O fascismo nosso de cada dia, o vídeo fake de Lula e o de Marcela Temer
Por Roberto Ponciano, colunista do Cafézinho
Como filósofo, sempre dissenti até do termo “ética na política”, não existe “ética na política”, pelo fato de que a Ética, como ciência e prática só pode existir na política. A Ética é da política, da polis e não na política. A ética é elemento da polis, do zoon politikon, e só pode existir dentro da política. Quem diz “ética na política”, comete o erro de praticar uma torsão, de fora para dentro e tentar impor regras que quase nunca são éticas para a política. Em 100% dos casos comete o equívoco de confundir moralismo, bom mocismo, quase sempre a partir de posições cristãs não éticas, mas puramente do senso comum para a política. Daí, o tempo inteiro as conclusões são limitadas como as pedras dos mandamentos de Moisés. “Não roubarás”, “não matarás”. Não matarás, mas se for em legítima defesa? Toda a discussão de uma ética imanentista e não espiritualista divina (provinda do mundo material, concreto, materialista, social), provém da política de dentro para dentro, a partir da práxis. A Ética nasce na Grécia, guerreria, finalista e proporcional.
O grego não acreditava no além-túmulo, ou melhor, acreditava que o além túmulo era uma cópia piorada do mundo material. A filosofia de Platão, o mundo das ideias, a imortalidade da alma, o rio Lete, a teoria do eterno retorno é fruto tardio da filosofia grega, que Nietzsche acertadamente situa na decadência da pólis grega, e não era uma crença compartilhada pelos gregos. Não à toa Sócrates foi condenado por corromper a juventude e desacreditar os deuses gregos, a concepção de deus que surgia da filosofia moral de Sócrates e Platão, estava longe de ser a religião comum do homem grego. O homem grego vivia para o hoje, e se realizava na guerra e na vida política. A Paidea era uma educação prática para a vida pública. Assim, o ethos grego, o primeiro estudado como ciência à parte a partir da lógica, é guerreiro, não pacifista, finalista, mas proporcional.
André Comte-Sponville nos mostra duas coisas bem interessantes, uma como a política é a instância do embate, da guerra, e como sua ética deve ser então guerreirista, a outra como o triunfo do capitalismo diante do socialismo na década de 80 e início dos anos 90 tem de ser buscado na amoralidade do capitalismo e não numa possível “ética de mercado”. O mercado, monstro ou deus invisível não tem ética. O capitalismo é amoral, desemprega milhões em nome da reprodução sócio-metabólica ampliada de mais valia. O capitalismo não triunfou por sua “suposta democracia”, da qual não se valeu em larga escala, muito pelo contrário: guerras, subornos, golpes de Estado, ditadura, chantagem, mecanismo de dependência e endividamento. O capitalismo triunfou por sua amoralidade que o tornou mais flexível às mudanças do que o socialismo num determinado momento da história humana. Sem saber, Comte-Sponvile retoma Marx, que estuda o avanço e o retrocesso da sociedade por leis econômicas, e não através de uma história pós factum, baseada na moral e não na economia.
Assim, efetivamente, esta longa introdução é para nos separar daqueles neo-filósofos da sociedade do espetáculo, pregadores da “moral” e da “honestidade”. De um certo bom mocismo que vende livros na bienal e dá coluna na grande mídia e minutos preciosos na televisão. Não acreditamos que a mudança social se dê por “uma mudança interior que começa nos seres humanos” e nem queremos discutir a política através da ética. Pelo contrário, queremos sempre discutir a ética pelo viés da política. Não acreditamos, por exemplo, em “resistência pacífica”. Nunca defenderíamos que diante da agressão nazista, a melhor forma de defesa seria o pacifismo. Defenderíamos, gozosamente, que na segunda guerra, fascista bom era fascista morto, e defendemos que os povos devem lutar por todos os meios necessários, inclusive os armados, quando há um desenlace violento da luta, para defender seu direito à emancipação. Todavia, isto não é um vale-tudo.
Algumas conversas são para sempre. Neste texto, lembro de duas. Uma com meu falecido pai, também Roberto Ponciano, marxista e brizolista, que me ensinava, há dois tipos de propaganda. 1. A nazi-fascista, estilo Goebbels, que diz que uma mentira dita mil vezes equivale a uma verdade. Esta é a propaganda capitalista, sempre, mesmo em tempo de paz. 2. A outra, a nossa, a leninista. Disseminar a verdade, para a emancipação, através de todos os meios, fazer a classe em si deixar de ser classe em si e se tornar classe para si. Esta devemos defender. Uma propaganda baseada na verdade denunciando o descalabro do capitalismo, da expropriação do trabalho dos proletários, da miséria na abundância. Esta foca na política, a outra, no “martelo das bruxas”, na difamação e na desumanização das pessoas.
A segunda, foi com o meu antigo orientador, Edson Resende, que num almoço no Arco dos Teles, me explicou a diferença entre ética dos meios, dos fins e proporcional. Nossa ética, a ética revolucionária nunca pode ser uma ética apenas de meios. A ética de que para que um ato seja bom, os meios tem que ser bons, uma ética do tipo kantiana, do a-priorismo, tem uma antinomia absoluta, uma aporia. Na verdade, não consegue justificar a legítima defesa. Se um louco vai matar um filho meu com uma faca, não posso lhe dar um tiro, por que o meio não é legítimo. É lógico que a lógica da ética kantiana não se resume a isto, mas a sua aporia, de forma grosseiramente explicada, sim. É, no fundo, a linha moral dos que defendem a “ética na política”, e se concentram apenas nos meios, sem fazer uma análise de toda a estrutura ao redor. Afinal, o mal é estrutural e não se o combate aparando os galhos das árvores. Nossa ética é sim, finalista.
Quem considera que o aforismo “os fins justificam os meios” de Maquiavel é uma negação de toda a ética, não entende o que seja um aforismo, não entende de fins, de meios, de Ética. Está apenas na superfície da questão e nunca nem parou para pensar na profundidade do que foi dito. Se os fins não justificam os meios, devemos condenar todas as revoluções e guerras de libertação. A sociedade teria parado na era da aristocracia e do colonialismo. Sim, os fins (nobres) justificam meios que não são nobres. Para se libertar da escravidão sim, o escravo pode matar seu feitor. Este silogismo que tem uma forte lógica interna também tem seus defeitos e aporias. Quer dizer então que o escravo para se libertar pode matar o feitor, o senhor do engenho, os filhos do senhor do engenho, estuprar a sinhazinha? Não, esta conclusão não é assim tão lógica.
Se somos finalistas, mas éticos, falta uma ajuste na equação. Os fins justificam os meios, os fins tem que ser nobres, se o fim não for nobre, elevado, não há ação justificável. Mas sim, os meios tem de ser PROPORCIONAIS à ação. O soldado que estupra as mulheres do inimigo da guerra não está agindo de forma justificável. O vencedor que no campo de batalha tortura o exército vencido não está agindo por nenhum fim justificável. Uma ética emancipatória finalista e proporcional nos dá um justo termo para analisar a ética da política (e não na política), sem cair no bom mocismo, no pacifismo, mas também sem resvalar para o relativismo moral e para o vale tudo.
Assim, na nossa propaganda leninista da verdade, a mentira não é um meio justificável ou proporcional, até porque ela não serve à emancipação. Quando desmascarada, pode levar à desmoralização e ao abandono das nossas fileiras. Fiz este longo introito para explicar minha posição contrária aos ataques pessoais aos nosso inimigos. Quando surgiu todo aquele papo sobre o suposto filho fora do casamento de FHC, eu nunca compartilhei. Não compartilhei porque defendo que a vida íntima das pessoas não tem nada que ver com a política. Não me interessa o que meus inimigos fazem na cama. Se são fiéis, infiéis, monogâmicos, não monogâmicos, se são bons ou ruins na cama, se são heteros, gays, lésbicas, bissexuais, se fazer orgias, surubas, em que posição transam. Isto é um indiferente ético para escolher um governante. Só um moralismo tresloucado pode embarcar nesta canoa furada. Recentemente, um amigo historiador espanhol (e olha que Espanha tem herança católica pesada) ficou espantado com nosso falso puritanismo. De um lado um o brasileiro está longe de ser um ser refreado sexualmente, de outro um falso moralismo puritano, herança colonial, jesuítica, quase barroca, que explica um pouco este voyeurismo político de se interessar tanto assim pela vida privada das pessoas.
Se condenamos o vídeo fake do Lula, se condenamos o repórter da Veja invadindo a festa do seu sobrinho neto, as difamações contra seus filhos e netos, se condenamos os ataques à honra de Dilma, a foto machista e fascista da nossa ex presidente de pernas abertas, temos que forçosamente condenar os ataques à vida privada de FHC, e os ataques à vida privada de Marcela Temer, o vídeo falso, íntimo dela. E isto por algumas razões.
A primeira porque não, estes meios não justificam o fim. O fim, ao final o que é? Desmoralizar a conduta privada de nossos inimigos e reproduzir um moralismo puritano e mentiroso? O puritanismo sempre foi uma arma da direita e o falso moralismo sexual foi usado inclusive pelos fascistas, que tinham manuais de eugenia sexual. “Denúncias”, verdadeiras ou falsas sobre a vida privada de nossos inimigos apenas despolitizam o debate e fazem a sociedade retroceder, além de dar força ao martelo das bruxas e a loucura insana do patrulhamento da vida íntima. Não avançam em nenhum dia a causa revolucionária e da emancipação. Uma mentira contada mil vezes vira uma verdade é um ditado nazista, não revolucionário ou emancipador.
Segundo porque em geral se baseia numa vil ideia de honra sexual, que é machista, ligada ao patriarcado. No meu trabalho de mestrado em letras estudei a literatura espanhola do século de ouro e o conceito de honra. O conceito de honra sexual é um conceito sobre o qual se assenta, reacionariamente, o patriarcado. É sempre um conceito de submissão feminina. A honra está sempre alicerçada numa conduta negativa e passiva da mulher. Ou na virgindade, ou na castidade, ou na fidelidade. Não à toa, vira e mexe, reaparece uma louca de direita alardeando a propaganda de que casará virgem. Engels mostra em “A origem da propriedade privada, da família e do Estado” que o primeiro tipo de escravidão e submissão de classe foi o da mulher pelo homem. Este tinha que basear na virgindade, já que a descendência patrilinear na época só podia advir da castidade feminina. Todos os mitos sobre castidade, posteriores a isto, foram criados para a submissão da mulher. Assim, na literatura de “honra”, ao fim, a mulher que tinha relações antes do casamento “desonrava” o pai, e depois do casamento, a que traía o marido, mesmo que num casamento infeliz, também o desonrava. O destino inexorável destas heroínas era sempre o mesmo. A morte, sempre sem castigo para o patriarca vingador, que muitas vezes podia se vingar até por uma suposta traição e, no máximo sua punição seria a infelicidade. Isto é um fóssil ideológico tão forte que Flaubert teve que matar a feliz Madame Bovary (que nunca se arrependeu dos seus pecados), Tolstoy suicidou Anna Karenina, que trocou um casamento infeliz por um amor verdadeiro, e Eça matou de remoroso a infiel Luísa. Cervantes, muito além do seu tempo, num pequeno entremés vinga as mulheres, fazendo um amante entrar e sair fugidio e feliz do leito de uma jovem presa a um casamento arranjado e infeliz. Efetivamente, policiar a vida de Marcela Temer está longe de ser uma atitude revolucionária, socialista, emancipatória. É machismo puro.
Assim, longe do bom mocismo, da retórica falsa da “ética na política”, dos lugares comuns de filosofia estilo auto-ajuda do tipo “mudaremos o mundo depois que mudarmos nós mesmos”, típica frase de filósofo da moda; fazer a perseguição da vida privada das pessoas, mesmo dos nossos inimigos, ajuda a criar o clima para proliferarem os Bolsonaros da vida, os Kim Katagari, os Danilos Gentili. Ao reproduzir os argumentos deles, reproduzimos suas ideologias e damos legitimidade às perseguições pessoais que eles fazem. Não, na guerra não vale tudo, se valesse tudo assinaríamos embaixo dos progrons e campos de concentração. Concentremos nossas energias e nossas armas no que vale realmente à pena. A vida íntima das pessoas, com o fascismo inerente a esta prática de difamação, não faz a revolução andar um dia.
Roberto Ponciano é escritor, mestre em Filosofia e Letras Neolatinas, Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.