Por Rogerio Dultra dos Santos
Hoje, depois de implantado e disseminado o modus operandi “Lava-Jato” por uma parte de juízes, delegados e procuradores brasileiros, já é um truísmo afirmar que o Poder Judiciário age politicamente. Isto não impede que tal afirmação continue a chocar. Afinal de contas, o que justifica a existência do poder repressivo centralizado nas instituições do Estado, o que impede que indivíduos façam “justiça” pelas próprias mãos, é a imparcialidade dessas instituições e seu funcionamento orientado pela lei.
Assim, no momento em que não há mais a segurança da imparcialidade, quando juízes fazem política através do processo, quando procuradores e delegados buscam a fama e os holofotes da mídia por meio de uma atividade judicial orientada de forma venal, mas que deveria ser burocrática, técnica e impessoal, se está diante de um novo paradigma.
O modelo teórico do Estado de Direito, que se realiza através da lei e submetido à lei abre espaço para a discricionariedade e para o arbítrio. O Estado de Direito se transmuta em máquina personalizada de guerra, cuja justificação permanece jurídica. Este é o núcleo da ideia de Estado de Exceção: a violação dos limites jurídicos por indivíduos respaldados – respaldo retórico – pelo próprio direito.
Mais uma vez, o Estado de exceção
Me permitam uma rápida passagem por este tema batido, antes de entrar no cerne do argumento. O Estado de exceção, pela lavra de seu criador intelectual, o jurista alemão Carl Schmitt, é a possibilidade de que uma decisão política soberana imponha o que considera ordem e segurança públicas quando estas são perturbadas. Esta decisão pessoal, por ser soberana, paira acima dos limites normativos. Embora se pretenda uma ação jurídica, não se submete ao direito ou à constituição.
Schmitt desenvolve esta tese em 1922, no seu livro Teologia política, a partir da frase icônica “soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”. Antes, portanto, da ascensão de Hitler ao poder, já estavam dadas as bases intelectuais e jurídicas para que este governasse como um ditador respaldado pela constituição.
Estabelecida a base teórica do arbítrio, é preciso examinar a sua prática institucional. Afinal de contas, estamos diante de um aprofundamento da politização das instituições repressivas que não tem paralelo na história recente, fora do âmbito da Ditadura Empresarial-Mlitar de 1964, uma ditadura escancarada.
Este aprofundamento do arbítrio repressivo no Brasil deve ser examinado sob a perspectiva de que, de fato, nunca deixou de operar, em especial contra a população pobre. Veja-se, por exemplo, que a maioria absoluta dos quase 1 milhão de presos no Brasil é pobre, sendo que 40% desses estão presos provisoriamente, sem culpa formada, sem condenação.
A prática da Ditadura
Quase vinte anos depois da publicação do livro de Carl Schmitt, já sob pleno regime nazista, outro livro, desta vez com viés crítico, examina os resultados práticos da exceção nas instituições judiciais. Torna-se instantaneamente em um clássico estudo sobre as ditaduras no ocidente.
O jurista alemão Ernst Fraenkel, em seu livro O Estado Dual: uma contribuição à teoria da ditadura (1941), dizia que na Alemanha de Hitler coexistiam dois modelos de Estado e, portanto, dois modelos de juridicidade: o Estado de Direito, calcado em regras jurídicas nazificadas, e o Estado de Prerrogativa, orientado pela palavra do Füher, que transforma seu arbítrio pessoal em direito. O problema da tese de Fraenkel é saber se é possível a permanência do Estado de Direito ao lado de um Estado de Prerrogativa.
Para ele, a partir de sua experiência como advogado de ativistas de esquerda, o Estado nazista era duplo. Por um lado, pretendia afiançar a proteção jurídica da propriedade privada, afim de garantir o desenvolvimento de um capitalismo monopolista por meio de uma estrutura administrativa calcada no respeito aos estatutos. Por outro lado, fazia operar um sistema governamental não alcançável por limites normativos e garantias jurídicas. O funcionamento do arbítrio e da violência sem limites se voltava em especial para a classe operária e para os inimigos do Estado, como judeus e comunistas.
Esse Estado duplo minava qualquer perspectiva de que direitos e garantias individuais fossem de fato válidos. Este contexto, examinado por Fraenkel em processos judiciais, comprovava empiricamente que a prática das instituições de Estado fazia com que cada elemento do Estado de Direito fosse invadido e destruído pelo Estado de Prerrogativa.
Nesse sentido, o Estado de Direito na Alemanha nazista subsistia apenas nas páginas de seus códigos e estatutos. A prática da violência institucionalizada destruia a sua essência, que é o controle e a submissão da atividade estatal aos limites da lei. O Estado de Direito desaparecia, assim, sob o arbítrio operacional de suas instituições.
A burocratização do arbítrio
No caso brasileiro, não houve uma solução de continuidade entre as práticas institucionais repressivas na passagem da ditadura para o regime constitucional de 1988. O que se vê hoje, sob os holofotes da grande mídia, são práticas arbitrárias usuais, geralmente ocultadas ou invisibilizadas pelo público-alvo usual.
O que a “Lava-Jato” traz de novidade não é, portanto, a seletividade da repressão, nem mesmo a politização da repressão, presentes na Ditadura brasileira. A novidade é a união do controle político da repressão à condução das ações repressivas pelos meios de comunicação. Do juiz de primeira instância até o Ministro do STF, passando por agentes, delegados, promotores, procuradores, todos se aliam às determinações dos meios de comunicação de massa.
Não se trata somente do padecer da influência inebriante dos holofotes. É cada vez mais claro que a embriaguez da fama e da aceitação da “opinião pública” são hoje mais potentes que a força da lei.
Mas a vaidade de alguns não explica o caráter de fato social, – isto é, a regularidade quase burocrática – das constantes perseguições direcionadas, das condenações sem processo, das penas sem culpa provada que ocorrem ao arrepio dos estatutos legais.
Uma acusação televisionada vale mais que mil sentenças condenatórias transitadas em julgado.
A diluição da autonomia decisória do judiciário se realiza, no país, com a sua complacência feliz. O juiz-celebridade, o delegado-artista, o misistro-personalidade transformam instituições impessoais por excelência em instrumentos de uma arbitrariedade privada, orientada para finalidades venais.
A decadência do arbítrio
Os limites formais do direito são um entreve ao desenvolvimento do arbítrio. O aprofundamento do Estado de Exceção depende não somente da universalização das práticas repressivas, mas na alteração dos limites legais para o seu exercício. Isto parece uma contradição, ou seja, se as leis não são aplicadas de fato, porque se importar em modificá-las?
O livro de Fraenkel esclarece este ponto: o Estado de Prerrogativa se justifica pela manutenção formal do Estado de Direito, mesmo que este último não se realize de fato.
Não por acaso, o modelo “Lava-Jato” depende de uma legislação penal e processual penal permissiva e trabalha politicamente pela sua aprovação no Congresso Nacional. Leis mais flexíveis à atividade repressiva têm como objetivo a legalização das práticas arbitrárias, que por serem arbitrárias são, sob os estatutos do Estado de Direito, ilegais.
As “Dez medidas contra a corrupção” são, nesse sentido, a tentativa política de legalização do arbítrio pela sua entronização no ordenamento jurídico. A pauta da reforma legislativa integra o esquema de afirmação política do Estado de Exceção.
Exemplar é o caso do grampo ilegal feito pela “Lava-Jato” contra a Presidente Dilma e o Ex-Presidente Lula. O TRF-4 colocou no papel a lógica da ditadura e do arbítrio, talvez de forma mais didática que qualquer tratado sobre o assunto. Diz a decisão que arquiva o processocontra o Juiz Moro:
“Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada “Operação Lava-Jato”, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns. Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, por parte daqueles, garantindo-se assim a futura aplicação da lei penal, é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º, XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal. A ameaça permanente à continuidade das investigações da Operação Lava-Jato, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional.”
O texto é auto-explicativo. O direito atrapalha o arbítrio e a exceção. Enquanto não se muda o direito, se autoriza de forma ilegal a exceção. Quando as forças repressivas dominam politicamente a conjuntura, o cinismo substitui a hipocrisia.
Porém, a necessidade de justificação do arbítrio é o calcanhar de Aquiles das ditaduras. As contradições entre os princípios que legitimam o sistema repressivo e a sua prática venal e arbitrária explicitam-se em seu prejuízo. O quanto teremos que agüentar antes que este modelo entre em decadência e o quanto do nosso país restará depois disso é que é o grande mistério.