sabe e não sei o que ela quis dizer com isso. Difícil comentar. Salvo a pergunta concreta: como presidente da mais alta corte de justiça, a primeira coisa que ela tem que fazer, na minha opinião, é fazer valer as decisões do Supremo. Por exemplo, o Supremo tem uma súmula dizendo que você não pode algemar uma pessoa se ela não representar perigo. Alguém vai me dizer que esses professores presos representavam perigo para alguém? Isso é um desrespeito à súmula do Supremo. O Supremo tem que ter posição firme em defesa da Constituição. O Supremo, na minha opinião, tem que anular todos os atos feitos por juízes e tribunais que não respeitam os rigorosos princípios do estado democrático de direito. Isso o Supremo já faz em parte, mas há que reforçar um pouco mais. O Supremo não pode se atemorizar diante da imprensa. O Supremo tem que dar passos em razão da democratização e não pode avalizar essa histeria coletiva que estávamos vivendo, policialesca, que todo mundo é culpado até que se prove o contrário. Todo mundo é inocente até que se prove ao contrário! Isso é fundamental. As pessoas podem até não compreender, mas isso é fundamental até para que a gente viva em paz.
DIARINHO – Alguns generais têm falado abertamente sobre o que chamam de “necessidade de uma intervenção militar” no Brasil. Parte da população apoia esse discurso. Onde falhamos enquanto nação para que a sociedade deixe de defender os valores democráticos e peça a volta de um regime que matou, torturou, censurou e perseguiu os brasileiros durante mais de 20 anos?
Ledio: Os fascistas de espírito, como eu gosto de chamar, esses não morrem nunca. Eles são fatalistas, são fundamentalistas, acham que só eles estão certos, estão acima de tudo e o resto errado. O resto não vale nada, é lixo humano. Eles são a “última bolachinha do pacote”, como se diz popularmente. Isso é deletério, fundamentalismo, temos que acabar. O que, lamentavelmente, faz com que essas pessoas ainda existam é exatamente a perda dos valores democráticos. Nós, pela ausência de justiça social, por políticas deletérias de governo, por uma classe, por uma elite econômica que domina esse país, onde menos de 10% da população é dona de tudo, e os outros 90% vivem na miséria… Essa desestrutura do que se pode chamar de justiça social, faz com que as pessoas percam o valor pela democracia. Afinal de contas, um pobre miserável vai querer democracia para que, se ele está passando fome?! Ele quer resolver o seu problema. E se a situação de penúria vai ser resolvida por um general, ele vai cair nessa falsidade. Mas não vai resolver, não. Quando a ditadura matava e torturava, ela não acabou com a miséria. A corrupção endêmica no Brasil começou com a ditadura militar. Todo mundo acha: “ah, no tempo da ditadura não havia corrupção…” Havia, e muita! O problema é que não se podia divulgar na imprensa. Se divulgassem, matavam as pessoas. A corrupção como vírus social começou na ditadura militar. Não se engane. Não pense que havia honestidade porque não havia. É só estudar a fundo a história do Brasil. [A quem interessa sermos uma nação de miseráveis?] A quem enriquece com isso. Para acabar com a pobreza, só tem uma solução, a divisão. Divisão da riqueza, divisão da terra, justiça social. Aonde há justiça social não existe a disparidade econômica brutal que há no Brasil. Onde não tem pobreza? Na Finlândia, na Noruega. Lá há pessoas ricas, mas há atendimento hospitalar, atendimento escolar, garantia de trabalho etc. Interessa a miséria para quem se aproveita dela.
DIARINHO – O judiciário tem a fama de ser um poder bastante corporativista, como o senhor já comentou nessa entrevista. O senhor teme alguma represália ou mal estar entre seus pares pelas declarações críticas desta entrevista?
Ledio: Não, ao contrário. No último ato especial vários desembargadores se solidarizaram com a família do reitor e hipotecaram pêsames e a tristeza pelos fatos que ocorreram. Há uma boa parte da magistratura, a maioria, que defende a democracia. Não se engane, a magistratura não é tão corporativista ao extremo exagerado que se pensa. E nem tão fascista quanto se pensa. Tem novamente que diferenciar… Eu acho que a magistratura, na grande maioria, é contra a arbitrariedade e quer agir pelos princípios constitucionais. É a maioria! Há os extremos. Mas a média é uma magistratura que busca fortalecer a democracia.
NOME COMPLETO: Lédio Rosa de Andrade
IDADE: 58 anos
NATURAL: Tubarão
ESTADO CIVIL: vive em união estável
FILHOS: três filhos
FORMAÇÃO: Graduação e especialização em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1981); graduação em Psicologia e especialização em economia, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (1999); mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992); doutorado em Filosofia Jurídica, Moral y Política, pós-doutorado em Direito e doutorado em Psicologia Clínica e da Saúde, todos pela Universidad de Barcelona (1995 e 2015).
EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS: É desembargador no Tribunal de Justiça de Santa Catarina e professor concursado da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Tem experiência nas áreas de Psicologia, Psicanálise e Direito, com ênfase em Direito Alternativo, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, direito alternativo, filosofia, poder judiciário, psicologia jurídica, psicanálise, psicodinâmica do trabalho e sociologia.
“O que não se quer é quem tem poder do Estado, use esse poder para abusar, para fazer atos que destroem a vida alheia, muitas vezes de pessoas inocentes. Isso que se está querendo parar.”
“Eu estou envergonhado porque uma parte da magistratura, que até o momento é minoritária, vem avalizando absurdos, avalizando terrorismo de estado, avalizando práticas fascistas que estão sendo praticadas por parte da polícia e do ministério público também.”
“A democracia não permite atos fascistas. Você prender alguém que não é réu de nada, não é acusado de ter desviado um único real da universidade, sem direito a defesa, sem contraditório, isso é fascismo! Fascismo não é um nome. Fascismo é uma prática, uma forma de agir.”
“É um erro da associação de juízes, seja a catarinense ou a brasileira, defender que o juiz está acima do humano, que o juiz pode livremente praticar excesso. Nós estamos criticando o excesso, o absurdo, o fundamentalismo, a ilegalidade e até o crime.”