O fim das escolas públicas no Brasil pelo Supremo Tribunal Funeral – por Elika Takimoto
Está faltando amor no mundo mas também interpretação de texto, como disse Sakamoto. Acrescento: está faltando claramente contextualizar as informações.
Desde que tiraram Dilma da presidência, não economizamos em alertas de que o que motivou a interrupção do mandato não foi as tais pedaladas e muito menos a vontade de acabar com o corrupção do país. Basta olhar o histórico e a ficha de nossos deputados, senadores e daqueles muitos que vestiram a camisa da CBF para pedir o impeachment e veremos os interesses por detrás de tudo. O que queriam era instaurar um governo conservador – que jamais conseguiria vencer nas urnas – cuja base econômica está no agronegócio, historicamente alheio à questão nacional e à democracia. Quem nos governa hoje é o capital financeiro cuja articulação multinacional é a principal ameaça ao conceito de Estado-nação, como todos estamos testemunhando.
Articulados social e culturalmente pelo discurso construído por uma imprensa monopolizada ideologicamente, e a serviço dos piores interesses da classe dominante, são os que estão no poder depois desse golpe.
Tudo o que estamos vendo sendo votado e aprovado às pressas não seria possível se fosse submetido à opinião popular. As pautas que estão passando representam uma ruptura, a meu ver, muito mais profunda que a de 1964, e como esta o foi, só está sendo levada a termo por um governo ilegítimo, fundado num direito autoritário que o atual Congresso não titubeia em legislar.
Isso posto, vamos ao que aconteceu ontem quando o Supremo Tribunal Federal determinou que um Estado laico como o Brasil é compatível com um ensino religioso confessional, vinculado a uma ou várias religiões específicas, nas escolas públicas.
O que tínhamos antes disso era um ensino público religioso facultativo não confessional, ou seja, quem ministrasse a disciplina poderia expôr as doutrinas, as práticas, estimularia o debate sobre as dimensões sociais, refletiria sobre correntes não religiosas explicando o que é um ser ateu e agnóstico, enfim, poderia fazer nessa aula ponderações de nível filosófico, sociológico, antropológico ajudando o aluno a entender melhor as diferenças. O que o professor não podia fazer era propagar uma só religião e atuar como representante dela dentro das escolas públicas brasileiras, pois isso violaria a laicidade do Estado.
Águas passadas. Ontem, isso tudo foi para o ralo. A maioria dos ministros do Supremo considerou que há como pregar a religiosidade e crenças específicas em escolas públicas sim senhor.
Há quem acredite, diante dessa terrível conjuntura, que poderemos falar sobre as mais de cem religiões dentro das escolas. Eu gostaria de ter esse nível de ingenuidade, mas o crucifixo no plenário do Supremo, assim como o que vemos na Câmara, não me permite. Há quem bata na tecla que o ensino continuará sendo facultativo. Perdoe, Pai, eles não sabem que em muitas escolas, como foi apontado diversas vezes durante o julgamento, os estudantes são expostos a sérios constrangimentos quando se negam a entrar na aula de religião. No mais, para aqueles que não conhecem a realidade de nossas escolas públicas, saibam que sequer há alternativas curriculares para quem se recusar a ter as aulas de religião.
Mas não é só isso. Larga de ser ingênuo e visite as escolas do seu bairro e fique sabendo que o ensino religioso já tem sido usado por determinados grupos religiosos que disputam o Estado. E, assim como em muitas Igrejas, as escolas acabaram sendo também um local onde se propaga intolerância e preconceito.
É de deixar o queixo caído ouvir pessoas dizendo que o ensino religioso será pluralista. Fico pensando onde essa galera vive. Cadê a “pluralidade educacional”até mesmo nas escolas que não têm o ensino religioso? Onde estudamos a história da África, onde debatemos os outros conceitos de ciência? Onde aprendemos que “devemos estudar para ser alguém na vida” e que “ser alguém na vida” quer dizer ter muito poder de consumo? Onde aprendemos que se não ficarmos quietinhos e formos extremamente obedientes não iremos ter sucesso na vida, a dizer, dentro de uma empresa? Onde aprendemos a obedecer cegamente e sem questionar as ordens que nos são dadas? Onde aprendemos a só dar respostas e não a refletir sobre as mazelas do mundo? Onde somos desencorajados a descobrir que temos força para reverter todo esse quadro de desigualdade social? Onde aprendemos que o mundo é assim mesmo, que temos que aprender a nos comportar direitinho nele para termos “sucesso”? Onde aprendemos a não discutir sobre o quanto a miséria é algo abominável? Onde não nos fazem pensar que jamais deveríamos ficar felizes com a comida que comemos enquanto houver fome no mundo? Essa escola pública (municipal ou estadual) que busca uma “educação plural” está em que lugar do Brasil que eu, trabalhando há mais de 20 anos com isso, nunca vi?
Quando deveríamos, pela nossa realidade, lutar para acabar com o ensino religioso separado, desvinculado das aulas de história, de geografia e (por que não?) de ciências, quando deveríamos repensar se faz sentido essa disciplina em escolas públicas ou se a presença dela já por si só não constitui uma exceção, feita pela Constituição, à laicidade do Estado, voltamos dez casas e estamos discutindo se essa exceção poderia ou não estar vinculada a uma específica religião.
Foi como disse o relator do processo e defensor do ensino não confessional, o ministro Luís Roberto Barroso: “Vejo esta prova como uma discussão fora de época, entre iluminismo – que já no século XVIII pregava pela separação de igreja e Estado – e pré-iluminismo!”
Estamos acompanhando a recente ascensão do conservadorismo religioso e de suas expressões políticas nos poderes do Estado. Há uma forte corrente querendo a qualquer custo proibir o tratamento de temáticas relacionadas a gênero e à raça nas escolas públicas que em absolutamente nada tem a ver, como dizem os ignorantes, em sexualizar as nossas crianças.
E como disse no início dessa conversa, estão faltando amor no mundo, interpretação de texto e muita contextualização das informações. Entendam de uma vez por todas que nem tudo que é legal é legítimo.
O pronunciamento final do STF ontem não deixa dúvidas sobre a grande relevância da necessidade de uma forte resistência a essa onda conservadora. O que veremos, fiquem sabendo, é mais do mesmo, a dizer, o fortalecimento da imposição de pensamento “cristão”/evangélico, já que essa é uma bancada que só cresce dentro de nossa estrutura política. Nada contra nenhuma religião, vale observar, contanto que nenhuma delas seja imposta nas escolas públicas.
Cadê os educadores nesse debate? Por que não fomos convidados para participar? Como assim o STF está agindo como se esses ministros fossem políticos eleitos?
Este é um estado de exceção com sabor de fascismo.
A escola pública está morta assim como a Democracia no Brasil.
Batuquemos.